quinta-feira, 23 de maio de 2013

ÉTICA E EXERCÍCIO DA PROFISSÃO






(Texto apresentado para discussão e reflexão nas preparações que antecederam o IV Congresso Nacional de Psicologia em março de 2001 )
O tema do IV Congresso Nacional de Psicologia – Qualidade, ética e cidadania na prestação de serviços: construindo o compromisso social da Psicologia – deixa claro o compromisso que se espera de nós em relação à nossa prática profissional, e propõe diretrizes de reflexões que engajam os psicólogos com o futuro da profissão.
A movimentação em torno do congresso tem sido grande, e um documento foi preparado para um melhor esclarecimento das propostas do congresso. A leitura deste documento, suscitou-me algumas inquietudes que divido com os colegas. Minha intenção, no presente texto, é a de chamar a atenção para certos pontos que, a meu ver, merecem uma reflexão mais detida para melhor levarmos a cabo as propostas do IV CMP.
Sem dúvida, a questão da ética é um ponto central no exercício da profissão. Entretanto, como falar de ética, de relações entre sujeitos, no projeto neo-liberal onde o sujeito, reduzido a consumidor, transforma-se em objeto? Nesta perspectiva, mais do que discutirmos o que é “ética”, suas bases filosóficas e evolução histórica, não podemos evitar a questão de como, se é possível, construir uma proposta social baseada na ética dentro dos padrões atuais do liberalismo econômico. O que significa “ser ético” dentro das leis do mercado de consumo? De que ética estamos falando?
Se, por um lado, concordamos que a ética permite a possibilidade de expressão de diversidades em um espaço público onde se reconheça “a inexistência de valores universais apriorísticos”, por outro lado, não podemos nos furtar a pergunta de como trabalhar eticamente quando sabemos que uma das características da globalização é exatamente a negação da individualidade? Uma das pedras angulares desta economia é a criação de valores que se querem universais. Para isso, códigos de consumo são ditados e apresentados como “valores de felicidade”: se você tiver isso, comprar aquilo, será feliz. Uma das consequências desta “filosofia” é substituir, ou mesmo eliminar, os ideais pessoais que não se enquadram na cultura “objetiva” globalizante, o que pode levar à um empobrecimento, por vezes radical, da subjetividade. A mídia, e principalmente a TV, constitui um dos veículos privilegiados de divulgação deste “valor”. Um dos mais notáveis efeitos desta forma de economia é a perda das referências identificatórias e de valores individuais.
No que diz respeito à cidadania, ela está intimamente relacionada com a questão da ética. Só se pode falar de “espaço possibilitador da presença da diversidade humana” se o sujeito é reconhecido como tal. Com efeito, como falar de “cidadania”, de “participação social” quando vivemos em uma situação sócio-econômica onde o governo não garante o direito à cidadania? Tal situação tem produzido uma descrença generalizada em lideranças confiáveis e, consequentemente, uma falta de perspectiva e de confiança no futuro. Isso tem efeitos particularmente dramáticos nas camadas sociais menos favorecidas, vítimas potenciais da propaganda perversa do capitalismo.
Temos, então, que pensar o que significa falar de ética, de cidadania. Como por em prática as propostas do IV Congresso Nacional em relação ao compromisso social da psicologia, num contexto sócio-econômico onde boa parte da população com quem nós psicólogos tencionamos atuar é profundamente desrespeitada? Como viabililizar o compromisso social e atuar numa realidade onde, chegado o momento de receber da sociedade o que lhe é devido, os seus direitos fundamentais, o sujeito não é acolhido, vendo-se impossibilitado de utilizar sua força de trabalho para participar, como cidadão, na construção e transformação social? Não é de se estranhar que, frente a uma tal exclusão, frente a um social perverso, produza-se uma ruptura profunda, por vezes definitiva, com o social: creio termos aqui uma componente importante da delinqüência.
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Minha intenção ao apresentar estas reflexões é lembrar da necessidade de um aprofundamento da discussão, não apenas em torno da Qualidade, ética e cidadania na prestação de serviços, mas antes, de como fazer, quais as diretrizes de atuação, para podermos, de fato, implantar esta proposta. Como ser ético num contesto\ globalizante? Como separar, se é que é possível, nossa atuação nas mais diversas área da psicologia, das leis do mercado às quais, queiramos ou não, estamos assujeitados? Como, nestas condições, prestar um serviço profissional de “forma refletida, transparente e expressiva dos valores éticos que se tem”, esclarecendo e avaliando “a ética que está subjacente ao fazer profissional”? Enfim, o que significa ser “um sujeito produtor de ética” no contexto neo-liberal?
Frequentemente somos confrontados, e convocados a intervir, – seja no âmbito social, institucional, ambulatorial ou nos consultórios particulares – com a violência. Nessas ocasiões, questões éticas são incontornáveis: se, por um lado, é relativamente “fácil” teorizar e propor soluções para a violência que se manisfesta, por exemplo, em acontecimentos com o ocorrido na FEBEM de São Paulono final de 1999, por outro, é bem menos confortável termos que lidar não apenas com a violência de nossos vizinhos e de nossos familiares mas, principalmente, com a delinqüência (violência, tráfico de drogas, delitos em geral…) das classes mais abastadas, justamente aquelas que pagam os honorários mais altos. Ou ainda: o que entendemos por ética – a quem servimos? – naquelas situações onde o psicólogo é extremamente bem pago para utilizar seus conhecimentos a fim de aumentar os lucros da empresa?
Gostaria de deixar bem claro que não estou, em absoluto, fazendo criticas à qualquer área que seja do exercício da profissão, do profissional, e muito menos ainda propondo soluções para questões tão complexas: não sei se tais respostas existem. Minha intenção é apenas lembrar que não podemos deixar tais considerações fora do debate quando falamos de ética.
Acredito ser fundamental para um exercício profissional pautado na ética – e isso vale para qualquer profissão – estarmos cientes das motivações sócio-econômicas-ideológicas que sustentam nossa prática e que influenciam diretamente nossa sobrevivência. Não podemos ter a pretensão de que seria possível nos livrarmos destas contingências, e agir como se estivéssemos fora da sociedade observando-a com a mesma suposta neutralidade de um cientista que estuda suas lâminas através do microscópio. Será possível separar o exercício da ética destas contingências? Como reagir frente a “ética” que está a serviço do cidadão e a que que está a serviço do sistema?
Paulo Roberto Ceccarelli*

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