quinta-feira, 11 de abril de 2013

BISSEXUALIDADES










in Somos, 3, 1, SP, 2000
A utilização do plural “bissexualidades” justifica-se pelas múltiplas dimensões que esta noção comporta. A idéia de uma bissexualidade potencial sempre habitou o espírito humano constituindo um fenômeno freqüente em várias religiões. Em inúmeros mitos e rituais de androgenia encontramos a tese de uma primeira divindade suprema, que seria andrógina, e que após ter-se separada em masculino e feminino gerou a primeiro casal divino.
Para a mitologia, a bissexualidade representa uma das manifestações da unidade fundamental; um dos aspectos antropomórficos do ovo cósmico onde, tanto no início como no fim do mundo, só existiria um Todo onde os opostos se confundiriam: no início só há potencialidades, e a primeira bipartição criou os opostos noite/dia, céu/terra. A mitologia grega é repleta de histórias nas quais os heróis são apresentados ora como homens, ora como mulheres, ou ainda de forma dupla: ao mesmo tempo homem e mulher. A idéia de um indeterminismo inicial encontra-se também presente na física moderna com a teoria do Big Bang.
Um outro aspecto da questão é dimensão psicológica da bissexualidade. Na literatura filosófica e na psiquiatria, esta noção aparece em volta de 1880 como mais uma nomenclatura. Com a psicanálise, a bissexualidade passa a ser trabalhada como o resultado das identificações masculinas e femininas constitutivas do psiquismo humano: todo ser humano possui traços psíquicos masculinos e femininos resultado das identificações com os dois sexos. Ao nascer, o ser humano só possui potencialidade e sua identidade sexuada será construída através dos processos identificatórios. Isso significa que a anatomia com a qual o sujeito vem ao mundo não garante, em absoluto, os destinos de sua identidade sexuada, como bem o mostra o transexualismo e intersexo. Porém, é importante frisar, não se pode ter os dois sexos.
“Sexo” vem de Secare: cortar, separar. “Sexuar”, no sentido da identidade sexuada, implica em separação, em corte: a diferença (dos sexos) deve ser marcada e a monossexualidade imposta. Uma observação se impõe: as referências identificatórias masculinas e femininas constitutivas do psiquismo não se confundem com os comportamentos ditos masculinos e femininos que variam segundo a cultura, os costumes e a época.
O uso popular da palavra bissexualidade, que caracteriza um sujeito que se sente indistintamente atraído por mulheres e por homens, traz confusões suplementares. Por isso, é de extrema importância a distinção entre estas duas abordagens da questão para compreendermos duas problemáticas que freqüentemente são confundidas: por um lado, o sentimento que se estabelece bem cedo e que se traduz por: “Eu sou menino” ou “eu sou menina”; por outro lado a chamada “orientação sexual” – homossexual, heterossexual ou bissexual – que pode, em determinadas situações, alterar-se. A chamada “orientação sexual” – homo, hétero ou bi – não deve ser confundida com o sentir-se homem ou mulher. Sentir-se atraído (a) tanto por homens como por mulheres é uma coisa; não saber se se é homem ou mulher, é outra coisa. O fato de um sujeito hesitar entre o desejo de penetrar, ou de ser penetrado, não coloca em questão que será como homem que ele será penetrado ou que penetrará.
A experiência clínica mostra que ninguém está ao abrigo de “crises” – bastante comuns na adolescência – quanto à sua orientação sexual o que, entretanto, não ameaça a identidade sexuada do sujeito. Por outro lado, a situação é bem mais complexa e geradora de outra forma de angústia, quando o sujeito duvida se ele é um homem ou uma mulher.
Cabe ainda lembrar que atitudes, por vezes preconceituosas, geradas pelo peso dos valores sócio-culturais e por posições moralistas e normativas, podem ser responsáveis por um silêncio e uma desinformação que fazem com que, não raro, um sujeito se pergunte se ele/ela é homem, ou mulher, por sentir-se atraído(a) por um homem ou por uma mulher, o que pode levar-lhe a sofrimentos psíquicos os mais
diversos.
Paulo Roberto Ceccarelli*
*Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Membro da “Société de Psychanalyse Freudienne”, Paris, França; Sócio de Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG (graduação e pós- graduação).

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