quinta-feira, 23 de maio de 2013

A SEDUÇÃO DO PAI































in GRIFOS. Publicação anual do Instituto de Estudo Psicanalíticos – IEPSI – Belo Horizonte, número 18, out. 2001, pp. 91-97. 
Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai.
Sigmund Freud [1]

Introdução
Em um trabalho anterior debati a questão, relativamente pouco estudada em psicanálise, da construção da masculinidade [2]. Nele, insisto na importância da relação do sujeito com o seu pai da realidade, ou com aquele que assume este papel, para o acesso às representações simbólicas do masculino e, consequentemente, de como o sujeito experimentará sua masculinidade.
Mostrei também como, em Freud, a referência ao pai real é central. Para Freud é da relação com o pai em carne e osso, que o sujeito forja o protótipo de Deus [3] e também o do demônio [4]; é por ter tido um pai particularmente violento e cruel na realidade que Dostoievski [5] desenvolve um superego sádico. Ao pai, a tarefa de substituir a mãe na proteção da criança pelo resto da infância contra os perigos de mundo externo, como lemos em O Futuro de uma Ilusão.
Do onipotente pai herói – o grande homem da infância [6] – profundamente admirado, por vezes idolatrado, mas também temido – ficará a nostalgia do pai, sentimento que coincide com a necessidade de proteção ligada ao desamparo humano [7]. É também ele que vai, via ameaça de castração, – o pai que castra mas que protege – marcar e direcionar, por assim dizer, o desejo do filho.


Ainda nesse texto, discuti a dificuldade, dentro da obra freudiana, de chegar-se a uma definição satisfatória do par masculino/feminino: ao não subordinar masculino e feminino a dados biológicos, genéticos ou hereditários, Freud faz destas noções construções psíquicas.
Neste trabalho gostaria de avançar um pouco mais a discussão: se o masculino é uma construção psíquica, a masculinidade é uma representação. Toda representação (Vorstellung) – é resultado de um investimento [8] basicamente de traços mnésicos logo, suscetível de ser decomposta em seus elementos originais. Na situação analítica isto significa a reconstrução de seus movimentos constitutivos, inclusive daqueles que foram esquecidos, recalcados, clivados: os avatares dos processos identificatórios, o lugar que o sujeito ocupa na economia libidinal da família, os investimentos dos pais em relação ao filho, as particularidades do contexto social no qual o sujeito se encontra inserido…
Como sabemos, no complexo de Édipo em sua forma completa, positiva e negativa e sob a égide da bissexualidade constitucional, duas vertentes se opõem e se conjugam: de um lado, uma atitude afetuosa para com o pai; de outro, uma hostilidade igualmente intensa em relação a ele. Mais tarde, estas tendências deverão ser recalcadas produzindo uma identificação [9]: para aspirar ser como o pai, é necessário parar de temê-lo. Quando o recalcamento falha, as tendências pulsionais afetuosas retornam como moções intoleráveis para o ego, exatamente por reatualizar a atitude afetuosa feminina para com o pai, reativando no mesmo movimento, a ameaça de castração.
A proposta deste texto é seguir, na criança do sexo masculino, um dos possíveis destinos da corrente afetuosa, que é um dos elementos constitutivos da masculinidade, e as variáveis identificatórias que ela pode produzir.

O pai protetor/sedutor
O personagem central da teoria da sedução, longamente debatida entre os anos de 1895 e 1897, é o pai. O pai sedutor ao qual Freud se refere – a mãe como sedutora só aparecerá mais tarde na teoria freudiana – é o pai acusado de perversão, responsável pela histeria de suas pacientes. Nesta série de “pais-perversos” Freud inclui o seu próprio: Infelizmente, meu próprio pai, escreve Freud [10], foi um desses pervertidos e é responsável pela histeria de meu irmão (cujos sintomas, em sua totalidade, são identificações) e de várias das minhas irmãs mais moças. (Ao que tudo indica, apenas o pequeno Sigmund teria escapado!)
De maneira geral, a sedução ocorria com mulheres. Talvez a única exceção se encontre na carta de 6 de dezembro de 1896 onde o pai é apresentado como sedutor do filho: Assim ela [a paciente de Freud] conjeturou que as preferência sexuais do filho derivavam do pai; e que este fora também o sedutor do primeiro [11].
Por outro lado, se, para os dois sexos, a mãe é o primeiro objeto de amor, assimilar-lhe a atividade sedutora na análise da situação edipiana, sobretudo no caso do filho, é limitar tal análise à sua conseqüência antropológica mais comum. A dimensão da sedução pelo pai, nos dois sexos, apresenta conseqüências que têm sido pouco exploradas pelos psicanalistas [12].
O pai do qual eu gostaria de falar neste trabalho não é o pai sedutor que aparece na fala das histéricas, nem o pai que castra mas que também protege. Trata-se, antes, de um pai que estabelece uma relação muito particular com o filho e que vive, na maioria das vezes fantasmaticamente, uma situação na qual este último é colocado como objeto de desejo lá onde a companheira deveria estar; um pai que, ao invés de encontrar o seu gozo junto a uma mulher, procura-o em sua relação com a criança.
O pai que se “oferece” ao filho como possibilidade de objeto de desejo inverte seu papel: ao invés de ser aquele que castra, ele seduz. Se, segundo Lacan, [13] a imago do pai, nos dois sexos, polariza as formas mais perfeitas do ideal do eu, vemos que a “sedução do pai”, que compromete o recalcamento da corrente afetuosa e o da hostil, , o que terá conseqüências tanto na resolução edipiana quanto na formação dos ideais. Neste caso, a integração simbólica, que só é possível via um conflito imaginário, não ocorre impedindo a introjeção da imagem edipiana [14]. O estado de coisas gerado pela “sedução do pai” terá repercussões na construção da nostalgia da proteção do pai [15], elemento de peso na estruturação do mundo interno do sujeito.
Inicialmente é importante sublinhar que o pai como função, o Nome-do-Pai, não faltou, pois o sujeito se constituiu. Também não se trata do pai que se faz legislador, que se coloca como pilar da lei, produzindo aquilo que Lacan vai chamar de efeitos destruidores da figura paterna [16]. Meu interesse é insistir, seguindo os passos de Freud, na importância do pai da realidade nos processos constitutivos do sujeito. Observa-se quase que um descuido neste ponto. O uso excessivo do conceito de “função paterna”, indiscutivelmente fundamental para a teoria/prática psicanalítica, corre o risco de relegar, quando não ignorar, a importância do pai da realidade.
Centrar o debate na “sedução do pai” não significa, em absoluto, que este elemento seja determinante na solução apresentada pelo sujeito. Apenas que, neste texto, privilegiarei este aspecto de fundamental importância na construção da psicossexualidade. É por isto que a participação da mãe na “sedução do pai” não é tratada aqui, embora pareça-me evidente que, sem a sua cumplicidade, tal “sedução” não teria ocorrido. Pela mesma razão, a questão da bissexualidade não será abordada.
Antes de prosseguir, uma observação se faz necessária. Embora o termo “escolha” continue sendo amplamente utilizado – fala-se de “escolha” homossexual, “escolha” heterossexual – a palavra “solução” parece-me cada vez mais adequada. A “escolha de objeto”, homo ou heterossexual, é uma “solução” encontrada pelo sujeito que está se constituindo frente às comunicações verbais e pré-verbais dos pais – que podem ser contraditórias – a respeito dos elementos constitutivoos da identidade sexuada, da interpretação que a criança faz destes significantes, do lugar que se espera que a criança ocupe na economia libidinal da família… e assim por diante. A palavra “solução” deve ser entendida no sentido matemático do termo: uma equação que comporta diferentes variantes frentes às quais, tal como em um sistema vetorial de forças, uma resultante, uma solução, será encontrada. Neste sentido, aquilo que chamamos de identidade – com toda discussão que este termo comporta em psicanálise – é uma solução, ou se preferimos um sintoma, no sentido psicanalítico do termo: uma formação de compromisso frente as múltiplas variáveis com as quais o sujeito tem que lidar desde o seu nascimento.

A sedução do pai
Tradicionalmente, ao analisarmos os conflitos pulsionais – a ambivalência – presentes na situação edipiana recorremos à versão clássica do mito que sugere a existência de uma atração heterossexual natural e normativa. Entretanto, o mito possui outras variantes que indica que, na pulsão, nada existe de natural e ainda menos de inato. Segundo uma das versões, Édipo teria matado seu pai Laios durante uma briga onde ambos disputavam o amor do belo Crisipo, filho de Pélops [17]. É no mínimo curioso que esta versão do mito não tenha recebido, principalmente por parte dos psicanalistas a começar pelo próprio Freud [18], a atenção que ela merece. Sem dúvida, analisar o complexo de Édipo nesta vertente abre novas e interessantes perspectivas identificatórias. Podemos supor que Crisipo tornou-se o depositário não apenas da corrente afetuosa filho-pai, mas também daquela do pai em relação ao filho – o pai reedita e atualiza com o filho, e no filho, os conflitos de sua própria situação edipiana. Nesta configuração edípica marcada por intensos investimentos homossexuais – caracterizando aquilo que chamo de “sedução do pai” – o recalque da corrente afetuosa/hostil em relação ao pai torna-se problemática.
As vicissitudes desta corrente podem ser acompanhadas em diversas configurações psíquicas. Entretanto, foi em algumas expressões da homossexualidade que pude observá-la mais de perto. Porém, é importante sublinhar que não existe relação direta entre a “sedução do pai” e a solução homossexual. Mesmo porque, como Freud já observara:
Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até as disposições instintivas [19]. 

Meu propósito, então, limita-se à tentativa de seguir os caminhos pulsionais da “sedução do pai” nesta forma de expressão da sexualidade. Segundo minha hipótese, a solução homossexual pode, em alguns casos, permitir que o sujeito invista a corrente afetuosa dirigida ao pai quando este último não exerce sua função de pai edípico, ou seja, na ausência de ameaça de castração. Um pequeno fragmento clínico pode ilustrar esta hipótese.

Considerações clínicas
O sujeito, que chamarei de João, procurou análise queixando-se de “dificuldades afetivas”. Só após algum tempo de trabalho analítico foram abordados os aspectos homossexuais constitutivos de sua identidade. Com isso quero dizer que, para João, sua homossexualidade não era sintomática.
O trabalho analítico não relevou qualquer ligação particular com a mãe, nem tampouco uma figura paterna ausente, como sugere a Freud na maioria dos textos que trata a questão homossexual [20]. Ao contrário: o pai de João foi bastante presente, e foi a “qualidade” dessa presença que participou na sua solução homossexual.
João apresenta comportamento masculino, sem afetação, e nada em sua atitude indicaria o estereótipo de “gay”. No ato sexual, prefere o que se chama de papel ativo. A escolha dos parceiros apresenta um característica: devem ser pessoas para quem ele possa ser “pai”, como se nele o aspecto crucial do pai protetor estivesse ausente. Foi a partir dessa hipótese que, em determinada altura da análise, pude colocar uma questão fundamental para se compreender a dinâmica identificatória de João. Diante da pergunta esclarecedora “Você diria que teve um pai?” a resposta foi: “Não”. Aqui, “pai” refere-se ao personagem com o qual o sujeito se identifica e através do qual são adquiridas as referências simbólicas da masculinidade.
Outra particularidade de João, que pude observar em outros sujeitos com histórias semelhantes, é a reação que apresenta diante de situações onde deve ser “pai para si mesmo”; situações do cotidiano, nas quais tem que enfrentar e, por vezes, disputar com outros homens. Nessas ocasiões, João é tomado por uma angústia muito grande, ao ponto de evitar ao máximo tais situações.
João passou pelo seguinte “episódio de sedução” com o pai.
João morava em Paris enquanto seu pai residia, havia algum tempo, na Martinica. Ele, que nunca tinha ido visitar o pai, um dia resolveu fazê-lo, “para conhecer o local”. Segundo disse, os amigos de seu pai não sabiam que ele tinha um filho, quanto mais já adulto. Após alguns dias, seu pai lhe disse estar achando muito engraçado o fato de todos pensarem que eles eram namorados. Aparentemente, a situação era bem prazeirosa para o pai que nada fez para esclarecer o equívoco e ainda insistiu em imaginar, solicitando para isso a cumplicidade do filho, o que as pessoas estariam pensando da relação deles. Profundamente desconfortável diante da atitude do pai, João insistiu para que ele esclarecesse o mal-entendido, o que foi feito finalmente sem, contudo, deixar de comentar a imaginária relação homossexual dos dois.
A partir de deste fato e de sonhos produzidos, João fez associações importantes que o remeteram a outros acontecimentos semelhantes. A carga afetiva que alguns deles continham – traduzida por angústia proporcional ao recalque – era de tal forma intensa que a recordação da representação associada foi vivida como ameaçadora. A análise destes acontecimentos permitiu-lhe compreender melhor a construção da sua psicossexualidade e de suas escolhas sexuais, revelando também certos aspectos de seus pais.
À medida que pôde entender e, conseqüentemente, elaborar melhor os conflitos com seu pai, João passou a viver sua vida afetiva de maneira mais satisfatória, menos carregada de angústia e de culpa. Isto permitiu-lhes aproximar-se mais “do homem dentro dele” para utilizar uma expressão do próprio João.

Outros destinos
Outras configurações clínicas, que sem dúvida merecem aprofundamento mais exaustivo, serão citadas apenas em linhas gerais.
Como já foi dito, a sedução do pai não é exclusiva daqueles que adotam uma solução homossexual. Tive oportunidade de ouvir relatos semelhantes outros pacientes (heterossexuais) com os quais ocorreram situações de sedução bem mais concretas: estes pacientes disseram ter sido masturbados várias vezes pelo pai. Estes homens procuraram análise em razão de grandes dificuldades, não só em suas vidas sexuais mas também quanto a estabelecer relações afetivas.
O retorno da corrente afetuosa em relação ao pai pode apresentar-se de uma forma que, à primeira vista, corre o risco de ser confundida com homossexualidade não assumida. Por não constituírem sintoma, estas expressões da sexualidade são vividas pelo sujeito com relativa tranqüilidade fantasmática. Às vezes acontece que só são trazidas para a situação clínica após um certo tempo de trabalho analítico. Trata-se de pessoas que se encaixam nos padrões sociais da normalidade: são heterossexuais, alguns casados, às vezes têm amantes, satisfazem sexualmente suas parceiras. Enfim, são o que se costuma chamar de “homens de verdade”. Pois estes homens sentem, por vezes, vontade não de penetrar, mas de se fazer penetrar. O particular desta situação é o fato de haver uma separação, por vezes total, entre sexualidade e sensualidade. Tais sujeitos não gostam – sem que exista algum mecanismo de repressão ou de recalque envolvido – de qualquer manifestação de afeto: beijos, toques, abraços, carinhos.
Encontramos muitos deles entre os clientes dos travestis. Também a pornografia pode constituir, para alguns, um meio de dar expressão a esta forma de sexualidade. Ou então criam encontros “por acaso” em situações anônimas: viagens, praias, clubes, saunas, etc. Além disso, não têm, e nem querem ter, parceiros fixos nem apreciam algum tipo físico em especial: o que importa é, antes, o fato de serem penetrados. Em análise, um deles relatou ter certa vez procurado um travesti negro, pois sabia da fama de que os negros são “bem-dotados”. Tendo estimado o tamanho do seu pênis, pediu-lhe que o penetrasse. O que queria era sentir “tudo aquilo dentro”, não obstante a dor. Apenas isto: sem afeto, sem contato.
A análise destes casos revelou que a fantasia de incorporação anal/genital do pênis paterno era uma tentativa de identificação com o pai, segundo o modelo freudiano, que trata a incorporação como o primeiro modo de identificação com o pai; uma tentativa de apropriar-se completamente do pai ideal, aquele que protege [21]. Em outras situações, a busca de identificação se dá via felação, ou seja, pela incorporação oral do pênis paterno, tal como é apresentado em Totem e Tabu. Tais práticas, além disso, informam-nos sobre o destino que a corrente afetuosa em relação ao pai pode tomar.
Em alguns, o ser penetrado parece representar uma maneira de investimento, em negativo, da corrente afetuosa: a atitude dita passiva adotada pelo sujeito é a forma encontrada para fazer frente à angústia gerada pela ausência de ameaça de castração.
Em outros casos, parece que a penetração expressaria uma tentativa de se livrar do peso dos elementos constitutivos da representação da masculinidade, elementos que traduzem não só o imaginário social, mas também o investimento parental sobretudo o do pai em relação à criança do sexo masculino: ser penetrado é livrar-se do fardo da masculinidade.
Uma outra situação, bastante significativa, foi-me relatada por um paciente que procurou-me por recomendação médica, devido a “stress”. Falando de sua prática sexual, disse que o fato de uma mulher não ser atraente nunca o impediu de fazer amor com ela. Em situações nas quais a pessoa não lhe despertava qualquer excitação, ele “evocava o macho dentro de [si]” para provar que era homem de verdade. Pode-se facilmente imaginar o custo psíquico de tal “evocação”.
Nas chamadas sexualidades adictivas, ou em algumas formas de neo-sexualidade, pode-se também observar as marcas da sedução do pai” [22]. Joyce McDougall diz que na dimensão adictiva da sexualidade – no contexto heterossexual ou homossexual – ocorre um colapso das funções parentais internas. A esta observação, eu acrescentaria que uma das razões deste colapso é a sedução que o pai exerce no filho.
O colapso das funções parentais, que atesta a impossibilidade de se evocar a nostalgia da proteção do pai, pode também ser observado na drogadicção: frente ao desamparo (Hilflosigkeit) original e não podendo apelar para o pai – no sentido da nostalgia do pai – em busca de proteção, a droga pode produzir um “arrimo de segurança”, espécie de ilusão [23], da volta ao paraíso perdido numa tentativa de restabelecer o estado «oceânico» rompido. O apelo ao pai é um pedido de proteção contra a castração – logo, contra a morte – num contexto onde a castração já se deu, ou seja, onde já houve função paterna.
(Vale lembrar que o desamparo original não deve ser compreendido apenas do ponto de vista biológico. Para o bebê, o que a falta do Outro traz não é a morte biológica mas, antes, a morte ontológica que tem sua expressão máxima em algumas formas de psicose. A função essencial do Outro primordial encarnada inicialmente pela mãe é a de introduzir a criança no mundo da metáfora onde os objetos secundários substituem os primordiais: para manter-se o narcisismo secundário, o do eu, deve-se sacrificar o narcisismo primário. O bebê humano que recusasse esta necessidade seria impensável como humano, excluindo-se da cultura.)
Lacan [24], na análise que faz de Hans, fala da importância do pai real para a aquisição da função sexual viril. Para que o complexo de Édipo ocorra, o pai deve assumir a função de pai castrador a função de pai de forma concreta. Lacan observa a dificuldade de Hans em suportar seu pênis real, à medida que este não é ameaçado. A carência do pai castrador torna a situação intolerável. Isto vai obrigar Hans a se inscrever numa linha matriarcal, encontrando na figura da avó o substituto paterno. A partir daí, segundo Lacan, Hans desenvolve uma estrutura narcísica em suas relações com as mulheres, circunstância que leva à sua solução fóbica. Entretanto, uma leitura atenta do Caso Hans revela o quanto seu pai, com o apoio de Freud, era antes um “pai amigo”: esta posição é uma variante da sedução do pai.
É crescente o número de crianças, principalmente meninos, que são encaminhados para terapia por apresentarem “problemas” de identidade. Desde os primeiros encontros fica claro qual a “qualidade” da relação dessas crianças com a figura masculina e, conseqüentemente, é possível avaliar se a imago paterna pode ou não servir-lhes de suporte identificatório. Estas crianças exibem, por vezes, certos comportamentos ditos “femininos”. Entretanto não se trata de crianças que apresentem uma orientação homossexual, embora esta situação também possa existir. Seriam antes meninos que, devido à particularidade de suas constelações familiares, identificaram-se com as referências simbólicas que, em nossa sociedade, são atribuídas às meninas. Isto pode ser gerador de angústia nos pais, principalmente nas mães que “cobram” dos maridos aquilo que eles não podem dar.
Digno de nota é o fato de que, em muitos destes casos, os pais dos meninos estão em crise em relação às referências sociais da masculinidade às quais não conseguem corresponder. Uma exploração dos elementos, principalmente inconscientes, presentes no trajeto identificatório destes pais revela, em muitos casos, uma problemática bastante próxima àquela apresentada pela criança, relativisada pela diferença de gerações e pelas mudanças no contexto social.
Nesta perspectiva, não seria exagerado dizer que a chamada “crise do masculino”, tão estudada e debatida neste fim de milênio, seja conseqüência da dificuldade, cada vez mais acentuada, que tanto a corrente afetuosa quanto a hostil têm para encontrar suporte identificatório. As referências simbólicas do masculino, que são construções sociais sem nenhuma ancoragem na “realidade” anatômico-biológica, estão em constante movimento e, como sabemos, qualquer mudança gera angústia, pois implica o desinvestimento de antigas posições libidinais, em favor de novas.
Uma palavra sobre as psicoses: os destinos da corrente afetuosa/hostil em relação ao pai podem ajudar-nos a compreender algumas formas de psicose, em particular a paranóia.
Evidentemente, a situação neste contexto é bem diferente das anteriores, pois estamos no registro da psicose onde a metáfora paterna não se realizou [25]. A análise do caso Schreber, por exemplo, revela a sua impossibilidade de viver a corrente afetuosa em relação a seu pai. Entretanto, cabe a pergunta: além de uma projeção, não seria a homossexualidade em Schreber uma busca de figura masculina que servisse de suporte identificatório na construção da masculinidade? Isto significa que o lugar que Schreber atribui ao Dr. Flechsig, e mais tarde a Deus, pode ser compreendido como uma tentativa de encontrar um depositário para a corrente afetuosa que não pôde ser vivida com seu próprio pai. Nesta perspectiva, a projeção, que é busca de identificação, é vivida de forma persecutória. Da mesma forma, em O Homem dos lobos, O Homem dos ratos, e no Pequeno Hans, boa parte dos problemas psíquicos apresentados por estes sujeitos devia-se ao retorno de elementos recalcados percebidos pelo ego do sujeito como “femininos”. Talvez por esta mesma razão, a paranóia, assim como algumas formas de perversão, exibem uma “preferência” pelo sexo masculino: a projeção de moções homossexuais não-integradas permite ao sujeito tratar um perigo pulsional interno como se fosse externo.
De uma maneira geral, acredito que a razão pela qual as moções homossexuais são tão temidas por alguns analisandos – o contato com tais moções pode chegar a provocar desorganização psíquica – deve-se ao fato de estarem apoiadas em representações carregadas de afeto em relação ao pai. Quando reinvestidas, tais representações despertam angústias ligadas à ameaça de castração. Na prática psicanalítica, é de fundamental importância distinguir quando as moções homossexuais, que se manifestam como projeção ou como desejos inconscientes por vezes ego-distônicos, representam uma homossexualidade (ainda?) não assumida pelo sujeito, ou quando tais moções são uma busca de identificação. Limitar alguns movimentos projetivos a desejos homossexuais recalcados é esquecer o “radical homossexual” [26] presente na masculinidade.

Para concluir
O complexo de castração é uma reação às limitações impostas pelo pai à atividade sexual precoce do filho [27]. Entretanto, se o pai não integra suas pulsões eróticas/agressivas e as vive, ainda que na fantasia, com o filho, ele repete conflitos que não foram elaborados com seu próprio pai: no encontro pai/filho, as marcas edipianas significantes do encontro desse pai com seu próprio pai serão reatualizadas. Como escrevi em outro lugar: Tornar-se pai é correr o risco de pressentir, tal como Laios, aquele que vai desejar sua morte; aceitar que seu filho seja seu sucessor, legar-lhe sua função; pressupõe que o pai saiba que o lugar que ele ocupa foi ocupado anteriormente por outro, e que seu filho, assim como ele, só o ocupará de modo transitório. Ser apenas um elo na cadeia de gerações significa não apenas descobrir-se mortal, mas também compreender sua morte como conseqüência de uma lei universal, e não como uma punição retardada por desejos edipianos proibidos [28].
Pode acontecer que o pai, incapaz de reconhecer e suportar os investimentos eróticos do filho, seja-lhes hostil. Freqüentemente, neste caso, um circuito de desinvestimentos se estabelece: devido à ansiedade causada por tais investimentos, vivida pelo pai com uma ameaça à sua masculinidade, ele desinveste o filho, afasta-se deste. Inevitavelmente, este último vive esse afastamento como uma rejeição – e, de fato, o é – e, por sua vez, desinveste o pai. Uma tal rejeição pode gerar um sentimento de depreciação, de baixa auto-estima, em outros aspectos da vida. Mas o oposto pode também acontecer: aqui, é o filho que vai afastar-se do pai para evitar que este reconheça os seus sentimentos eróticos. Acredito que o relato de ter tido “um pai distante” e o de “ser mais próximo da mãe” que alguns sujeito trazem, tenha aqui suas origens.
Para Freud, vale lembrar, o complexo paterno que culmina com o assassinato do pai – o crime principal e primevo da humanidade [29] – constitui o ponto onde se unem ontogênese e filogênese, a pequena história com a grande História: a morte do pai que cada criança tem que levar a cabo nada mais é que a reatualização da morte do tirano pelas “crianças” da horda primária.
Quando o pai não assegura o lugar de depositário tanto da corrente afetuosa quanto da intensa hostilidade do filho – ou quando a interiorização do medo do mundo externo não é transformada em angústia do pai [30] – a criança vê-se impedida de experimentar seus sentimentos ambivalentes. Isto pode prejudicar a maturação do desejo de morte do pai e entravar a identificação com o pai edipiano. Sem essa identificação, sua função simbólica se vê comprometida. E é justamente esta dimensão simbólica, própria do humano, que transforma o tirano em pai e os membros em irmãos.
Quando o pai simbólico não se apresenta, o sujeito não poderá evocar a imago paterna protetora para ser, por sua vez, pai para si mesmo. Pode acontecer que, na tentativa de elaborar essa carência, o sujeito atue como pai nos seus relacionamentos. Muitas vezes, ele exercerá o papel de pai para com seu próprio pai, colocando os limites lá onde o pai não o consegue. Assim, em diferentes circunstâncias de sua vida, ele lançará mão do pai imaginário com toda a fantasmática a ele ligada. Se a única figura de pai continua sendo a do “tirano”, que pode castrar ou seduzir, a relação do sujeito com o mundo, mas sobretudo com outros homens, corre o risco de, em determinadas ocasiões, apresentar-se sob um modo persecutório ou histérico.
Notas
[1] – FREUD, Sigmund (1933). O mal-estar na civilização. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI, p. 90.
[2] – ; CECCARELLI, P. R., “A construção da Masculinidade. in Percurso, v. 19, 1998, 49-56.
[3] – ; FREUD, Sigmund (1912-13). Totem e Tabu. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIII, p. 176.
[4] – ; FREUD, Sigmund (1923). Uma Neurose demoníaca do século XVII, Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XIX, p. 111.
[5] – ; FREUD, Sigmund (1928). Dostoievski e o parricídio. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI, p. 214.
[6] – ; FREUD, Sigmund (1939). Moisés e o monoteísmo. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v. XXIII, p. 131.
[7] – ; FREUD, Sigmund (1933). O mal-estar na Civilização. Op.Cit., p. 90.
[8] – FREUD, Sigmund (1915). O inconsciente. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV.
[9] – FREUD, Sigmund (1923). O Ego e o Id. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XIX, p. 45 e seg.
[10] – MASSON, Jeffery. A correspondência completa Freud-Fliess, 1887-1904. Carta de 8/2/1897. Rio de Janeiro: Imago, 1986, p. 232.
[11] – Ibid., 214.
[12]- Em um texto recente, Laplanche faz um observação neste sentido. Conf. LAPLANCHE, JEAN. Le prégénital freudien: à la trappe. A propos du livre d’André Green: «Les chaînes d’Éros». Actualité du sexuel. in Rev. franç. Psychanal., nº 4, Paris, 1997, p. 1359-1369.
[13] – LACAN, Jacques. Les complexes familiaux. Paris: Navarain, 1984, p.65.
[14] – LACAN, Jacques. Le séminaire, Livre III. Les psychoses. Paris: Seuil, 1981, p.240.
[15] – FREUD, Sigmund (1933). O mal-estar na Civilização. Op. cit.
[16] – LACAN, Jacques. D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose. in Ecrits.Paris: Seuil, 1966, p. 579.
[17] – GRIMAL, Pierre. Dictionnaire de la Mythologie Grècque et Romaine. Paris: PUF, 11ème édition, 1991, p. 248.
[18] – Talvez Freud não tenha trabalhado esta possibilidade devido a questões intrínsecas à maneira como lidou com homossexualidade ao longo de sua obra. Este aspecto é particularmente claro na correspondência Freud/Jung.
[19] – FREUD, Sigmund (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XVIII, 211.
[20] – Numa extensa nota de rodapé, acrescentada em 1915 aos Três ensaios, Freud apresentou a síntese mais completa do seu pensamento científico – mas também humano – sobre o tema da homossexualidade.
[21] – FREUD, Sigmund (1921). Psicologia de grupo e análise do ego. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, v. XVIII.
[22] – McDOUGALl, Joyce. As múltiplas faces de Eros. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 204.
[23] – A palavra “ilusão” é empregada aqui no mesmo sentido utilizado por Freud. Cf. FREUD, Sigmund (1927). O futuro de uma ilusão. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI. Neste mesmo texto, Freud fala do uso da droga como um recurso ante o desamparo do homem.
[24] – LACAN, Jacques. Séminaire IV, La relation d’objet. Paris: Seuil, 1994, 220.
[25] – Não cabe aqui uma discussão detalhada sobre o caso Schreber. Remeto o leitor ao trabalho de Lacan sobre as psicoses. Cf. LACAN, Jacques. Séminaire III, Les pyshoses. Paris: Seuil, 1981.
[26] – VANGGAARD, Thorkil. Phallós: A symbol and Its History in the Male World. New York: International University Press, 1972.
[27] – FREUD, Sigmund (1933). Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976, Conf. XXI, v. XVI.
[28] – CECCARELLI, P. R., “A construção da Masculinidade”, Op. cit.53.
[29] – FREUD, Sigmund (1928). Dostoievski e o parricídio. Op. cit., p. 211.
[30] – FREUD, Sigmund (1933). Neuroses de transferência: um síntese. Rio de Janeiro: Imago, 1985, p. 77.
Resumo: A “sedução do pai” se configuraria quando, no Édipo, o pai inverte o seu papel: ao invés de ser aquele que castra, ele seduz. Apoiado na clínica, o Autor afirma que na criança de sexo masculino a sedução do pai impede que as duas atitudes edipianas em relação ao pai – afeição e hostilidade – sejam transformadas em uma identificação. São debatidas as conseqüências disso sobre a construção da “nostalgia da proteção do pai”, assim como a transformação deste pai em pai simbólico.
Palavras chaves: sedução, pai, identificação, recalque.
Summary: The “seduction by the father” is disclosed when, in the Oedipus complex, the father reverses his role: instead of being the one who castrates, he seduces. Based on clinical data, the Author says that, in the male child, the seduction by the father hampers the transformation of the two oedipal attitudes towards the father into identifications. The consequences of this fact upon the construction of the “nostalgia of the father’s protection” are discussed, so as the transformation of this father into a symbolic father.
Key words: seduction, father, identification, repression

Paulo Roberto Ceccarelli*

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