quinta-feira, 23 de maio de 2013

O ESTRATO PULSIONAL DO SENTIMENTO RELIGIOSO







O governo benevolente de uma Providência divina mitiga nosso temor dos perigos da vida; (…) e o prolongamento da existência terrena numa vida futura fornece a estrutura local e temporal em que essas realizações de desejo se efetuarão.
Freud, 1927

INTRODUÇÃO
Não nos passa despercebido como a questão da desesperança, da falta de perspectiva e de confiança no futuro, e outras tantas inquietações tem nos interpelado das formas mais diversas. Nas produções acadêmicas, qualquer que seja a área do conhecimento, esta temática marca sua presença em publicações, trabalhos, congressos, encontros, grupos de estudo… No espaço público, nos deparamos igualmente com manifestações populares – religiosas, consumistas, políticas, e suas soluções – que tem arrebatado cada vez mais adeptos em busca de repostas, como atesta o significativo aumento de movimentos fundamentalistas que acolhem a angústia produzida por esta situação.
Uma tal organização psicossocial marcaria a chamada pós-modernidade que se caracterizaria por um descrédito nas ciências como fonte de verdade; o fim das metanarrativas: narrativas totais e globalizantes que ordenam e explicam tanto o conhecimento, quando a experiência. Os grandes esquemas explicativos caíram em descredito fazendo com que não haja mais "garantia" posto que nem a ciência pode ser considerada como a fonte da verdade (Lyotard, 1979). As verdades construídas na modernidade – a crença na razão, na capacidade da ciência em dar respostas – foram profundamente questionadas, o que produziu uma reavaliação do estatuto do conhecimento nas sociedades pós-industriais, gerando consequências sociais. Teria ocorrido uma “deslegitimação do conhecimento” (Lyotard, 1979, 38): um conhecimento que se justifica por si mesmo sem nada que o legitime. A pergunta passou a ser: “O que é o conhecimento, e quem sabe como decidi-lo?” Responder a esta questão, ter este controle, é ter poder.
O fim das certezas, as mudanças nas organizações familiares, e os subsequentes desdobramentos sociais, estaria levando uma ruptura social, e acirrando a sensação de desesperança além de gerar, dentre outras, uma violência sem precedentes. Autores como Lebrun (1997) e Melman (2002), apoiados no tema da ruptura do laço social, argumentam que sociedade fragmentou-se dando lugar a códigos de conduta inconciliáveis e ao descredito da autoridade paterna no âmago da família, o que estaria abalando profundamente o equilíbrio familiar, logo o social. A desesperança generalizada na pós-modernidade levam a esta autores a profetizam um futuro catastrófico.
Por minha parte (Ceccarelli, 2006, 2010), penso que concordar com tais previsões apocalípticas é esquecer o que a história nos ensina e, ao mesmo tempo, negar o fato inelutável que cada época tem a sua maneira de “ler o mundo” sem que uma seja necessariamente melhor que a outra. A violência sempre estive presente desde a aurora da humanidade, a começar pela primeira família que não escapou à rivalidade dos irmãos (Gen., 4, 8), o primeiro problema que a nossa espécie teve que enfrentar após o assassinato do tirando da horda, “o crime principal e primevo da humanidade” (Freud, 1928, 211).
Desde sempre, civilizações utilizaram-se da violência para (tentar) dominar outras, e as guerras sempre existiram. Os grandes descobrimentos, assim como os conquistadores que marcaram a História, a ascensão e a queda de regimes totalitários, tudo isto foi acompanhado por uma virulência que destruiu, e continua a destruir, civilizações e culturas através do mundo. Preconceito, discriminação e segregação, com o seu infindável cortejo de intolerância, levou na Idade Média milhares de indivíduos, sobretudo mulheres, à fogueira; e a caça às bruxas, continua, ainda que de forma um pouco mais velada, na atualidade. Isto significa que o mal-estar (Unbehagen) inerente à cultura manifesta-se em ressonância com momento sócio-histórico em questão; e, da mesma forma, cada época utiliza-se do imaginário cultural tanto para explicá-lo quanto para mascará-lo. É neste sentido, assim me parece, que Freud escreve sobre as três fases da evolução do pensamento da humanidade – a animista, a religiosa e a científica – cada uma tentando, a sua maneira, lidar com o desamparo (Hilflosigkeit). Ele apoia suas hipóteses em observações clínicas: histeria é a caricatura de uma obra de arte; uma neurose obsessiva a caricatura de uma religião; e um delírio paranóico a caricatura de um sistema filosófico (Freud, 1912).
Entretanto, como escrevi em um outro texto, nenhuma destas leituras do real – animista, religiosa ou científica – poderá acolher o nosso desamparo. As verdades que propõem são sempre fragmentárias, e susceptíveis de transformarem-se em um sistema de crença de massa. Todo discurso, inclusive o científico e o psicanalítico, contém elementos de crenças infantis – logo míticos – que se originam nas teorias sexuais da infância (Ceccarelli, 2009).
Tais considerações sugerem que, em sua origem, o ser humano foi marcado por incertezas e desesperanças que são maneiras, versões diferentes, de atualização do desamparo constitutivo da espécie. Para lidar com este desamparo, o ser humano sempre recorreu ao longo de sua história aos expedientes que disponha.
O desamparo que nos interesse neste debate não se refere apenas ao período de tempo no qual o bebê humano depende de um outro para aliviar suas tensões (Freud, 1926) mas, antes, do desamparo psíquico: devido à inexistência de um aparelho psíquico inato, o recém nascido não tem como lidar com as exigências pulsionais filogeneticamente herdadas (Freud, 1987). Graças às ligações pulsionais efetivadas por Eros, se produzirão os investimentos libidinais destinados a confortarem, imaginariamente, o Eu em constituição: a singularidade da história de cada um, a partir da relação de total dependência que o recém nascido estabelece com quem lhe deu vida psíquica, testemunha as respostas frente ao universal do desamparo.
Nesta perspectiva, não fica difícil entender que aceitar as novas reorganizações pulsionais tributárias das mudanças sociais só é possível através do trabalho de luto das representações que, até então, balizavam nossa locomoção no simbólico. Trata-se do que Ehrenberg chama de “o mito do enfraquecimento da regra social” (Ehrenberg, 2004, 140), que nos leva a acreditar que a ordem simbólica na qual estamos inseridos é imutável. O fato dos modelos que construímos não mais nos ampararem atestam que toda leitura do mundo é historicamente datada. Reabrir a ferida do desamparo provoca, inevitavelmente, o retorno dos eternos questionamentos: quem somos? de onde viemos? para onde vamos? o que nos constitui como sujeitos? o que vai acontecer diante de tantas mudanças? e assim por diante. Não é por acaso que o passado – quando “eu era feliz e ninguém estava morto” (F. Pessoa) – exerce um forte apelo sempre que o presente nos parece doloroso. É para lá que voltamos na esperança de encontrarmos “o encantamento de nossa infância, que nos é apresentada (…) como uma época de ininterrupta felicidade” (Freud, 1939, 89).
Se, como vimos, desemparo é constitutivo do humano, e o mal-estar uma realidade inerente à cultura, pois ambos resultam do conflito pulsão X trabalho de cultura (Kulturarbeit), as respostas que o sujeito encontra para suportar esta situação primordial serão procuradas nos elementos que a cultura lhe oferece. É por isto que, do ponto de vista da dinâmica psíquica e das configurações da angústia, nada podemos dizer sobre as diferenças quando tudo era garantido e explicado pelos desígnios de Deus (Idade Média), quando a ciência nos dava as explicações e garantia um futuro previsível (Modernidade), ou ainda quando não existem garantias (Pós-modernidade). “Não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão” (Freud, 1930, 108).
Se, já o disse, cada época tem a sua própria configuração de angústia, podemos imaginar que antes do nascimento da modernidade, toda incerteza encontrava acolhimento nas identidades culturais e/ou nas comunidades religiosas que ofereciam referências claras e tranquilizadoras, pois imutáveis. Na atualidade, a economia de mercado transforma os que não são objetos de investimento libidinal em concorrentes potenciais – o inferno é o outro -, gerando uma solidão e, por vezes, um anonimato urbano, que exacerba ainda mais o sentimento de desamparo. Muitos, para tentar escapar a esta situação, lançam mão de comportamentos aditivos em sua inúmeras vertentes – drogas, violência, posições fundamentalistas de todo tipo, compulsividade sexual, e muitas outras – para evitar o contato com representações inconscientes cujos conteúdos são profundamente ameaçadores: "com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações' [aqui a os comportamentos aditivos cumprem esta função], é possível, em qualquer ocasião afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade" (Freud, 1929, 97).
Sendo os sintomas uma relação de compromisso, e levando-se em conta que o adoecer psíquico só pode ser compreendido dentro da dinâmica pulsional da cultura onde emerge (Freud, 1930), a particularidade dos sintomas contemporâneos, que alguns chamam de novos sintomas, tem feito com que a sociedade ocidental seja cada vez mais marcada por uma busca de sentido. Muitas vezes, e este é o ponto que nos interessa, esta busca de sentido é endereçada à psicanálise e ao religioso. De início, uma primeira pergunta se impõe: qual a relação entre psicanálise e religião? Que fundo pulsional atravessaria tanto a psicanálise quanto o religioso para que ambos sejam procurados para responder ao desamparo? Enfim, independentemente da religião escolhida, haveria algo da ordem do religioso no psiquismo humano?
Em A questão da análise leiga, Freud chama a atenção para a importância da psicologia da religião no formação do analista:
A instrução analítica abrangeria ramos de conhecimento distantes da medicina e que o médico não encontra em sua clínica: a história da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura. A menos que esteja bem familiarizado nessas matérias, um analista nada pode fazer de uma grande massa de seu material (Freud, 1926b, 278).
Mas, a que serviria estar "bem familiarizado" com a psicologia da religião? Para separar religião e psicanálise como campos distintos, fazendo com que a psicanálise não seja nem contra e nem a favor da religião? Ou para afirmar que a experiência psicanalítica produz inevitavelmente um ateísmo, posto que desvela que toda experiência religiosa é, sem si, uma ilusão?
O que a experiência clínica nos mostra é que em certos casos o religioso pode fazer resistência ao processo analítico, sobretudo quando ocorre uma culpabilização do sexual; em outros, entretanto, observamos que o religioso contribui para o processo analítico. Isto significa que a relação entre a psicanálise e o religioso não é única, e tudo depende do discurso religioso e a prática da psicanálise. Ou seja, do estar "bem familiarizado" com a psicologia da religião.
A partir das reflexões citadas, gostaria de tecer algumas considerações, que não são conclusivas, sobre uma questão bastante ampla sobre a qual venho pesquisando: como o religioso foi trabalhado por Freud e Lacan e, ao mesmo tempo, o lugar social que o religioso e a psicanálise ocupam na atualidade. Se não estamos incluindo as importantíssimas contribuições e Jung para o tema neste trabalho é que, inclui-lo no debate, foge ao escopo atual. Trataremos de suas contribuições oportunamente.

Em Freud
O primeiro texto freudiano no qual a religião é mencionada data de 1907: Atos obsessivos e práticas religiosas. Ali, Freud destaca semelhanças entre alguns atos obsessivos e da prática religiosa: ao repetir um ato da forma mais perfeita possível a fim de evitar o surgimento da angústia, o obsessivo estaria renunciando as pulsões sexuais, da mesma forma que o religioso renunciaria as pulsões egoístas. E mais: enquanto o obsessivo cria, por assim dizer, uma religiosidade que lhe é própria, o religioso estaria respondendo a uma neurose coletiva. Mais tarde, cabe lembrar, Freud reavaliará suas conclusões sobre este ponto.
Para Freud, "sentimento religioso" tem por origem o desamparo (Hilflosigkeit) constitucional do ser humano, ao qual nos referimos anteriormente. Ao constatar a sua condição de total dependência do outro para sobreviver física e psiquicamente, o bebê humano não pode furtar-se a este sentimento. O desamparo torna-se ainda mais evidente frente a ausência, não apenas da presença do outro, mas de respostas as suas necessidades: o vazio o ameaça. A quem recorrer? À nostalgia do passado, responde Freud; nostalgia de um tempo de felicidade quando tudo estava garantido por um Pai onipotente: "Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai" (Freud, 1930, 90). Somente a crença, a fé, em uma potencia superior onipotente e protetora pode acolher a angústia do desamparo: este seria, para Freud, a origem do sentimento religioso.
Esta relação de continuidade entre o pai da infância e a crença em Deus, as "raízes da necessidade de religião", fora enunciada em 1907 em Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância. A passagem, embora grande, merece ser citada:
A psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o complexo do pai e a crença em Deus. Fez-nos ver que um Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que uma exaltação do pai. Verificamos, assim, que as raízes da necessidade de religião se encontram no complexo parental. O Deus todo-poderoso e justo e a Natureza bondosa aparecem-nos como magnas sublimações do pai e da mãe, ou melhor, como reminiscência e restaurações das idéias infantis sobre os mesmos. Biologicamente falando, o sentimento religioso origina-se na longa dependência e necessidade de ajuda da criança; e, mais tarde, quando percebe como é realmente frágil e desprotegida diante das grandes forças da vida, volta a sentir-se como na infância e procura então negar a sua própria dependência, por meio de uma regressiva renovação das forças que a protegiam na infância. A proteção contra doenças neuróticas, que a religião concede a seus crentes, é facilmente explicável: ela afasta o complexo paternal, do qual depende o sentimento de culpa, quer no indivíduo quer na totalidade da raça humana, resolvendo-o para ele, enquanto o incrédulo tem de resolver sozinho o seu problema (Freud, 1907, pp. 112-113. O grifo é meu).
Freud parece ratificar a continuidade entre o pai da infância e a crença em Deus ao falar da "tríplice missão" dos deuses: "exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs" (Freud, 1927, 29). Nasceria assim um "cabedal de ideias" resultado da "necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana" (Freud, 1927, 30). Se o segredo da força das ideias religiosas reside "na força desses desejos" [a de um pai protetor para tornar suportável o desamparo], o valor de tais ideias reside no fato de não poderem ser provadas nem refutadas.
Em O mal-estar na civilização, respondendo a Romain Rolland sobre o sentimento oceânico – "uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras" (Freud, 1930, 81) – Freud retoma, por um outro caminho, a questão do desamparo. Ele aceita a existência deste sentimento embora, admita, nunca tê-lo experimentado em si próprio. Mas, ao contrário de Rolland, ele não vê ai a "fons et origo" da necessidade de religião. Para Freud, o sentimento ‘oceânico’ não seria uma prova da existência de Deus, como defende Rolland, mas derivar-se-ia do fato de que nosso sentimento atual do ego nada mais é do que "um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo – na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca" (Freud, 1930, pp. 85-86). Este sentimento, continua Freud, teria persistido em graus variados em muitas pessoas, paralelamente de um sentimento mais "demarcado da maturidade". Contudo, em circunstâncias favoráveis como em uma regressão que "volte suficientemente atrás", tal sentimento "pode ser trazido de novo à luz". Ou seja, quando o desamparo se torna insuportável, tenderíamos a regredir ao ego onipotente do narcisismo primário, a um mundo indiferenciado.
Na perspectiva freudiana, o trabalho analítico consistiria, dentre outras coisas, em fazer o luto da imago infantil do pai protetor e autoritário para não mais depender dele e, ao mesmo tempo, acrescentamos, ser pai para si mesmo. Ou seja, livrar-se do sentimento religioso que sustentaria a necessidade de dependência do pai da infância. "Esta necessidade deve ser sublimada", escreve Freud a Jung na carta de 13 de fevereiro de 1910. Esta passagem sugere que Freud não nega a existência da necessidade do sentimento religioso. O problema é quando esta necessidade – que pode ser entendido como um investimento libidinal na nostalgia do pai – não é sublimada, e se transforma em uma revivência neurótica do arcaico.

Em Lacan
É a partir de dois textos freudianos sobre a gênesis da religião – Totem e tabu e Moises e o monoteísmo – que Lacan faz suas considerações sobre a relação entre psicanálise e religião. Nestes textos, Deus encarna o retorno do Pai, não devido ao desamparo mas, antes, em razão da sexualidade infantil, ou seja, do complexo de Édipo que transmite à humanidade o interdito do incesto. A importância do mito apresentando em Totem e tabu é de ser "talvez o único mito que a época moderna foi capaz de criar. E foi Freud que o inventou" (Lacan, 1986, 208). O Pai onipotente e tirano que possui todas as mulheres – o Urvater – retorna como Pai na religião, no amor ao divino. Este retorno se dá por etapas: o Totem, animal incorporado por canibalismo; os heróis e os deuses que possuem forma humana; o monoteísmo do faraó Akhenaton; e, finalmente, o Deus mestre e pai de Moises, fundador do judaísmo. A morte do Pai permite a passagem da imagem ao nome, que se efetiva no monoteísmo de Moises. Por isto, observa Lacan (1986, 227) "só o cristianismo dá seu conteúdo pleno, representado pelo drama da Paixão, ao natural desta verdade que chamamos a morte de Deus". Este "progresso da espiritualidade" produz, também, a passagem do ódio ao amor pelo Pai; não havendo mais imagem, só resta o nome: o Nome-do-Pai. Nome este, diga-se de passagem, que por não poder ser pronunciado, gera um vazio criador (Lacan, 1986, 155) o qual, justamente, a religião tenta negar. O mito do assassinato do pai é um mito de um tempo em que Deus está morto. "Mas, se Deus está morto para nós, é por que ele está morto desde sempre (…) ele só foi pai na mitologia dos filhos" (Lacan, 1986, 209). À pergunta "'o que é um Pai?' Freud responde: 'é o pai morto'" (Lacan, 1966, 812).
Para falar deste Deus que não se nomeia por si só, e que só pode ser nomeado do Nome-do-Pai, Lacan utiliza-se várias vezes da passagem bíblica do livro do Êxodo (3, 13-14) quando Moises replica a Deus: "Quando eu me dirigir aos filhos de Israel, eu direi: 'O Deus dos antepassados de vocês me enviou até vocês'; e se eles me perguntarem: 'Qual é o nome dele?' O que eu vou responder?" Deus disse a Moisés. "Eu sou aquele que sou". Ou seja, Ele não tem um nome pronunciável.
Este pai inominável é trabalhado por Lacan em três registros:
• No simbólico: lugar do significante, a paternidade é o Nome-do-Pai que designa um lugar. Isto significa, vimos, que o Pai não se nomeia: ele é nomeado pela mãe para ocupar um lugar; lugar que indicará à criança o seu desejo como mulher, indicando para esta última que ela não é o objeto de desejo da mãe mas, sim, um efeito deste desejo.
• Ter um pai todo poderoso e forte, castrador e protetor, revela a dimensão do pai: o Urvater, possuidor de todas as mulheres, interditadas aos filhos. Este pai está na origem do Superego; é o Grande Homem, do qual nos fala Freud em Moisés e o monoteísmo. Entretanto, este pai que acolhe o desamparo da criança se revelará um dia ser, ele também, desamparado, e incapaz de garantir à criança a proteção que – imaginariamente – ela dele esperava.
• A solução ao conflito entre o pai no simbólico e o pai no imaginário será dada pelo pai no real, o que possibilita fazer o luto do Pai ideal. O pai no real é o homem que ocupará o lugar instaurado e transmitido à criança no simbólico, pela mãe como mulher desejante. O desejo do pai real não se identifica à imagem de um pai onipotente, que poderia transformá-lo em um pai psicotizante, como o pai de Schreber .
Estas três dimensões do pai são solidárias e indissociáveis: nenhuma é mais importante do que a outra; cada uma delas depende da outra mas, ao mesmo tempo, serve de referência às demais. Embora Lacan tome emprestado do discurso cristão o lugar no simbólico do Nome-do-Pai, ele inova ao introduzir "o real do pai, o seja, o lugar do sexual na lei do desejo" (Julien, 2008, 68).
Algumas reflexões
Mesmo assim, o problema continua: "Freud", escreve Lacan (1986, 119) "nos deixou frente ao problema de uma hiância (béance) renovada a respeito da Das Ding, que é o dos religiosos e dos místicos, quando nada mais se pode colocar sob a garantia do Pai".
Se a questão do sentimento religioso atravessa toda a obra freudiana, há de se perguntar porque Freud não se deu por satisfeito ao responde-la a partir do assassinato do pai. "É que o elemento afetivo [do sentimento religioso] lhe escapa; aquilo que faz o fundo, e não a norma da crença religiosa" (Mijolla-Mellor, 2004, 278). Quando não se pode mais contar com a garantia do Pai frente a ausência de significantes na cadeia associativa, nada resta ao sujeito senão produzir sentido para não ser invadido pelo pulsional. A necessidade de acudir o desamparo não é da realidade, e sim do psiquismo; é algo do subjetivo sem nenhuma objetividade. Ai está, assim nos parece, o fundo pulsional que atravessa tanto a psicanálise quanto o religioso: embora de forma radicalmente diferente, tanto uma, quanto o outro, oferecem respostas ao desamparo. "Na confissão o pecador conta o que sabe; na análise o neurótico tem mais a dizer" (Freud, 1926b, 215). Tanto em uma, quanto na outra, deparam-se com a impossibilidade de saber, com uma hiância irredutível.

Paulo Roberto Ceccarelli*
Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Pós-doutor por Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da Société de Psychanalyse Freudienne, Paris, França; Membro fundador da Rede Internacional em Psicopatologia Transcultural; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG. Professor visitante da pós-graduação da Faculdade de Ciências Humanas ESUDA, Recife/PE. Professor credenciado a dirigir pesquisas de pós-graduação, e pesquisador no Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará, em Belém. Pesquisador Associado do LIPIS. Pesquisador do CNPq.

BIBLIOGRAFIA
CECCARELLI, Paulo Roberto. Violência e cultura. In: Traumas. Rudge, A. (org). São Paulo: Escuta, p. 111-123. 2006.

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