sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

TRANSEXUALISMO E CAMINHOS DA PULSÃO

Por Paulo Roberto Ceccarelli













(in Reverso, Revista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, ano XXV, 50, 37-49, 2003)
Desde 1952, data em que ocorreu na Dinamarca a primeira cirurgia, oficialmente comunicada, de transexualização, o fenômeno transexual vem tomado uma certa envergadura: tanto na Europa, quanto nos EE.UU. os transexuais têm, aos poucos, sido ouvidos em suas reivindicações. Em alguns países europeus. as despesas médicas da cirurgia de redesignação sexual correm por conta do governo; os transexuais ocupam diversas posições na sociedade; participam de programas na televisão do tipo “Esta é a sua vida”; são entrevistados, publicam suas bibliografias, obtém a mudança de Estado Civil. Tudo isto reflete um esboço de reconhecimento social deste fenômeno ainda que um tal reconhecimento coloque profundas questões éticas e jurídicas. (No Brasil, a Resolução nº 1.482/97 do CFM que autoriza “a título experimental”, a “cirurgia de transgenitalização”, foi anunciada em setembro de 1997.)
Entretanto, o sentimento que do transexual quando a ser do outro sexo é, seguramente, tão antiga quanto a sexualidade humana. (1). Relatos da mitologia greco-romana, de inúmeras fontes literárias e antropológicas, fontes literárias e antropológicas, descrevem de personagens que se vestiam, regularmente ou definitivamente, como membros do outro sexo, dizendo sentirem-se como do outro sexo. Isto mostra que aquilo que hoje conhecemos e designamos sob o termo de “transexualismo” não é próprio nem a nossa época e nem de nossa cultura: o que é recente é a possibilidade de “mudar de sexo” graças às novas técnicas cirúrgicas e a hormonoterapia.
Seria um grave erro acreditar que a etiologia da inadequação entre corpo anatômico e sentimento identidade sexuada seja a mesma para todos aqueles que se dizem transexuais: a aparente semelhança entre os discursos manifestos pode camuflar uma grande diversidade de discursos latentes e recalcados. Assim, falar do “transexual típico” é tão absurdo quanto falar do “heterossexual típico” ou do “homossexual típico”.
Foi o Dr D. O. Cauldwell quem, em 1949, utilizou pela primeira vez a palavra Trans-sexualism em um artigo intitulado Psychopathia Transsexualis, provavelmente da célere Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing. Neste artigo o Dr. Cauldwell apresenta o relato clínico de uma menina que queria ser menino. Em 1953, o psiquiatra Harry Benjamin (2) pronuncia a palavra Transexualismo em uma conferência na Academia de Medicina de Nova Iorque.
Embora o prefixo “TRANS”, presente na palavra “transexualismo”, possa sugerir a possibilidade de atravessar, de passar através do corte da sexuação – nessa perspectiva o transexual, tal como Terésias, seria alguém que “viaja” através da sexualidade, que poderia, enfim, trocar de sexo – o transexual não se encontra nessa situação. Na verdade, ele não deixa um sexo pelo outro: ele “abandona” os atributos de um sexo pelas aparências do outro sexo. Desta forma, quando um sujeito evoca seu desejo de mudar de sexo, ou diz que já se submeteu a cirurgia corretiva, não podemos esquecer que, na verdade, não se muda de sexo: a “mudança” de sexo deve ser compreendida como uma mudança de “fachada”, como uma nova aparência dada ao aspecto exterior do sujeito.
Existe uma grande confusão no imaginário popular, mas também entre os próprios sujeitos que reivindicam a cirurgia de mudança de sexo, quanto a distinção entre o travesti, o transexual e outros que apresentam essa mesma demanda (3). Muitos daqueles que se dizem transexuais reproduzem, de uma maneira caricatural, os estereótipos do homem e da mulher. Alguns tentam, a qualquer preço, manter a ilusão imaginária na qual se engajaram. Para esses, a beira do delírio e dividindo a vida entre a multidão indistinta da “Boca do Lixo” (4) e os amigos incertos que se comprimem em uma pequena kittinet, condenados a prostituição para sobreviverem e cuja a única “alegria”, às vezes, se resume a um “pico”, a expressão “pobres coitados” traduz vagamente suas realidades: uma vida perdida em busca de sentido. Às vezes, a deriva na psicose, ou o suicídio, apresenta-se como a única solução possível quando o sujeito se dá conta do erro cometido – muitas vezes com o apoio dos “profissionais da saúde”! – e da irreversabilidade do estado no qual se encontram: a viagem na “trans-sexual” não oferece passagem de volta.
O polo extremo desta perspectiva se confunde com uma caricatura trágica da mulher: “fabricadas” ao preço elevado de cirurgias estéticas que transformam, quando não mutilam, o corpo, estes sujeitos podem chegar ao ponto no qual um homem “equipado” de uma vagina artificial não tenha, fisicamente, mais nada de um homem. Além disto, as leis do mercado e a preferência da clientela contribuem ainda mais para desorientar essas pessoas que ficam sem saber qual “solução” é a mais rentável: ser ou não ser um homem operado? ter ou não um pênis? E aqui perdemos toda referência!
Outros, entretanto, convencionalmente chamados de “transexuais verdadeiros” (expressão, naturalmente, a ser reavaliada), obrigam-nos a refletir mais detidamente a respeito dos elementos presentes na construção da psicossexualidade destes sujeitos e, consequentemente, em suas identidades sexuadas. Eles não se enquadram nos comportamentos estereotipados citados. Nos encontros com psicólogos, psicanalistas e médicos, assim como nos relatos de terapia, e mesmo de psicanálise, realizadas com os “transexuais verdadeiros”, nada de particular que fizesse pensar em algum distúrbios psíquicos foi encontrado. Os acompanhamentos pós-operatórios realizados com alguns destes pacientes tampouco revelou algum comprometimento psíquico. Ao contrário, a equipe médico-psicológica de um hospital especializado em Paris concluiu, após longo tempo de acompanhamento, que estes pacientes “estão bem e perfeitamente adaptados à suas novas vidas”(5).
A importância de distinguir os “transexuais verdadeiros” é que sem uma tal precisão, a barreira entre esses últimos e alguns travestis, psicóticos e homossexuais, pode ser apagada. Esta é, aliás, uma crítica que faço a alguns teóricos do transexualismo que avaliam, de forma um tanto expeditiva, a demanda transexual sem, de fato, se darem ao trabalho de aprofundar a escuta da psicodinâmica própria a cada caso que se encontra por trás da demanda de transexualisação. A única certeza é que, em se tratando do transexualismo, todo cuidado é recomendado. Qualquer forma de ajuda deverá contemplar uma profunda exploração da particularidade de trajeto transexual do sujeito.
É importante distinguir o transexual do travesti: a dimensão fetichista que o uso de roupas femininas tem para o travesti não se encontra no transexual. Para os travestis, como para alguns fetichistas, as roupas femininas servem para esconder algo destinado a ser revelado. Além disso, há muito sabemos a importância do pênis na dinâmica psíquica do travesti o que, em alguns caso, permite-lhe de viver a fantasia da mulher fálica. A problemática do travesti – e este ponto é o oposto na dinâmica do transexual – não pode ser pensada sem levar a conta a importância do pênis que constitui, justamente, a insígnia do seu sexo que é o masculino. É exatamente por isso que o travesti não procura o cirurgia pois o jogo com seus orgãos genitais (esconder/mostrar) constitui uma fonte de erotismo. Nos raros casos que ele solicita a operação para tornar-se uma “mulher de verdade” isso se deve, na maioria das vezes, às leis do mercado ou à pressão do grupo. E quando isto acontece, todo investimento narcísico que era dirigido ao pênis é deslocado para o novo orgão. Em alguns casos, este investimento chega a ostentar uma dimensão claramente competitiva, senão machista, como, por exemplo, um orgulho declarado quanto à profundidade da vagina! O travesti não apresenta dúvida quanto à sua identidade sexuada: ela é masculina.
Tampouco, o transexual se confunde com o homossexual. Nas homossexualidades, cujas dinâmicas são extremamente variadas, a identidade sexuada do sujeito – homem ou mulher – não está em jogo e questão se dá na chamada “escolha sexual”. Se o (a) homossexual se sente muito feminina, ou muito masculina, isto se deve às identificações secundárias e não à uma pretensa “certeza” de pertencer ao outro sexo. Ponto curioso, os transexuais recusam-se obstinadamente ser confundidos com homossexuais. Para eles, suas identidades sexuais é decididamente heterossexual, o que é coerente com suas reivindicações.
Na paranóia, é a componente homossexual que ganha o primeiro plano sob a forma de delírio. A “argumentação” do Presidente Schreber (6) sobre seu delírio de transexualização é exemplar: “Gostaria de saber de alguém que face a alternativa de enlouquecer-se conservando seus atributos masculinos ou a de tornar-se mulher sã de espírito não optaria pela segunda”. Schreber não discute se ele está em um “corpo errado”: ele se transforma em mulher. Para ele a questão não se coloca no nível de sua masculinidade ou de sua feminilidade: seu delírio traduz uma tentativa de lidar com o retorno de moções pulsionais insuportáveis que desorganiza sua “certeza” de ser um homem. A irrupção do delírio, que representa a última tentativa de manter um mínimo de “coerência” dos investimentos libidinais, é o resultado de um longo processo e traduz um série de fracassos do recalque: um tal processo não se encontra no transexual.
Quando trabalhamos com os “transexuais verdadeiros” temos que enfrentar uma situação no mínimo inusitada: na maioria dos casos, estes sujeitos não procuram um terapeuta com uma demanda de ajuda, e muito menos com uma demanda de análise. Ou seja, eles não apresentam nenhum conflito psíquico, no sentindo neurótico: se conflito existe, este deve-se muito mais às questão sócio-culturais. Por isto os relatos de análise de transexuais são relativamente raros. Aqueles que se submetem a um processo terapêutico o fazem para preencher um dos pré-requistos formais para a obtenção da autorização para serem operados. Não podemos esquecer que, para o “transexual verdadeiro”, o problema desenrola-se muito mais na cena corporal do que na vida psíquica: ele não tem dúvida de sua identidade sexuada: é o corpo que “vai mal”.
O sofrimento psíquico do transexual encontra-se no sentimento de uma total inadequação entre, de um lado, a anatomia do sujeito e seu “sexo psicológico” e, de outro lado, este mesmo “sexo psicológico” e sua identidade civil. Essas pessoas, cuja identidade sexuada (7) discorda da realidade anatomia, manifestam uma exigência compulsiva, imperativa e inflexível de “adequação do sexo”, expressão utilizada pelos próprios transexuais. “Minha sensação, disse um transexual, é de uma incompatibilidade entre o que sou anatomicamente e o que sinto ser”. O sentimento é o de possuir um corpo disforme, doente e monstruoso. Um tal sentimento pode chegar ao ponto de levar o sujeito à auto-emasculação e até mesmo ao suicídio. À reivindicação de “adequação do sexo”, segue-se a de mudança do nome e a de retificação da certidão de nascimento.
O transexual se dirige ao outro – psicanalista, psicólogo, médico, enfim a quem ele crê poder ajudá-lo – em busca da confirmação de uma condição da qual ele já está certo: ele espera que aquele que o olha, dê seu julgamento objetivo de que ele – o transexual – é, de fato, um homem ou uma mulher. Não se trata de um “desejo” de pertencer ao outro sexo mas, antes, de uma evidência: o sujeito “é” do outro sexo. Isto introduz uma particularidade no transexualismo: os sujeitos que reivindicam a redesignação sexual, o fazem em nome do estatuto social de sua identidade e não em nome do exercício da sexualidade como pode ser o caso de alguns travestis. Existem transexuais de todas as idades: adolescentes, jovens adultos, pessoas maduras e mesmo as “vocações tardias”.
Todo encontro com o transexual deve, necessariamente, levar em conta a dimensão subjetiva daquele a quem ele se dirige. Enquanto nos estados intersexuais, onde existe uma má formação anatômica, nosso sentimento por essas pessoas é, na maioria das vezes, o de compaixão, de compreensão, no caso dos transexuais somos, por vezes, tomados por um sentimento de espanto, horror e até mesmo de rejeição. De onde vem essa diferença de sentimentos? Seriam os intersexuados “vitimas” da anatomia, enquanto que os transexuais “ousaram” interferir sobre ela? Ou seja, interferir na “natureza”, na nossa ordem simbólica que, neste momento, revela sua fragilidade?
Neste encontro, muitos profissionais são tomados por um sentimento de estranheza (Unheimlich) que se produz “quando os complexos infantis que haviam sido recalcados revivem uma vez mais por meio de alguma impressão” (8). Não é raro, ocorrem atitudes defensivas – por vezes um diagnóstico apressado – contra as moções pulsionais recalcadas que este encontro desperta. (Talvez seja por essa mesma razão que muitas vezes, nossa primeira reação frente a esses sujeitos seja de taxá-los de loucos.) Ademais, os transexuais nos colocam, de certa forma, uma questão raramente evocada quando estamos no registro da neurose: de onde vem a “certeza” que estamos diante de uma mulher ou de um homem? Tal certeza é “naturalmente” apoiada pelos referências objetivas – sobretudo o sexo anatômico – que a pessoa que está na nossa frente exibe. Ora, são justamente essas referências que são abaladas quando a “mulher” que está a nossa frente nos revela ser um homem! (9)
Se, por um lado, do ponto de vista médico, em suas diversas especialidades, as questões técnicas estão relativamente bem solucionadas, do ponto de vista psicológico as divergências são inúmeras e, por vezes, inconciliáveis. As tentativas de definir o transexualismo, assim como a de elucidar sua gênese, refletem bem a complexidade da questão transexual demonstrando que entre os pesquisadores não há unanimidade quanto a sua etiologia. Da mesma forma, as propostas terapêuticas – terapia, psicanálise, tratamento médico-cirurgical e até mesmo lobotomia! – são extremamente controvertidas e, por vezes, francamente divergentes.
Em psicanálise, vários autores propuseram teorias diferentes para tentar elucidar a questão transexual. Este ponto constitui um verdadeiro “divisor de águas” entre os pesquisadores. De uma lado temos a “escola americana”, baseada sobretudo nas posições teórico-clínicas de Roberto Stoller e, do outro lado a “escola francesa” que segue, basicamente, as formulações de Lacan.
Stoller, apoiado em Freud (10) separa os dois aspectos do conceito freudiano de bissexualidade, o biológico e o psíquico, para, em seguida, examinar a dimensão biológica (sexo) através do estudo dos intersexuais e a dimensão psíquica (gênero) pelo estudo dos transexuais. Stoller conclui que o gênero prima sobre o sexo. Este desdobramento vai permitir-lhe apreender a aquisição do feminino e do masculino (gênero) por um homem [male] ou um mulher [female] (sexo) (11). A expressão “identidade de gênero” toma aqui toda a sua força. Para Stoller (12), o transexualismo é uma disforia sexual. Visto que estes sujeitos não são acessíveis a nenhuma forma de psicoterapia, inclusive a psicanálise, Stoller recomenda o tratamento hormonal e a cirurgia(13).
Entretanto, as conclusões que Stoller tira, a partir de seu vasto trabalho clínico com transexuais, diferem das de Freud ainda que, como para este último, a importância dos fatores psicológicos para a formação da psicossexualidade seja inegável (14). Para Freud, como sabemos, a sexualidade é fálica e, no princípio, todos somos meninos; o sexo “natural” é o masculino. Para Stoller, a libido (15) é feminina por excelência – “a feminilidade é um estado” – e a masculinidade deve ser construída; no princípio somos todos meninas.
Na perspectiva stolleriana, o estado de “união inicial” (oneness) com mãe geraria, em todo ser humano, uma “feminilidade primordial”. Trata-se de uma marca, um traço, fundante, a-conflitual, anterior a toda relação de objeto. Embora não se trate de uma identificação, esta marca é necessária para que os processos identificatórios ocorram. Ao oposto de Freud, Stoller postula que devido à “feminilidade primordial” é muito mais difícil tornar-se homem do que mulher, pois o menino tem que desidentificar-se com a mãe.
Lacan considera que o transexual encarna o falo e procura, através da cirurgia, libertar-se do lugar que é tomado como significante (16). Logo, trata-se de uma psicose onde o sujeito tenta, por falta do significante Nome-do-Pai, amarrar através da cirurgia, o real, o simbólico e o imaginário. Lacan (17) já apresentara o conteúdo desta mesma idéia em 1956 quando, escrevendo sobre Schreber sublinha que é a forclusão do pênis, e não do falo, que está em jogo na transformação do presidente.
Uma primeira evidência que constatamos até aqui é que, provavelmente, nenhuma outra manifestação da sexualidade cause tanta polêmica, no que se refere ao diagnóstico e ao caminho a seguir, como o transexualismo. Ao mesmo tempo, as questões colocadas pelo transexualismo contribuem, por um lado, para uma melhor compreensão dos elementos presentes na constituição do sujeito e, por outro lado, leva-nos a uma profunda reavaliação das bases da sexualidade humana em geral e, por extensão, da própria noção de normalidade.

Da sexuação do corpo à identidade sexuada
Para tentarmos compreender os elementos presentes na construção do sentimento de identidade sexuada, para precisar as relações entre o corpo anátomo-biológico e a identidade sexuada, uma primeira questão é saber como a criança se dá conta que ela é menino ou menina. Como o corpo com o qual o bebê vem ao mundo, organismo da ordem o real, é atravessado pela linguagem tornando-se-à corpo sexuado? As características anátomo-biológicas garantem que um sujeito se “sinta” homem ou mulher? Ou, colocando a questão de uma forma provocativa: de onde vem “convicção delirante” que consiste em acreditar que se é do sexo anatômico que se tem? Como se dá a passagem das identificações à identidade?
É a consolidação de uma crença que nos leva a dizer se somos menino ou menina. Esta crença inicia-se ao nascimento – hoje mais cedo com a ecografia – pela designação do sexo do bebé, baseada na anatomia, seguida de sua inscrição no Cartório Civil. A partir daí, a criança começa a ser tratada – real e fantasmaticamente – de acordo com os atributos do gênero que lhe foi designado. Espera-se que ela submeta seus comportamentos e condutas ao sistema simbólico da sociedade na qual ela está inserida. É nessa referência que lhe será dito – através de palavras, do discurso dos pais sobre a criança e para com a criança, discurso este baseado nos desejos dos pais, nos fantasmas e crenças desses últimos, ou seja, pelo lugar que ele ocupa na família e na sociedade, etc – que ele é um menino ou uma menina. Tal crença, lhe será confirmada durante toda sua vida pelo seu corpo, pela sua psicossexualidade assim que pela opinião comum. (Quando isto não acontece, a inquietude dos pais é facilmente observável.)
O peso do simbólico na construção do sentimento de identidade, e a força do imaginário dos pais é amplamente confirmado no estudo dos chamados “estados intersexuais”(18). Tratam-se, como já dissemos, de crianças que nascem com uma má formação anatômica, ou uma formação ambígua, dos orgãos sexuais externos. Pode acontecer que o gênero atribuido à criança (masculino/feminino) baseado na “anatomia” externa, não corresponda ao sexo cromossômico (XY, ou XX). Entretanto, por ter sido criada com com convicção e continuidade no sexo que lhe foi atribuído, o sentimento de identidade sexuada que ela construirá, concordará com o sexo de atribuição, e não com seu sexo biológico: onde há conflito entre forças biológicas e forças psicológicas, as últimas que ganham na construção do sentimento de identidade sexuada. Isto quer dizer que as características anátomo-biológicas não garantem a categoria cultural do gênero.
As discussões em torno da construção do sentimento de identidade sexuada têm provocado carolosos debates na história da psicanálise. Há diferenças teóricas, com repercussões clínicas, quando se considera a existência de uma masculinidade, e feminilidade, inata de acordo com a anatomia (19), e quando, ao contrário, parte-se da idéia que tanto a masculinidade quanto a feminilidade são adquiridas independentemente do sexo anatômico.
Vemo-nos frente a uma questão espinhosa: as crianças reagem diferentemente ao complexo de castração porque elas já são meninos e meninas ou, ao contrário, é o complexo de castração que as diferencia? Na primeira possibilidade, os avatares identificatórios, incluindo o Édipo, a patologia, enfim a psicossexualidade, são assujeitas ao constitucional. A identificação ao genitor do mesmo sexo seria o resultado “natural” devido a diferença dos sexos: a anatomia é o destino. No segundo caso, sem negar o papel da anatomia no desenrolar do complexo de castração, esta última não garantiria, a priori , a construção da representação psíquica da diferenças dos sexos: deve-se primeiramente “posicionar” como menino ou menina (Gestalt estruturada no Estágio do Espelho (20), carregada de elementos do imaginário dos pais), para que, a partir daí, as identificações secundárias ocorram. Nesta perspectiva, seria possível imaginar que devido a vicissitudes no caminho de construção de psicossexualidade, feminilidade e masculinidade adquiriam uma certa independência em relação a anatomia do sujeito: masculinidade e feminilidade são duas representações do falo. Em minha opinião, toda tentativa de conceituar a questão da diferença dos sexos a partir de um sujeito que já é, a priori, menino ou menina, à quem se acrescentaria uma masculinidade, ou uma feminilidade, corre o risco de invalidar o esforço de Freud para separar o biológico do psicológico.
Segundo Freud, bem cedo a criança é capaz de distinguir, “graças aos signos mais exteriores”, pai e mãe e se posicionar de um lado ou de outro. (21). Distinguir pai e mãe se colocando de um lado ou de outro é, sem dúvida alguma, uma forma de identificação; identificação esta que ocorre anteriormente ao complexo de castração e independente dos conflitos edipianos (22). Uma identificação, esclarece Freud, que “tem um importante papel na pré-história do complexo de Édipo” e cujo destino “se perde facilmente de vista em seguida”. Ou seja, a criança “faz” uma distinção de “gênero” independente da diferença anatômica dos sexos.
Mas, se é o Outro, no primeiro momento encarnado pela mãe, que constitui o sujeito, que reconhece e aquiesce sua imagem quando do Estádio do Espelho, a pergunta que devemos colocar neste ponto é “o que aquele que presencia a «assunção jubilatória» da imagem especular narcísica responsável para constituição do sujeito, o que, então, este outro vê no espelho?” Seja o que for, o que o outro vê no espelho não pode ser separável das produções de seu inconsciente. Esta imagem a qual a criança se identificará trará com ela, potencialmente, os elementos que lhe permitirão posicionar-se do lado dos meninos, ou das meninas sem, repetimos, levar em conta diferenças anatômicas. Esta tomada de posição será reforçada pelas identificações secundárias responsáveis pelas relações que o sujeito estabelecerá com as referências simbólicas do masculino e do feminino da sociedade onde ele está inserido: a imago oriunda da fase do espelho constitui a “fonte das identificações secundárias, sob cujo termo reconhecemos as funções de normalização libidinal” (23).
Penso podermos distinguir aqui duas modalidades identificatórias que fará emergir duas problemáticas que, embora frequentemente superpostas, devam ser tratadas separadamente: de um lado, o sentimento imutável que se estabelece bem cedo e que se refere ao posicionamento, como vimos acima, que a criança faz do lado do pai ou da mãe. Podemos traduzir um tal sentimento por: “Eu sou menino” ou “eu sou menina”. Do outro lado, o sentimento expresso por: “eu sou masculino” ou “eu sou feminina”, que se refere a masculinidade e a feminilidade, resultado dos investimentos num corpo suporte de fantasmas marcando assim suas funções e seus desejos. A construção desse sentimento, bastante complexo e sutil, é dependente da situação edipiana cuja dinâmica só se completará na adolescência.
É nessa perspectiva que se deve distinguir o gênero no qual o sujeito se situa e sua “orientação sexual”: a chamada “escolha de objeto” ou, como prefiro chamar, a «solução» (24) heterossexual ou homossexual, não depende do “sentir-se” homem ou mulher. Compreende-se, a partir daí, o desejo do Pequeno Hans, e ao mesmo tempo sua angústia, frente à vontade de ter um bebê, de possuir seios, enfim, de se identificar às prerrogativas femininas: isto signifique que ele se estime uma menina.(25) Da mesma forma, algumas crises na adolescência que o sujeito pode ter quanto a sua “orientação sexual”, não coloca em dúvida sua identidade sexuada. (A situação é radicalmente diferente quando, na adolescência, o sujeito se pergunta se ele é um homem ou uma mulher.)
Devido a conflitos edípicos, o sujeito pode hesitar entre a fantasia de penetrar sua mãe, ou de ser penetrado pelo seu pai, sem se colocar a questão que será como homem que ele será penetrado um homem, ou que ele penetrará uma mulher. O travesti, embora preso a uma feminilidade imaginária – sua extravagância indumentária o denuncia – sabe muito bem que ele é um homem. Quando ao transexual H->M (homem> mulher-), ele se sente mulher, e é como mulher que ele se sente atraído por um homem.
Cabe aqui um parênteses: é neste ponto que a teoria lacaniana critica a utilização da noção de “gênero”, e consequentemente de “identidade de gênero”, alegando que esta noção esquece que a identidade sexuada é construída pela articulação entre o real e o simbólico. Embora esta construção apoie-se, na maioria das vezes, na realidade anatômica, o essencial neste processo é ele seja simbolicamente reconhecida pela palavra do Outro, encarnado naquele que acolhe a criança. É este reconhecimento que inscreve a criança na função fálica, transformando-a – a partir de sua anatomia (sexo) – em um sujeito falante, homem ou mulher.
Mas voltemos a nossa questão. Se, como vimos, é o desejo do Outro que no início da vida insere o “candidato a sujeito” na função fálica, cabe uma pergunta, que parece óbvia mas que o estudo dos transexuais nos mostra que não é. A pergunta pode ser formulada assim: que «anatomia», na fase do espelho, o Outro vê?” O que, nesta perspectiva, estamos querendo dizer quando falamos de “diferença anatômica dos sexos” em um período tão inicial da vida? Como se dá esta diferença ou, para retomar a pergunta que já colocamos, como a criança se dá conta de que ela é menino ou menina, no início de sua vida?
Se, como já dissemos, o corpo com o qual o bebê vem ao mundo tem que ser atravessado pela linguagem para tornar-se-à corpo sexuado, simbólico, a anatomia da criança é, neste início de vida, totalmente dependente dos olhos de quem a vê; ela é apenas um suporte imaginário o qual, na maioria das vezes, coincide com a identidade sexuada que o sujeito constrói. Ou seja, quase sempre os processos de subjetivação estão de acordo com a realidade da anatomia. Entretanto, para a psicanálise, a anatomia é sempre fantasmática, pois é resultado de investimentos libidinais mediatizada pelos fantasmas conscientes, mas sobretudo inconscientes, dos pais.
Se seguirmos Lacan (26) quando ele diz que “a relação do sujeito com o falo se dá sem levar em conta a diferença anatômica dos sexos”, podemos imaginar uma situação onde a inserção na função fálica se faça em oposição ao sexo anatômico da criança que, neste momento, repetimos, não existe como tal para o sujeito em constituição. Neste caso, a criança, futuro transexual, deverá enfrentar uma situação inelutável: confrontar-se com os processos de investimento/não investimento, de seus orgãos genitais, de tal sorte que tais orgãos recebam uma forma de investimento que poderia ser chamada de “narcisismo negativo”.

O “futuro transexual” e a economia libidinal da família
Freud nos mostrou, principalmente no seu texto sobre o Narcisismo (27), a importância do lugar do recém-nascido no mito familiar assim como a presença do imaginário dos pais no futuro do bebê, e os desejos e lutos que, espera-se, a criança deve responder. “A história de um sujeito, completa Piera Aulagnier, não começa com ele; ela o precede e o antes determina fortemente o depois” (28). Ou seja, a relação mãe-filho começa bem antes do nascimento da criança.
A clínica nos mostra a presença de imagos e fantasmas relativos a ser pai e mãe em todo ser desejante. Estas imagos, que serão evocadas quando aquela mulher torna-se mãe, ou aquele homem, pai, são alicerces fantasmáticas sobre os quais a psicossexualidade do recém-nascido será construída.
Na maior parte dos casos, ao saber-se grávida a mãe fantasia ter dentro dela, com ou sem o apoio do companheiro, o que poderíamos chamar de “criança imaginada”: uma criança com um corpo dotado de todos os atributos que o seu narcisismo considera necessário. A importância do lugar dessa “criança imaginada” no imaginário biparental é facilmente compreendida ao observarmos como, desde os primeiros momentos de vida do bebé, os pais “vêem” nele toda uma séria de traços e semelhanças que, de fato, crêem ali reconhecer, não apenas concretamente mas também em termo de projetos de vida. Pode também acontecer que, para a mãe, a criança represente o filho que ela gostaria de ter dado a sua própria mãe protegendo-a, assim, do perigo de desaparecer nesta última. Enfim, todo nascimento desencadea uma reorganização do universo fantasmático dos pais para “acomodar” a realidade externa, mas sobretudo a realidade psíquicas, à criança que deverá nascer.
Que o anúncio da gravidez seja um momento privilegiado para planos e projetos é por demais banal para merecer qualquer comentário. Entretanto, aceitar que a criança não corresponda ao sexo esperado, que ela não responda aos desejos e projetos que os pais lhe anteciparam, enfim que ela não ocupe o lugar que lhe fora reservado no narcisismo dos pais, eqüivale a fazer o luto da “criança imaginada” que pré-existia no imaginário dos pais. Tal luto envolve, igualmente, feridas outras que, sempre presentes no núcleo narcísico infantil dos pais, poderiam podido ter sido elaborados pela aquela criança.
Acredito ser justamente a impossibilidade de elaboração do luto da “criança imaginada” que se anuncia no horizonte do futuro transexual: seu lugar e sua sexuação já estão, de certa forma, determinados, fixados, no imaginário de seus pais muito antes de sua vinda ao mundo. Neste caso, a construção de um sentimento de identidade sexuada em acordo com o sexo anatômico encontra-se bloqueado por identificações primárias entravadas. No meu trabalho com transexuais encontrei vários casos onde estes sujeitos nasceram após a morte de uma criança do sexo oposto do sujeito em questão. Outros, substituiem uma “esperança” não realizada de um criança. Há também aqueles que estão lá para pagar um dívida ou para acalmar um superego tirânico, e assim por diante.
Quanto à criança em processo de constituição, esta deverá ser capaz de não mais responder do lugar da “criança imaginada” ocupando, cada vez menos, o lugar de objeto privilegiado dos investimentos narcísicos dos pais assim como depositário dos desejos desses últimos. Para nos constituirmos como sujeitos desejantes, para existirmos psiquicamente, temos que matar a representação narcísica que ocupamos no desejo daqueles que nos deram vida.
Conclusão
Para a criança, futuro transexual, os projetos e as expectativas a seu respeito, ou seja, o lugar que ela ocupa na economia libidinal da família, são de tal forma “rígidos” que ela deverá responder lá onde se espera que ela o faça, sob pena de não ser absolutamente “escutada”, de não ser amada.
Da mesma forma que uma mãe psicotizante pode “ver” sua criança como um corpo estranho, o que a impediria de reconhecê-la como sujeito, a mãe do transexual “veria” uma criança cujo destino sexual já estaria traçado em seu imaginário. O futuro transexual seria, então, incapaz de desprender-se da representação narcísica que ele ocupa no desejo dos pais. Fazê-lo, equivaleria a não existir para estes últimos; a não constituir-se como sujeito desejante: ele “aceita” o lugar que lhe foi reservado no mito familiar em ressonância com uma problemática transgeneracional, a qual determina a sexuação de seu corpo e sua identidade sexuada. Neste sentido, ocorreria uma imposição, por assim dizer, da identidade sexuada. A “solução” transexual representaria uma forma de “sobrevivência psíquica”. Uma tentativa infantil de auto-cura (29), quem sabe uma maneira de “escapar” à psicose. Trata-se, é claro, de uma solução radical, de uma última tentativa de se constituir-se como sujeito. Talvez – como sabê-lo? – uma identidade sexuada em desacordo com a anatomia, seja “preferível”, ou pelo menos não tão angustiante, do que a ameaça de não existência, ou a angústia igualmente terrificante, de possuir um corpo despedaçado.
Se a construção do sentimento de identidade sexuada é tributária dos efeitos do inconsciente, a posição do sujeito ao dizer, com relativa segurança, que ele é um homem ou uma mulher, está em relação direta com a atribuição fálica, e não passa pela anatomia: de um lado temos o real da anatomia e, de outro lado, a elaboração psíquica construída a partir desse real, cujo resultado será o sentimento de identidade sexuada.
Enraigada, em suas origens, à uma cartografia imaginária, a busca identitária não é tarefa simples. Na impossibilidade da pulsão encontrar o objeto de seu desejo, a noção de “identidade”, no sentido de uma certeza, pertence ao domínio do fantasma e a possibilidade que exista uma inadequação entre a anatomia e identidade sexuada do sujeito é concebível, produzindo os mais diversos discursos.
Os “arranjos” pulsionais do transexual podem nos impressionar por seu radicalismo. Mas sua especificidade mostra a particularidade de seu trajeto identificatório e o quanto, inconscientemente, ele encarna o que dele se espera. As palavras citadas por Freud no fim do “Esboço de psicanálise” ganham aqui todo seu valor:
“Was Du ererbt von Deinen
Vätern hast, Erwirb es, um
es zu besitzen.”*
* “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” Ou, numa tradução mais libre : “Pegue sua herança e faça dela algo seu.”
BIBLIOGRAFIA
1 – GREEN, R., “Mythological, Historical, and Cross-Cultural aspects of Transsexualism”, in Transsexualism and sex reassignement .Baltimore, John Hopkins University Press, 1969, 13-22.
2 – BENJAMIN, H. , “Travestism and Transsexualism”. In Int. J. Sexology, 1953, 7.2
3 – Parte desta introdução já foi anteriormente publicada. Conf. CECCARELI, P., R., “Transexualismo e identidade sexuada” in Viviani, A., (Org.) Temas da Clínica Psicanalítica, São Paulo, Experimento, 137-147, 1998.
4 -Conhecido local de prostituição de toda espécie na região central de São Paulo.
5 – Um dos mais longos acompanhamentos é, sem dúvida, o do psiquiatra australiano Bower que, ao longo de 14 anos de pesquisa, encontrou mais de 697 sujeitos que se diziam transexuais. Destes, 202 homens e 9 mulheres foram atendidos em suas demandas de cirurgia. Conf. BOWER, H., “Male to female transsexualism – a retrospective analysis of 202 sugically reassigned patients in, Abstract Book of Posters of the first meeting of a European Network of Professionals on Transsexualim: PSYCHOMEDICAL ASPECTS OF GENDER PROBLEMS”)PSYCHOMEDICAL ASPECTS OF GENDER PROBLEMS” . (Encontro realizado pela Universidade Livre de Amsterdam, Amsterdam, 18-20 de abril de 1993, p., 8.)
6 – SCHREBER, D-P., (1903) “Mémoires d’un névropathe” , Paris, Seuil, 1975, 151. (a tradução é nossa)
7 – O uso da expressão “identidade de gênero” tem sido cada mais mais corrente no Brasil, sobretudo quando se fala do transexualismo. Trata-se de uma tradução direta do inglês “Gender Identity”, termo utilizado pelo primeira vez por John Money, e retomado por Robert Stoller para bem distinguir os fatores psicossociais na construção da identidade. Entretanto, o uso da expressão “identidade sexuada” parece-me mais adequado por melhor distinguir as relações da identidade com a sexuação, com a divisão em dois sexos. A expressão” Identidade Sexuada” traduz melhor o “sexo” da identidade.
8 – FREUD, S., (1919) , “O Estranho”, E.S.B., 1976, XVII, p. 310.
9 – O “estranho” (Unheimlich) faz igualmente seu retorno onde a realidade da anatomia falha: é o caso da desorientação provocada na equipe médica por alguns estados intersexuados quando a má formação anatômica é tamanha, que não se consegue, “a olho nu” determinar o sexo anatômico do bebé.
10 – FREUD, Sigmund (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. E. S. B., Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XVIII, 210.
11 – A tradução de “male” por homem e de “female” por mulher não é adequada. O mais correto seria traduzir “male” por macho e “female” por fêmea. Entretanto, o uso destas palavras em português tem outras conotações.
12 – STOLLER, R., Recherches sur l’identité sexuelle. Paris, Gallimard, 1978. The Transsexual Experiment. London, Hogarth Press, 1975.
13 – Um dos melhores e mais pertinente debate crítico sobre as possições de Stoller, foi feito por Agnes Oppenheimer. Conf., OPPENHEIMER, A., “Le choix du sexe”, Paris, P.U.F., 1980.
14 – STOLLER, R., “Faits et Hypothèses. Un examen du concept freudien de bisexualité” , in Nouv. Rev. Psy. 7, 1973, 138.
15 – Em relação à libido, a posição de Freud varia. Num primeiro momento, a libido é masculina. Conf. FREUD, S., (1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Op. cit., 226. Mais tarde, ele sustenta que “à libido como tal, não podemos atribuir nenhum sexo”. Conf. S. Freud (1933), “Feminilidade”, in Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, E.S.B., 1976, XXII, p. 161.
16 – Lacan escreve: “Bem, é enquanto significante que o transexualista não o quer mais [o pênis], mas não enquanto orgão. E é aí que ele padece de um erro que, justamente, é um erro comum. Sua paixão, a do transexualista, é a loucura de querer liberar-se deste erro: o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado. O transexualista não quer mais ser significado falo pelo discurso sexual que, como sublinho, é impossível. Seu único erro é querer forçar o discurso sexual, que é impossível, pela passagem do Real; querer o forçar pela cirurgia”. Conf. LACAN, J., “… ou pire”, séminaire du 8 décembre 1971. (Seminário inédito)
17 – “Sem dúvida, a adivinhação do inconsciente adverte o sujeito, desde muito cedo, de que, na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens” Conf. .LACAN, J., (1966) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, in Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 1998, 572.
18 – KREISLER, L., “Les intersexuels avec ambiguïté génitale”, in Psychiatrie de l’enfant, 13, 1, 1970.
19 – Por exemplo, Melanie Klein : quando ela defende a existência de uma “feminilidade primária”, a referência ao anatômico continua, correndo o risco travestir o verdadeiro debate – o que faz a diferença dos sexos? – para tentar explicar quais seriam as características específicas de cada sexo.Cf. KLEIN, M., “The effects of early anxiety-situations on the sexual development of the girl”, in The psycho-analysis of children, London, Hogarth Press, 1959, 268-325.
20 – A questão do Estágio do Espelho e o transexual foi discutida em um dos primeiros textos que trabalhei este tema. Conf. CECCARELLI, P. R., “Le transsexualisme: quelques réflexion sur le avatars des relations au masculin et au féminin chez le transsexual “, in Topique, Paris, 55: 487-5O2, 1994.
21 – FREUD, S., (1908), “Sobre as teorias sexuais das crianças”, Edição Standard brasileira, Imago, 1976, IX, 215.
22 – FREUD, S., (1921), “Psicologia de grupo e a análise do Ego”, Edição Standard brasileira, Imago,1976, XVII, 133 e seg.
23 – LACAN, J., “Le Stade du Mirror”, in Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 94.
24 – Como escrevi em outro lugar, “a palavra «solução» deve ser entendida no sentido matemático do termo: uma equação que comporta diferentes variantes frentes às quais, tal como em um sistema vetorial de forças, uma resultante, uma solução, será encontrada”. Conf. CECCARELLI, P.R., “A sedução do Pai” in GRIFOS – IEPSI – Belo Horizonte, número 18,out. 2001, 93. As variantes são a comunicações verbais e pré-verbais dos pais – que podem ser contraditórias – a respeito dos elementos constitutivos da identidade sexuada, da interpretação que a criança faz destes significantes, do lugar que se espera que a criança ocupe na dinâmica libidinal da família… e assim por diante.
25 – É neste sentido que se pode interpretar algumas passagens do Petit Hans, como o diálogo entre Hans e seu pai. – Cf. FREUD, S., (1909), “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”, 1976, X, 95 – ou ainda mais gritante, quando Hans responde à pergunta de seu pai a respeito de “seus filhos” : “Por quê? Porque eu gostaria tanto de ter filhos; mas eu nunca quero; eu não deveria gostar de tê-los.” Ibid., p. 101.
26 – LACAN, J., “La signification du Phallus”, in Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 686.
27 – FREUD, S., “Sobre o narcisismo: uma introdução”. E.S.B., vol. XIV, 85-122.
28 – AULAGNIER, P., (1963) “Remarques sur la structure psychotique”. In Un interprète en quête de sens. Paris, Payot, 1991, 268.
29 – McDOUGALL, J., “Identifications, néobesoins, et néosexualités”. In Topique, 39, 8.
Paulo Roberto Ceccarelli*
* Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio de Círculo Psicanalíco de Minas Gerais; Membro da “Société de Psychanalyse Freudienne”, Paris, França; Consultor científico (Editorial Reader) do “International Forum of Psychoanalysis”; Membro do Conselho Científico da Revista Psychê; Membro do Conselho Científico da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental; Vice-presidente do TVer-MG; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG; Conselheiro Efetivo do X Plenário do Conselho Regional de Psicologia da Quarta Região (CRP/O4).

A CONSTRUÇÃO DA MASCULINIDADE

Por Paulo Roberto Ceccarelli













in Percurso, São Paulo, Vol. 19, p.49-56, 1998.

“A proporção em que masculino e feminino se misturam num indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas. (…) e aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia.”
Freud, “A feminilidade”

Introdução
O modelo biológico do masculino e do feminino é válido para a definição celular; mas seria ilusório pensar que a identidade sexuada poderia ser definida a partir do biológico, a despeito das esperanças daqueles que nele quisessem encontrar uma solução para os problemas de identidade: isso seria ignorar que o essencial da sexualidade humana reside em sua dimensão inconsciente.
Quando tentamos definir em bases “sólidas” os termos masculino e feminino, encontramo-nos numa situação bastante incômoda. De fato, poucas palavras condensam conteúdos tão pesados e tão difíceis de precisar quanto masculino e feminino. Falar, como se faz freqüentemente, em “características femininas”, como a graça, ou “masculinas”, como a coragem, é ater-se a definições tautológicas, limitadas a um sistema binário que repete indefinidamente, ainda que de formas variadas, as mesmas cópias. Com efeito, as mulheres da idade da pedra possuíam a graça e o recato daquelas que Cervantes descreve em seu Don Quixote?
A coragem era um atributo particular aos homens da pré-história, ou um a priori comum a todos e a todas sem o qual não seria possível a sobrevivência individual e coletiva? Provavelmente, foi somente a partir de um momento histórico difícil de precisar que atributos tais como a “graça”, a “coragem” e muitos outros foram “sexualizados” sem que exista nenhuma relação natural entre essas categorias e o masculino/feminino.

Identidade: estado de crise permanente
Ao longo da história tem-se podido constatar, ainda que socialmente limitadas, o que poderíamos chamar de “crises de identidade” relativas ao masculino e ao feminino. Enquanto o final do século XIX foi marcado por uma série de textos que podem ser qualificados como difamatórios para o sexo feminino, no início do século XX observou-se uma crise generalizada da masculinidade, sobretudo em Viena. Por exemplo, quase concomitantemente à publicação dos Três Ensaios de Freud, Otto Weininger publica uma obra bastante interessante e original, Sexo e caráter, numa tentativa de precisar, através dos termos mais simples (chegando ao ponto de utilizar fórmulas matemáticas), as diferenças entre homens e mulheres.
A hipótese de um hermafroditismo fundamental, ou seja a noção de bissexualidade, é tão bem exposta por este autor, que alguns pesquisadores da época lhe atribuíram a autoria desta noção. Em uma nota acrescentada aos Três Ensaios em 1924, Freud se apressa a esclarecer o equívoco.
O polêmico trabalho de Weininger, extremamente importante do ponto de vista histórico, teve numerosas reedições e influenciou toda uma geração. Ainda que do ponto de vista ideológico comporte várias críticas – sobretudo no que diz respeito às mulheres – algumas das hipóteses ali apresentadas merecem ser consideradas como avançadas para a época, pois constituem uma das primeiras tentativas de sintetizar, de maneira global, um saber psico-biológico sobre o feminino e o masculino.
No fundo, o que se apreende da obra de Weininger é que o tornar-se mulher é muito mais fácil do que a aquisição da virilidade: esta última nunca é definitivamente adquirida, e deve ser constantemente (re)conquistada, sob pena de ver a feminilidade recuperar o terreno.
Outras crises de identidade já haviam ocorrido nos séculos XVII e XVIII. Embora fossem conseqüência da necessidade de mudar os valores dominantes e tenham acontecido em países nos quais as mulheres gozavam de maior liberdade, tais crises tiveram o mérito de questionar valores que, na época, eram considerados como evidências.
De algum tempo para cá, têm-se observado algumas posições em relação ao masculino e ao feminino que podem ser qualificadas como extremistas. É o caso, por exemplo, de algumas teorias socio-biológicas, mais conhecidas nos países de língua inglesa, e também do diferencialismo feminista. As primeiras, partindo do princípio que a essência do feminino e do masculino é biologicamente determinada, explicam todos os comportamentos humanos em termo de hereditariedade genética, conseqüência da necessidade de adaptação.
Desse ponto de vista, a dominação da mulher pelo homem é compreendida como efeito natural de uma agressividade resultante da competição, entre os homens, para a posse das mulheres. As segundas – diferencialismo feminista – insistindo nas diferenças corporais, preconizam a separação dos sexos, propondo mesmo um inconsciente feminino. De qualquer forma, as duas tendências valorizam um sexo em detrimento do outro.
Uma importante tentativa de dar o justo peso ao complexo processo do “tornar-se homem” foi feita por Stoller. Mesmo que alguns pressupostos deste autor se oponham a certas premissas freudianas, as questões levantadas por ele nos levam a refletir sobre a dificuldade de chegar à dita “posição masculina”.

Masculino/Feminino : uma primeira dificuldade
O modelo freudiano do masculino e do feminino, lacunar e fechado num sistema simétrico binário, reflete a dificuldade de Freud para falar destas noções. Além disso, as posições teóricas de Freud revelam que sua escuta não era imune a seus próprios complexos inconscientes, à sua própria organização identificatória e ao discurso social de sua época. Assim, ao expressar-se sobre a questão do masculino e do feminino, fala de “conceitos”, de “noções” e até mesmo de “qualidade psíquicas”. Em determinados momentos, refere-se ao masculino e ao feminino em termos de atividade e passividade; em outros observa que, tratando-se de seres humanos, esta relação é insuficiente.
Se a psicanálise se utiliza estes conceitos, diz Freud, ela não pode elucidar a sua essência. O conteúdo dessas noções não comporta nenhuma distinção psicológica. Seja como for, a posição de Freud ao chamar a atenção para a dificuldade de definir masculino e feminino é revolucionária, na medida em que não se submete à realidade anatômica, subordinando assim a significação dessas noções a resultados de processos bem mais complexos que as determinações instintuais. Finalmente, cabe lembrar que as teorias sexuais infantis descritas por Freud se baseiam essencialmente no menino, e seguem a lógica pênis-castrado; na menina, Freud confessa não conhecer “os processos correspondentes” .
A dificuldade de um paralelo entre masculino/ativo e feminino/passivo foi bem cedo percebida por Freud. Um exemplo: no famoso Rascunho K sobre as neuroses de defesa, carinhosamente apelidado de Um Conto de Fadas para o Natal, Freud faz uma ligação direta entre o feminino e passividade; em Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa, publicado no mesmo ano em que é redigido o Rascunho K, relaciona o masculino à atividade, e a neurose obsessiva ao sexo masculino.
Embora o peso atribuído às experiências sexuais na etiologia da neurose obsessiva seja o mesmo que na histeria, Freud observa que na primeira, em vez de passividade, ocorre uma atividade sexual a partir de “atos de agressão executados com prazer”. Entretanto, logo adiante no texto as coisas se complicam: Freud diz existir um “substrato de sintomas histéricos” ligado à uma cena de passividade, a qual é anterior à ação geradora de prazer.
Conclusão: por trás da atividade masculina, deparamo-nos com a passividade feminina; e o substrato de sintomas histéricos do obsessivo contém os mesmos conflitos desejo/angústia que Freud elucidou na histérica, o que nos obriga a repensar a pertinência do par masculino/ativo, feminino/passivo. Os rituais obsessivos de um menino, descritos por Freud numa nota de pé de página um pouco mais adiante neste mesmo texto, podem então ser compreendidos como defesa contra o desejo de ser seduzido, logo de ser passivo.
Da mesma forma, um leitura mais atenta da questão edipiana mostra que as coisas são muito mais complicadas do que parecem. Num primeiro momento, o desenrolar do complexo de Édipo apresenta, no menino e na menina, uma certa simetria, o que sugere a existência subjacente de uma atração heterossexual natural e normativa. É isto que Freud descreve ao redigir o Caso Dora: na maioria das crianças observa-se uma inclinação precoce da filha em relação ao pai, e do filho em relação à mãe.
Contudo, as notas de pé de página mais tarde acrescentadas ao texto revelam outra história: além da atração de Dora por seu pai, encontramos também uma identificação a este último que se manifesta no amor homossexual de Dora pela Sra. K. A identificação masculina de Dora mostra que, na pulsão, não há nada naturalmente heterossexual.
A partir daí, Freud se encontra numa posição bastante desconfortável, ou até contraditória: se por um lado o Édipo sugere uma heterossexualidade normal, por outro os fatos clínicos indicam o contrário. (Não é por acaso que Freud acrescenta em 1915 uma série de notas aos Três Ensaios na tentativa de precisar melhor o sentido dos termos “masculino” e “feminino”.) Se a atração heterossexual não tem nada de natural, e ainda menos de inato, não faz sentido pensar em uma masculinidade, ou uma feminilidade, que viriam ao mundo com o bebê: feminilidade e masculinidade são subjetividades adquiridas independentemente do sexo anatômico do sujeito.

O papel do pai real
 
Sem reabrir o debate – absolutamente legítimo – sobre a pertinência da posição falocêntrica defendida por Freud, cabe lembrar que para ele a questão fundamental é saber como se opera, na menina, a passagem da fase “masculina” à “feminilidade normal” .
Embora as teorias de Freud sobre a feminilidade tenham sido objeto de inúmeros debates e controvérsias, pouco se diz sobre a masculinidade. Sobre esta questão, observa-se um inquietante silêncio, como se o fato de possuir um pênis constituísse em si uma garantia, espécie de salvo-conduto, permitindo a passagem “natural” da fase masculina à masculinidade. Ainda que o menino deva passar pelas fases do desenvolvimento com seus diversos percalços, a questão do “tornar-se menino” nunca foi objeto de grande altercações. Entretanto, este processo é bastante complexo.
Não se pode compreender a aquisição da masculinidade sem analisar a relação do filho com seu pai real, ou seja, com o personagem que permite ao sujeito – menino ou menina – de dizer (ou não) num segundo tempo, que ele de fato teve um pai. Não nos referimos aqui, evidentemente, ao pai como função, ao Nome-do-Pai, que certamente esteve presente, pois o sujeito se constituiu; o problema tampouco é compreender em que medida a realidade da presença física do pai implica na sua presença simbólica. Se feminino e masculino são as duas vertentes do falo, nos referimos àqueles que, a partir da inscrição na função fálica, se posicionaram no simbólico como homem.
A referência ao pai real é central em Freud: a relação pessoal que cada um tem com Deus reflete a “relação com o pai em carne e osso” ; da mesma forma, o protótipo do demônio forjado pelo sujeito se origina na relação com o pai ; o superego sádico de Dostoievski é atribuído a um pai na realidade particularmente cruel e violento.
Ao pai cumpre também a tarefa de substituir a mãe na proteção da criança pelo resto da infância contra os perigos de mundo externo como lemos em O Futuro de uma Ilusão. Do pai protetor da infância – o onipotente “pai herói” profundamente admirado, por vezes idolatrado, mas também temido – ficará a “nostalgia do pai”, sentimento que coincide com a necessidade de proteção ligada ao desamparo humano; e a origem do pai como protetor se encontra no pai da horda primária.
Ou seja, o pai que protege a criança no início da vida reatualiza o pai que, na aurora da humanidade, protegia os membros da horda contra os perigos do mundo exterior. No entanto, a partir de um determinado momento – ao longo da era glacial, continua Freud – quando as mudanças do meio ambiente superara a capacidade protetora do pai e este último não cumpria mais seu papel, o pai protetor passou a configurar o alvo por excelência da angústia do grupo: foi a interiorização do medo do real como “angústia do pai” que possibilitou a maturação do desejo de morte contra ele conferindo-lhe, ao mesmo tempo, sua função simbólica.
Para Freud, o complexo paterno que culmina com o assassinato do pai – “o crime principal e primevo da humanidade” – constitui o ponto onde se unem ontogênese e filogênese, a história de cada um e a História da humanidade: a morte do pai que cada criança tem que levar a cabo nada mais é que a reatualização da morte do pai primevo pelas “crianças” da horda primária. Na história de cada sujeito, o desejo de morte do pai se origina bem antes da situação edipiana, no momento em que ele aparece na cena do real fazendo “do desprazar uma experiência da qual ninguém está ao abrigo. “

Identificação e masculinidade
A relação do menino com o pai é, como se sabe, marcada pela ambivalência. No complexo de Édipo em sua forma mais completa, positiva e negativa, sob a égide da bissexualidade constitucional, duas vertentes se opõem e se conjugam: de um lado, uma atitude afetuosa para com o pai; de outro, uma hostilidade igualmente intensa em relação a ele, que se quer eliminar como rival. Ao final do complexo, estas tendências – que deverão ser recalcadas – se agruparão para produzir uma identificação: para aspirar a ser como o pai, é necessário parar de temê-lo.
Entretanto, no caso do recalcamento falhar, as tendências pulsionais afetuosas retornam como moções intoleráveis para o ego, exatamente por reatualizar a “atitude afetuosa feminina para com o pai”, reativando no mesmo movimento, a ameaça de castração. É isto que nos relata Freud através dos casos do Homem dos lobos, do Homem dos ratos, de Schreber e de Pequeno Hans: boa parte dos problemas psíquicos apresentados por estes sujeitos se devia ao retorno de elementos recalcados percebidos pelo ego do sujeito como “femininos”. Talvez por esta mesma razão, a paranóia, assim como algumas formas de perversão, exibem uma “preferência” pelo sexo masculino: a projeção de moções homossexuais não-integradas permite ao sujeito tratar um perigo pulsional interno como se fosse externo.
A angústia de castração, “no interesse de preservar sua masculinidade” , levará o menino a recalcar o hostilidade dirigida ao pai. Pode acontecer que o deslocamento para um objeto substitutivo constitua a única possibilidade encontrada para lidar com a hostilidade. É o que acontece na fobia: graças ao objeto fóbico, a criança pode dar livre vazão à hostilidade nascida da rivalidade com o pai, mas também à afeição dirigida ao pai, pois o objeto temido é também procurado.
Pode acontecer também, quando o pai não se torna o alvo da angústia da criança, que o mundo seja percebido como uma ameaça. Na origem da angústia de algumas pessoas, que se traduz por um “medo de tudo”, um desamparo estrutural, encontra-se uma imagem de pai que nunca foi percebida como sendo, por um lado, o pai que proibe – sabe-se de onde o perigo vem – e, por outro lado, o pai que protege: nestes sujeitos, a “nostalgia do pai” não se constituiu.
Outro elemento a considerar na construção da masculinidade é o modo como o pai investe o filho, e o desejo do pai por ele. Tornar-se pai é correr o risco de pressentir, tal como Laios, aquele que vai desejar sua morte; aceitar que seu filho seja seu sucessor, legar-lhe sua função, pressupõe que o pai saiba que o lugar que ele ocupa foi ocupado anteriormente por outro, e que seu filho, assim como ele, só o ocupará de modo transitório.
Ser apenas um elo na cadeia de gerações significa não apenas descobrir-se mortal, mas também compreender sua morte como conseqüência de uma lei universal, e não como uma punição retardada por desejos edipianos proibidos. Isso que dizer que na relação pai/filho se reatualizam também as ambivalências que marcaram a relação deste pai com seu próprio pai. Finalmente, a relação com o pai será, de alguma forma, o protótipo das relações do sujeito com outros homens.
Uma falha do pai em sua função de objeto identificatório – provavelmente devido a conflitos identificatórios deste pai com o seu próprio pai, um conflito transgeneracional – impede que o filho experiencie o complexo de Édipo em sua forma completa, o que terá conseqüências na construção de sua masculinidade. A clínica nos informa destas vicissitudes. Trata-se de pessoas que, embora sempre tenham tido uma prática heterossexual, apresentam, sob as mais diversas formas, fantasias homossexuais que podem ser definidas como ego-distônicas: embora as pulsões homossexuais tenham acesso à consciência, são experimentadas como totalmente insuportáveis, e a realização destas fantasias seria simplesmente inconcebível.
Quase sempre a procura de análise se deve ao medo desta “homossexualidade” vivida como um sintoma. A análise revela que em muitos destes casos a homossexualidade em questão é a mesma do período edipiano, que não pôde ser “vivida” com o pai. Se estas fantasias – que traduzem uma busca de masculinidade – são tão insuportáveis para o sujeito, é por serem vivenciadas como na relação edipiana, logo proibida, não com a mãe mas com o pai. (Deixaremos para outra ocasião a discussão mais detalhada deste ponto.)
De maneira geral, alguns fantasmas não-integrados ao ego e que podem ser percebidos como passivos, logo ligados à feminilidade, devem ser compreendidos como o retorno da corrente afetuosa em relação ao pai, que reativaria uma vez mais a ameaça de castração: é por isto que a posição masculina é tão freqüentemente ameaçada e que a feminina, segundo Freud biologicamente destinada às crianças do sexo feminino, é tão temida pelos homens.
Isto se torna particularmente claro nos adolescentes: entre os meninos é comum a fantasia de que se um deles tem na relação homossexual o papel passivo, é “mulher”; entre as meninas, a homossexual não é comparada a um homem. A distinção entre duas modalidades identificatórias que freqüentemente aparecem superpostas pode ajudar na compreensão desta dinâmica: de um lado, o sentimento que se estabelece bem cedo e que se traduz por: “eu sou menino” ou “eu sou menina”; de outro lado, o sentimento, bem mais complexo, cuja dinâmica só se completará na adolescência, que se traduz por “eu sou masculino” ou “eu sou feminina”.

Algumas considerações antropológicas
A antropologia é rica em observações e conclusões que mostram que o trajeto em direção à masculinidade deve ser construído, o que é feito através de rituais próprios a cada cultura, e também que o risco de perder esta masculinidade está sempre presente. As observações de Herdt sobre a “evolução” dos meninos em direção a masculinidade entre Sambia da Nova Guiné vão neste sentido.
Durante os dois primeiros anos de vida, meninos e meninas vivem exclusivamente com suas mães, até que progressivamente o pai aparece no universo da criança. A primeira etapa do longo percurso iniciático do menino, que culminará com a aquisição da masculinidade, começa em torno dos sete anos de idade, através de um ato concreto de separação. A certa altura, de maneira radical e abrupta, o menino é separado – por vezes literalmente arrancado – da mãe e, sob a pressão de severas sanções, impedido de dirigir-lhe a palavra, de tocá-la e até mesmo de olhá-la: é por este e outros expedientes que os rituais – e isto vale para toda e qualquer cultura – realizam aquilo que os pais não conseguem, ou não podem, fazer.
Para os Sambia, o modelo masculino identificatório é o do guerreiro capaz de matar, e a masculinidade, que nada tem a ver com a possessão do pênis, não é natural, muito menos inata: não se acredita, que os indivíduos do sexo masculino possuam os mecanismos endógenos necessários para a produção de esperma, o que constitui, para os Sambia, a base mesma do desenvolvimento masculino. Os meninos devem então, para tornar-se homens, ingerir esperma. Isto é feito através de rituais de felação precisos, rigidamente controlados pelas leis do incesto.
Tais rituais constituem verdadeiros segredos, e devem imperativamente ser escondidos das mulheres e das crianças. Os rituais de iniciação-aquisição da masculinidade, que se praticam entre os dez e os quinze anos, são divididos em várias etapas até que, no início da idade adulta, aquele que recebia o esperma se torne por sua vez doador. Quanto às meninas, por possuírem os orgãos capazes de produzir o sangue menstrual, a “aquisição” da feminilidade é tida pelos Sambia como um processo contínuo que começa no nascimento e se completa na maternidade, sem que isto coloque maiores problemas. Tudo que as meninas têm a fazer é passar alguns dias num universo feminino e, mais tarde, frequentar a família de seus futuros sogros.
“Adquirir” a masculinidade implica o risco de perdê-la. Para que isto não aconteça, inúmeros rituais e tabus – por exemplo, não tocar as excreções da mulher, respeitar os espaços exclusivamente femininos, etc. – são observados. Os contatos com as mulheres são a tal ponto temidos (justamente pelo medo de perder a masculinidade) que a simples possibilidade deles provoca verdadeiras crises de pânico.
A sociedade Semai, na Malásia central apresenta características diametralmente opostas. Embora os estudos de R. Dentan sobre esta sociedade merecessem ser longamente mencionados, para nossos propósitos nos ateremos somente a dois aspectos:
1 – a sociedade Semai cultiva qualidades não-competitivas, e a agressividade é considerada coisa intolerável;
2 – os Semai não fazem nenhuma pressão para que os meninos se tornem mais duros que as meninas.
A partir destes dados, a questão da “natureza” da masculinidade não mais se coloca; e saber quem é mais viril, o guerreiro Sambia ou o homem Semai, não faz nenhum sentido. Da mesma forma, os recalcamentos que cada um destes sujeitos serão obrigados a fazer devem ser compreendidos a partir dos suportes simbólicos do masculino e do feminino próprios a cada sociedade.
Na Grécia antiga, encontramos rituais de “aquisição” da masculinidade pelos quais esta última é transmitida corpo-a-corpo. Sob a forma de pedagogia, verdade e sexo se uniam a fim de transmitir um “saber precioso”: o sexo servia de suporte iniciático ao conhecimento. Entretanto, esta pedagogia só se aplicava aos meninos, que deviam, quando o momento chegava, tornar-se cidadãos: nada de similar existia para as meninas.
Em nossos dias, os “rituais” reservados pelo exército aos recrutas nada deixam a desejar aos antigos rituais iniciáticos quando à dureza e a crueldade da disciplina imposta. Isto é particularmente verdadeiro nos Marines americanos, entre os quais, para se ter acesso ao grupo dos homens, dos “verdadeiros”, é necessário despojar-se de toda contaminação feminina. A “filosofia” dos Marines é suficientemente clara: “Para se criar um grupo de homens, mate a mulher que está neles”.
A tudo isto, muitos outros dados podem ser acrescentados – o modo como deste o início da vida meninos e meninas são tratados de maneira diferente e as conseqüências daí oriundas – embora não se possam negar as mudanças evidentes que se vêm operando na sociedade contemporânea no que diz respeito às relações masculino/feminino.

Masculinidade: uma constante construção
O trajeto que leva o menino da posição masculina à masculinidade -resultado de um longo percurso que se constrói em um espaço político e social, através de diversos rituais e provas de iniciação – é extremamente complexo, e o fantasma de não a alcançar é uma presença constante. Por esta razão, é frágil e constantemente ameaçada: tem de se “forçar”, de alguma forma, seu desenvolvimento, sob pena de que ela não se manifeste. Não é por acaso que tantos tabus, proibições e expedientes são necessários para salvaguardar a masculinidade do perigo de contaminação pela feminilidade.
A relação do sujeito com seu próprio pai, ou com aquele que assume este papel, será decisivo para o modo como ele terá acesso as representações simbólicas do masculino: a identificação ao pai nos dá a chave para a compreensão da masculinidade. É no encontro com o pai, seja qual for o registro em que este se encontre – através dos avatares dos processos identificatórios do filho, dos investimentos do pai em relação ao filho, das particularidades do sistema social no qual o sujeito se encontra inserido – que se deve procurar compreender a aquisição da masculinidade bem como suas diferenças “qualitativas”.
A construção da masculinidade é um trabalho constante e a presença do pênis – central na formação imaginária do Eu e determinante para o trajeto identificatório assim como para a construção dos ideais – não constitui nenhuma garantia tangível contra o fantasma de castração.
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Paulo Roberto Ceccarelli*
* Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Membro da “Société de Psychanalyse Freudienne”, Paris, França; Consultor científico (Editorial Reader) do “International Forum of Psychoanalysis”; Membro do Conselho Científico da Revista Psychê; Membro do Conselho Científico da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental; Membro Fundador da ONG TVer; Vice-presidente do TVer-MG; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG; Conselheiro Efetivo do X Plenário do Conselho Regional de Psicologia da Quarta Região (CRP/O4).