sábado, 12 de novembro de 2016

CRÔNICA: O DUPLO CORTE NA CARNE DA ALMA

Delicadamente passa a mão fechada pela navalha de duas lâminas, sentindo um suave arrepio pelo corpo sentindo. Sobre a palma da mão dois cortes simétricos que se misturam em uma única mancha de sangue. Um a representar as próprias vísceras, a própria carne; outro a representar uma agressividade contra o mundo ao redor, contida, a se voltar, impiedosa, insustentável, remoendo o corpo da mão cortada. Uma única mancha de sangue.
Nasceu assim como todo mundo. Um pequeno conjunto biológico com fome e com sensações fisiológicas completamente desorganizadas. Ao mamar, além do leite, foi familiarizando-se com o humano, à revelia, ocupando um lugar predestinado de pessoa pobre e submissa ao poder do outro forte. Como todo mundo, as sensações fisiológicas foram se organizando contra a vontade, em um primeiro trauma, em um primeiro conflito, costumeiramente denominado de desenvolvimento sexual normal. Um pequeno impasse acompanhou já desde a infância. O que é ser normal? Indignação e revolta, não mais como todo mundo, no largar o prazer do corpo todo e submeter-se entre a mãe submissa e o pai violento. Uma luta interna marcada pela violência de não resignar-se, intolerante à submissão, intolerante à agressividade. E a intolerância encontrou-se com o ódio. E o ódio ficou no avesso do que foi, reprimido e latente.
Não me ouve quem me diz ‘pense positivo’, pois não vive a vida dentro de mim.
No resto, sobrou a pergunta eterna de uma existência inteira. Por que a primazia do gênero e do genital se o corpo inteiro é prazer sensível? Por que não poder ser menino e menina? Uma única mancha de sangue no corte simétrico na palma da mão. Por que do preconceito percebido desde cedo demais? O mundo impõe-se e a reação não tarda. No amadurecer opta por lutar, fazer prevalecer-se.
E assim foi crescendo, entre socos e pontapés, em um corpo polimorfo, erotizado, com ojeriza de gente. Na incompreensão de si, na luta imersa no conflito, o compromisso foi um delírio persecutório, um quadro de horror e surrealidade, de repulsa e atração simultânea ao sexual.
Não me ouve quem me diz ‘seja feliz’, pois não vive a vida dentro de mim.
Naquela sala estranha, não de repente, o estranho foi tomando forma de discurso. Uma fala tímida e agressiva aos dois da sala foi esboçando-se em história a ser contada. Enfim, era possível começar as respostas de certas perguntas. Duas manchas de sangue a formar uma única aquarela. Colorida. Todas as cores são coloridas. Não só rosa. Não só azul. Não só cinza. E a paleta trouxe a tela, e a tela a compreensão de si/mundo de si/mundo para si. E a dor não passou...
Sabe... Quando eu acreditava que o terror se encontrava dentro de minha cabeça era mais fácil... mais fácil. Saber que está no mundo, é desconfortável... Antes era mais fácil.”
E vai vivendo a vida do jeito que dá. Às vezes, ao olhar a palma da mão, duas pequenas cicatrizes simétricas surgem onde não há mais sangue. Made in Mundo Humano.

MARCOS INHAUSER SORIANO é psicanalista.