quinta-feira, 23 de maio de 2013

ALUCINAÇÕES E DELÍRIOS


Alterações sensoperceptivas e do pensamento são importante indicadores da sanidade mental. 



Alucinação é a percepção real de um objeto inexistente, ou seja, são percepções sem um estímulo externo. Dizemos que a percepção é real, tendo em vista a convicção inabalável que a pessoa manifesta em relação ao objeto alucinado, portanto, será real para a pessoa que está alucinando.

Sendo a percepção da Alucinação de origem interna, emancipada de todas variáveis que podem acompanhar os estímulos ambientais (iluminação, acuidade sensorial, etc.), um objeto alucinado muitas vezes é percebido mais nitidamente que os objetos reais de fato.

Tudo que pode ser percebido pode também ser alucinado e isso ocorre, imaginativamente, com maior liberdade de associações de formas e objetos. NaAlucinação, por exemplo, um leão pode aparecer de asas, ou um caracol que cavalga um ouriço. O indivíduo que alucina pode ter percebido isoladamente cada umas das formas e, mentalmente, combinado umas com as outras.

As alucinações podem manifestar-se também através de qualquer um dos cinco sentidos, sendo as mais freqüentes as auditivas e visuais. O fenômeno alucinatório se diferencia da ilusão no que tange à existência de estímulo externo já que na Alucinaçãonão há estímulo e na ilusão o estímulo é percebido de forma deformada, ou em uma simplificação a ilusão é um “engano”dos sentidos. 

O fenômeno alucinatório tem conotação muito mais mórbida que a ilusão, sendo normalmente associado à estados psicóticos que ultrapassam a simplicidade de um engano dos sentidos. Na Alucinação o envolvimento psíquico é muito mais contundente que nos estados necessários à ilusão.

1 - Alucinações Auditivas
Alucinação é a percepção real de um objeto inexistente, ou seja, são percepções sem um estímulo externo. Dizemos que a percepção é real, tendo em vista a convicção inabalável da pessoa que alucina em relação ao objeto alucinado. Sendo a percepção daAlucinação de origem interna, emancipada de todas as variáveis que podem acompanhar os estímulos ambientais (iluminação, acuidade sensorial, etc.), um objeto alucinado muitas vezes é percebido mais nitidamente que os objetos reais de fato.

Tudo que pode ser percebido pelos 5 sentidos (audição, visão, tato, olfato e gustação) pode também ser alucinado. As alucinações sempre aproveitam o material consciente conhecido do pacientes. Na Alucinação, por exemplo, um leão pode aparecer de asas, ou um caracol que cavalga um ouriço. O indivíduo que alucina deve ter percebido isoladamente cada um dos objetos e, mentalmente, combina uns com os outros.
Embora as alucinações possam manifestar-se através de qualquer um dos cinco sentidos, as mais freqüentes são as auditivas e visuais.

Como as mais freqüentes, podem aparecer sob forma de sons inespecíficos, tais como chiados, zumbidos, ruídos de sinos, roncos, assobios, ou vozes, as quais podem ter as mais variadas características: diálogos entre mais de um interlocutor, comentários sobre atos do paciente, críticas sobre a pessoa que alucina, podem ainda, por outro lado, proferir injúrias e difamações, comunicar informações fantásticas, sonorizar o pensamento do próprio paciente ou de terceiros. Na idéia do paciente tais vozes podem ser provenientes do além, do sobrenatural, dos demônios ou de Deus, etc.

O fenômeno de perceber uma voz que não existe (percepção de objeto inexistente) é aAlucinação propriamente dita e, interpretá-la como sendo a voz do demônio, de Deus, dos espíritos mortos ou uma audição telepática já faz parte do DELÍRIO. Este, freqüentemente, acompanha a Alucinação. Ouvir vozes faz parte da sensopercepção e atribuir a elas algum significado faz parte do pensamento, cujos distúrbios veremos adiante.

Algumas vezes as vozes alucinadas podem determinar ordens ao paciente, o qual as obedece mesmo contra sua vontade. Diante desta situação, de obediência compulsória às ordens ditadas por vozes alucinadas, chamamos de AUTOMATISMO MENTAL. Esta situação oferece alguma periculosidade, já que, quase sempre, as ordens proferidas são eticamente condenáveis ou socialmente desaconselháveis.

Normalmente, a Alucinação auditiva é recebida pelo paciente com muita ansiedade e contrariedade pois, na maioria das vezes, o conteúdo de tais vozes é desabonador, acusatório, infame e caluniador. Quando elas ditam antecipadamente as atitudes do paciente falamos em SONORIZAÇÃO DO PENSAMENTO, como se ele pensasse em voz alta ou como se alguma voz estivesse permanentemente comentando todos seus atos: " lá vai ele lavar as mãos", "lá vai ele ligar a televisão" e assim por diante.

2 - Alucinações Visuais
São percepções visuais, como vimos, de objetos que não existem, tão claras e intensas que dificilmente são removíveis pela argumentação lógica. Mesmo o paciente referindo ter visto apenas vultos, tais vultos são muito fielmente percebidos, portanto são reais para a pessoa que os percebe. O objeto alucinado pode não ter uma forma específica: clarões, chamas, raios, vultos, sombras, etc, ou têm formas definidas, tais como pessoas, monstros, demônios, animais, santos, anjos, bruxas.

Há determinadas ocasiões onde o transtorno visual alucinatório adquire a consistência de uma cena, uma situação como, por exemplo, ver uma carruagem passando pela paciente e dela descer um príncipe. Neste caso falamos em ALUCINAÇÕES ONIRÓIDES, como se transcorresse num sonhar acordado. No Delirium Tremens do alcoolista, por exemplo, as alucinações visuais têm uma temática predominantemente de bichos e animais peçonhentos (cobras, aranhas, percevejos, jacarés, lagartos) e, neste caso, damos o sugestivo nome de ZOOPSIAS, promovedoras de grande ansiedade e apreensão.

Nas situações onde o paciente se vê fora de seu próprio corpo falamos em ALUCINAÇÕES AUTOSCÓPICAS e, quando ele consegue ver cenas e objetos fora de seu campo sensorial, como enxergar do lado de fora da parede, teremos as ALUCINAÇÕES EXTRA-CAMPINAS.

O conteúdo das alucinações é extremamente variável, porém, guarda sempre uma íntima relação com a bagagem cultural do paciente que alucina. Não é possível alucinar com alguma coisa que não faça parte do mundo psíquico do paciente. Um físico nuclear pode alucinar com um certo brilho atômico a revestir seus inimigos, enquanto um cidadão menos diferenciado, com um espírito do morto a rondar sua casa, ambos porém, independentemente do nível sócio-cultural têm a mesma probabilidade de alucinar. A sofisticação e exuberância do material alucinado dependerá da bagagem cultural de quem alucina mas não interfere na valorização semiológica do fenômeno.

3 - Alucinações Táteis
A percepção de estímulos táteis sem que exista o objeto correspondente é observada principalmente nas psicoses tóxicas e nas psicoses delirantes crônicas, como veremos adiante. Nestes casos, principalmente no Delirium Tremens ou na dependência de cocaína, o paciente sente-se picado por pequenos animais, insetos esquisitos, vermes que caminham sobre a pele, pancadas, alfinetadas, queimaduras, estranhos carrapatos que penetraram em algum orifício fisiológico,etc. Freqüentemente as alucinações táteis com pequenos insetos é acompanhada por um Delírio de infestação também chamado de Síndrome de Ekbom. Não são raros os casos de Alucinação tátil que se caracteriza pela sensação de ter-se as pernas puxadas à noite ou estrangulamento, sufocação ou opressão antes de conciliar o sono.

Quando esta percepção falseada diz respeito aos órgãos internos ou ao esquema corporal falamos em ALUCINAÇÕES CENESTÉSICAS. Nestes casos os pacientes sentem como se tivessem seu fígado revirado, esvaziado seu pulmão, seus intestinos arrancados, o coração rasgado, o cérebro apodrecido e assim por diante. As Alucinações Cenestésicas devem ser diferenciadas das ALUCINAÇÕES CINESTÉSICAS, que não dizem respeito à sensação tátil, mas sim aos movimentos (cine-movimento). Nas cinestesias os pacientes percebem as paredes movendo-se ou eles próprios movendo-se no espaço.

Exemplo: um paciente delirante crônico sentia que seu cérebro estava infestado de germes, os quais, esporadicamente, escorriam-lhe pelo nariz. Neste caso uma Alucinação Tátil Cenestésica. Outro queixava-se de inúmeros percevejos que furavam-lhe a pele o tempo todo. Era um portador de Delirium Tremens, e, inclusive, mostrava os insetos que conseguia apanhar para o médico (zoopsia+aluc. tátil). Trata-se de Alucinações Táteis puras. Outro, já idoso, que sabia ter seus pulmões corroídos por vermes provenientes de carne suína, tossia seguidamente e vivia submetendo-se a freqüentes exames de raios X. Neste último caso, uma Alucinação Cenestésica pura.

4 - Alucinações Olfativas
Normalmente, as alucinações olfativas e gustativas estão associadas e são raras. Estados delirantes cujo tema diz respeito à putrefação, o gosto e os odores podem ser muito desagradáveis e são percebidos, como é típico de todas alucinações, sem que exista o objeto correspondente ao gosto e ao cheiro. Algumas auras epilépticas determinam o aparecimento de alucinações gustativas e/ou olfativas. Em geral os gostos alucinados aparentam ser de sangue, terra, catarro ou qualquer outra coisa desagradável; os odores podem ser desde perfumes exóticos até de fezes.

5 - Alucinações Compostas ou Mistas
São as alucinações onde estão envolvidas mais de um modalidade sensória podendo ser descrito a visão de um homem (alucinação visual) que fala (alucinação auditiva) e por vezes o toda (alucinação tátil). Essa apresentação é mais comum em quadro com rebaixamento de consciência mas pode ocorrer também em quadros esquizofrênicos.


Delírio





Jaspers define o Delírio Primário ou puro como sendo um juízo patologicamente falso da realidade. Este juízo falso deve apresentar três características: 
1 - deve apresentar-se como uma convicção subjetivamente irremovível e uma crença absolutamente inabalável;
2 - deve ser impenetrável e incompreensível para o indivíduo normal, bem como, impossível de sujeitar-se às influências de correções quaisquer, seja através da experiência ou da argumentação lógica e;
3 - impossibilidade de conteúdo plausível.
Todos os casos que não satisfazem essa tríade não podem ser considerados Delírios Verdadeiros ou Delírios Primários (podem ser Idéias Deliróides ou Delírios Secundários).

A prática clínica da psiquiatria deixa bem claro a constatação da primeira regra deJaspers. Diante de um paciente delirante, cuja ruptura com a realidade é evidente, não conseguimos demover tal Conteúdo do Pensamento mediante qualquer tipo de argumentação. Caso o paciente deixe-se convencer pela argumentação da lógica, razoavelmente elaboradas pelo interlocutor, decididamente não estaremos diante de umDelírio, mas sim de um engano por parte do paciente ou de uma formação deliróide. Para ser Delírio a convicção dever ser sempre inabalável. A argumentação racional não deve afetar a realidade distorcida ou recriada de quem delira, independentemente da capacidade convincente e da perseverança daquele que se empenhar nesta tarefa infrutífera.

Em relação à segunda regra, Jaspers alerta sobre a impossibilidade do Delírio ser compreendido por pessoas que mantém vínculo sólido com a realidade. A lógica da realidade do delirante não é aplicável à lógica dos indivíduos normais, daí a falta de compreensão psicológica do Delírio: carece relação entre a temática delirante e os elementos da realidade, notadamente com a conjuntura vivencial do paciente. Ao postular esta regra Jaspers definia aquilo que chamamos de DELÍRIO PRIMÁRIO, ou seja, uma idéia falseada da realidade, cujas fantasias não guardam relação com a realidade vivida. Em outras palavras, esta irredutibilidade do Delírio quer dizer que não pode haver uma relação compreensível entre o tema delirante e possíveis vivência causadoras. O que se confunde, às vezes, são histórias de afastamento da realidade posteriores à traumas emocionais mas, como já dissemos, trata-se aqui de Idéias Deliróides ou DELÍRIO SECUNDÁRIO.

Nesses casos, secundários e relacionados à vivências traumáticas, o Delírio se apresenta de forma a sugerir um determinado Mecanismo de Defensa contra uma forte ameaça psíquica, normalmente angustiante, por isso falamos em DELÍRIO SECUNDÁRIO ou IDÉIA DELIRÓIDE. Aí sim, podemos interpretá-lo mediante uma análise vivencial e psicodinâmica plausíveis.

Exemplo: Um jovem de 23 anos, vítima de um acidente do trabalho que lhe custou a perda de quatro dedos da mão direita começou apresentar uma expressiva inadequação afetiva (ao invés de aborrecido, mostrava-se feliz) e com um delírio no qual julgava-se Deus, cheio de poderes, auto suficiente e ostensivamente ameaçador para com as pessoas que dele duvidavam. Resumidamente, está claro que tal ideação emancipada da realidade era por demais compreensível: tratava-se de um mecanismo de defesa psicotiforme no qual, em COMPENSAÇÃO à mutilação e deficiência o seu poder passou a ser infinito. Trata-se pois de uma Idéia Deliróide (ou um Delírio Secundário), o qual habitualmente pode fazer parte de numa Reação Psicótica Aguda.

Delírios com temática semelhante ou mesmo igual ao exemplo exposto quando surgem em pessoas sem nenhuma vivência justificadora, sem nenhuma possibilidade de redução dinâmica vivencial e impossíveis de conteúdo ou de compreensibilidade são os verdadeiros Delírios Primários. Já, a Idéia Deliróide, seria conseqüência de um estado afetivo subjacente e perfeitamente relacionável com uma vivência expressiva, por isso secundário.

Idéia Delirante, ou Delírio, espelha uma verdadeira mutação na relação eu-mundo e se acompanha de uma mudança nas convicções e na significação da realidade. O delirante encontra-se imerso numa nova realidade de forma à desorganizar a sua própria identidade e se desorganiza pela ruptura entre o sujeito e o objeto, entre o interno e o externo, ou seja, entre o eu e o mundo.

Henri Ey trata do Delírio no capítulo reservado à Semiologia da Alienação da Pessoa e considera-o como uma modificação radical das relações do indivíduo com a realidade. Trata-se, conforme Ey, de um distúrbio que se relaciona essencialmente com a concepção do mundo, manifestando-se através de uma inversão das relações do Ego com a realidade, enfim, uma alienação do Ego.

Segundo Kraepelin, "Delírios são idéias morbidamente falseadas que não são acessíveis à correção por meio do argumento". Bleuler, por sua vez, dizia que "Idéias Delirantes são representações inexatas que se formaram não por uma causal insuficiência da lógica, mas por uma necessidade interior. Não há necessidades senão afetivas", determinava ele. Como percebemos, Kraepelin parece deter-se mais naquilo que entendemos por Delírio Primário, enquanto Bleuler já ventilava uma possibilidade doDelírio Secundário.

http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=103


O ESTRATO PULSIONAL DO SENTIMENTO RELIGIOSO







O governo benevolente de uma Providência divina mitiga nosso temor dos perigos da vida; (…) e o prolongamento da existência terrena numa vida futura fornece a estrutura local e temporal em que essas realizações de desejo se efetuarão.
Freud, 1927

INTRODUÇÃO
Não nos passa despercebido como a questão da desesperança, da falta de perspectiva e de confiança no futuro, e outras tantas inquietações tem nos interpelado das formas mais diversas. Nas produções acadêmicas, qualquer que seja a área do conhecimento, esta temática marca sua presença em publicações, trabalhos, congressos, encontros, grupos de estudo… No espaço público, nos deparamos igualmente com manifestações populares – religiosas, consumistas, políticas, e suas soluções – que tem arrebatado cada vez mais adeptos em busca de repostas, como atesta o significativo aumento de movimentos fundamentalistas que acolhem a angústia produzida por esta situação.
Uma tal organização psicossocial marcaria a chamada pós-modernidade que se caracterizaria por um descrédito nas ciências como fonte de verdade; o fim das metanarrativas: narrativas totais e globalizantes que ordenam e explicam tanto o conhecimento, quando a experiência. Os grandes esquemas explicativos caíram em descredito fazendo com que não haja mais "garantia" posto que nem a ciência pode ser considerada como a fonte da verdade (Lyotard, 1979). As verdades construídas na modernidade – a crença na razão, na capacidade da ciência em dar respostas – foram profundamente questionadas, o que produziu uma reavaliação do estatuto do conhecimento nas sociedades pós-industriais, gerando consequências sociais. Teria ocorrido uma “deslegitimação do conhecimento” (Lyotard, 1979, 38): um conhecimento que se justifica por si mesmo sem nada que o legitime. A pergunta passou a ser: “O que é o conhecimento, e quem sabe como decidi-lo?” Responder a esta questão, ter este controle, é ter poder.
O fim das certezas, as mudanças nas organizações familiares, e os subsequentes desdobramentos sociais, estaria levando uma ruptura social, e acirrando a sensação de desesperança além de gerar, dentre outras, uma violência sem precedentes. Autores como Lebrun (1997) e Melman (2002), apoiados no tema da ruptura do laço social, argumentam que sociedade fragmentou-se dando lugar a códigos de conduta inconciliáveis e ao descredito da autoridade paterna no âmago da família, o que estaria abalando profundamente o equilíbrio familiar, logo o social. A desesperança generalizada na pós-modernidade levam a esta autores a profetizam um futuro catastrófico.
Por minha parte (Ceccarelli, 2006, 2010), penso que concordar com tais previsões apocalípticas é esquecer o que a história nos ensina e, ao mesmo tempo, negar o fato inelutável que cada época tem a sua maneira de “ler o mundo” sem que uma seja necessariamente melhor que a outra. A violência sempre estive presente desde a aurora da humanidade, a começar pela primeira família que não escapou à rivalidade dos irmãos (Gen., 4, 8), o primeiro problema que a nossa espécie teve que enfrentar após o assassinato do tirando da horda, “o crime principal e primevo da humanidade” (Freud, 1928, 211).
Desde sempre, civilizações utilizaram-se da violência para (tentar) dominar outras, e as guerras sempre existiram. Os grandes descobrimentos, assim como os conquistadores que marcaram a História, a ascensão e a queda de regimes totalitários, tudo isto foi acompanhado por uma virulência que destruiu, e continua a destruir, civilizações e culturas através do mundo. Preconceito, discriminação e segregação, com o seu infindável cortejo de intolerância, levou na Idade Média milhares de indivíduos, sobretudo mulheres, à fogueira; e a caça às bruxas, continua, ainda que de forma um pouco mais velada, na atualidade. Isto significa que o mal-estar (Unbehagen) inerente à cultura manifesta-se em ressonância com momento sócio-histórico em questão; e, da mesma forma, cada época utiliza-se do imaginário cultural tanto para explicá-lo quanto para mascará-lo. É neste sentido, assim me parece, que Freud escreve sobre as três fases da evolução do pensamento da humanidade – a animista, a religiosa e a científica – cada uma tentando, a sua maneira, lidar com o desamparo (Hilflosigkeit). Ele apoia suas hipóteses em observações clínicas: histeria é a caricatura de uma obra de arte; uma neurose obsessiva a caricatura de uma religião; e um delírio paranóico a caricatura de um sistema filosófico (Freud, 1912).
Entretanto, como escrevi em um outro texto, nenhuma destas leituras do real – animista, religiosa ou científica – poderá acolher o nosso desamparo. As verdades que propõem são sempre fragmentárias, e susceptíveis de transformarem-se em um sistema de crença de massa. Todo discurso, inclusive o científico e o psicanalítico, contém elementos de crenças infantis – logo míticos – que se originam nas teorias sexuais da infância (Ceccarelli, 2009).
Tais considerações sugerem que, em sua origem, o ser humano foi marcado por incertezas e desesperanças que são maneiras, versões diferentes, de atualização do desamparo constitutivo da espécie. Para lidar com este desamparo, o ser humano sempre recorreu ao longo de sua história aos expedientes que disponha.
O desamparo que nos interesse neste debate não se refere apenas ao período de tempo no qual o bebê humano depende de um outro para aliviar suas tensões (Freud, 1926) mas, antes, do desamparo psíquico: devido à inexistência de um aparelho psíquico inato, o recém nascido não tem como lidar com as exigências pulsionais filogeneticamente herdadas (Freud, 1987). Graças às ligações pulsionais efetivadas por Eros, se produzirão os investimentos libidinais destinados a confortarem, imaginariamente, o Eu em constituição: a singularidade da história de cada um, a partir da relação de total dependência que o recém nascido estabelece com quem lhe deu vida psíquica, testemunha as respostas frente ao universal do desamparo.
Nesta perspectiva, não fica difícil entender que aceitar as novas reorganizações pulsionais tributárias das mudanças sociais só é possível através do trabalho de luto das representações que, até então, balizavam nossa locomoção no simbólico. Trata-se do que Ehrenberg chama de “o mito do enfraquecimento da regra social” (Ehrenberg, 2004, 140), que nos leva a acreditar que a ordem simbólica na qual estamos inseridos é imutável. O fato dos modelos que construímos não mais nos ampararem atestam que toda leitura do mundo é historicamente datada. Reabrir a ferida do desamparo provoca, inevitavelmente, o retorno dos eternos questionamentos: quem somos? de onde viemos? para onde vamos? o que nos constitui como sujeitos? o que vai acontecer diante de tantas mudanças? e assim por diante. Não é por acaso que o passado – quando “eu era feliz e ninguém estava morto” (F. Pessoa) – exerce um forte apelo sempre que o presente nos parece doloroso. É para lá que voltamos na esperança de encontrarmos “o encantamento de nossa infância, que nos é apresentada (…) como uma época de ininterrupta felicidade” (Freud, 1939, 89).
Se, como vimos, desemparo é constitutivo do humano, e o mal-estar uma realidade inerente à cultura, pois ambos resultam do conflito pulsão X trabalho de cultura (Kulturarbeit), as respostas que o sujeito encontra para suportar esta situação primordial serão procuradas nos elementos que a cultura lhe oferece. É por isto que, do ponto de vista da dinâmica psíquica e das configurações da angústia, nada podemos dizer sobre as diferenças quando tudo era garantido e explicado pelos desígnios de Deus (Idade Média), quando a ciência nos dava as explicações e garantia um futuro previsível (Modernidade), ou ainda quando não existem garantias (Pós-modernidade). “Não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão” (Freud, 1930, 108).
Se, já o disse, cada época tem a sua própria configuração de angústia, podemos imaginar que antes do nascimento da modernidade, toda incerteza encontrava acolhimento nas identidades culturais e/ou nas comunidades religiosas que ofereciam referências claras e tranquilizadoras, pois imutáveis. Na atualidade, a economia de mercado transforma os que não são objetos de investimento libidinal em concorrentes potenciais – o inferno é o outro -, gerando uma solidão e, por vezes, um anonimato urbano, que exacerba ainda mais o sentimento de desamparo. Muitos, para tentar escapar a esta situação, lançam mão de comportamentos aditivos em sua inúmeras vertentes – drogas, violência, posições fundamentalistas de todo tipo, compulsividade sexual, e muitas outras – para evitar o contato com representações inconscientes cujos conteúdos são profundamente ameaçadores: "com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações' [aqui a os comportamentos aditivos cumprem esta função], é possível, em qualquer ocasião afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade" (Freud, 1929, 97).
Sendo os sintomas uma relação de compromisso, e levando-se em conta que o adoecer psíquico só pode ser compreendido dentro da dinâmica pulsional da cultura onde emerge (Freud, 1930), a particularidade dos sintomas contemporâneos, que alguns chamam de novos sintomas, tem feito com que a sociedade ocidental seja cada vez mais marcada por uma busca de sentido. Muitas vezes, e este é o ponto que nos interessa, esta busca de sentido é endereçada à psicanálise e ao religioso. De início, uma primeira pergunta se impõe: qual a relação entre psicanálise e religião? Que fundo pulsional atravessaria tanto a psicanálise quanto o religioso para que ambos sejam procurados para responder ao desamparo? Enfim, independentemente da religião escolhida, haveria algo da ordem do religioso no psiquismo humano?
Em A questão da análise leiga, Freud chama a atenção para a importância da psicologia da religião no formação do analista:
A instrução analítica abrangeria ramos de conhecimento distantes da medicina e que o médico não encontra em sua clínica: a história da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura. A menos que esteja bem familiarizado nessas matérias, um analista nada pode fazer de uma grande massa de seu material (Freud, 1926b, 278).
Mas, a que serviria estar "bem familiarizado" com a psicologia da religião? Para separar religião e psicanálise como campos distintos, fazendo com que a psicanálise não seja nem contra e nem a favor da religião? Ou para afirmar que a experiência psicanalítica produz inevitavelmente um ateísmo, posto que desvela que toda experiência religiosa é, sem si, uma ilusão?
O que a experiência clínica nos mostra é que em certos casos o religioso pode fazer resistência ao processo analítico, sobretudo quando ocorre uma culpabilização do sexual; em outros, entretanto, observamos que o religioso contribui para o processo analítico. Isto significa que a relação entre a psicanálise e o religioso não é única, e tudo depende do discurso religioso e a prática da psicanálise. Ou seja, do estar "bem familiarizado" com a psicologia da religião.
A partir das reflexões citadas, gostaria de tecer algumas considerações, que não são conclusivas, sobre uma questão bastante ampla sobre a qual venho pesquisando: como o religioso foi trabalhado por Freud e Lacan e, ao mesmo tempo, o lugar social que o religioso e a psicanálise ocupam na atualidade. Se não estamos incluindo as importantíssimas contribuições e Jung para o tema neste trabalho é que, inclui-lo no debate, foge ao escopo atual. Trataremos de suas contribuições oportunamente.

Em Freud
O primeiro texto freudiano no qual a religião é mencionada data de 1907: Atos obsessivos e práticas religiosas. Ali, Freud destaca semelhanças entre alguns atos obsessivos e da prática religiosa: ao repetir um ato da forma mais perfeita possível a fim de evitar o surgimento da angústia, o obsessivo estaria renunciando as pulsões sexuais, da mesma forma que o religioso renunciaria as pulsões egoístas. E mais: enquanto o obsessivo cria, por assim dizer, uma religiosidade que lhe é própria, o religioso estaria respondendo a uma neurose coletiva. Mais tarde, cabe lembrar, Freud reavaliará suas conclusões sobre este ponto.
Para Freud, "sentimento religioso" tem por origem o desamparo (Hilflosigkeit) constitucional do ser humano, ao qual nos referimos anteriormente. Ao constatar a sua condição de total dependência do outro para sobreviver física e psiquicamente, o bebê humano não pode furtar-se a este sentimento. O desamparo torna-se ainda mais evidente frente a ausência, não apenas da presença do outro, mas de respostas as suas necessidades: o vazio o ameaça. A quem recorrer? À nostalgia do passado, responde Freud; nostalgia de um tempo de felicidade quando tudo estava garantido por um Pai onipotente: "Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai" (Freud, 1930, 90). Somente a crença, a fé, em uma potencia superior onipotente e protetora pode acolher a angústia do desamparo: este seria, para Freud, a origem do sentimento religioso.
Esta relação de continuidade entre o pai da infância e a crença em Deus, as "raízes da necessidade de religião", fora enunciada em 1907 em Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância. A passagem, embora grande, merece ser citada:
A psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o complexo do pai e a crença em Deus. Fez-nos ver que um Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que uma exaltação do pai. Verificamos, assim, que as raízes da necessidade de religião se encontram no complexo parental. O Deus todo-poderoso e justo e a Natureza bondosa aparecem-nos como magnas sublimações do pai e da mãe, ou melhor, como reminiscência e restaurações das idéias infantis sobre os mesmos. Biologicamente falando, o sentimento religioso origina-se na longa dependência e necessidade de ajuda da criança; e, mais tarde, quando percebe como é realmente frágil e desprotegida diante das grandes forças da vida, volta a sentir-se como na infância e procura então negar a sua própria dependência, por meio de uma regressiva renovação das forças que a protegiam na infância. A proteção contra doenças neuróticas, que a religião concede a seus crentes, é facilmente explicável: ela afasta o complexo paternal, do qual depende o sentimento de culpa, quer no indivíduo quer na totalidade da raça humana, resolvendo-o para ele, enquanto o incrédulo tem de resolver sozinho o seu problema (Freud, 1907, pp. 112-113. O grifo é meu).
Freud parece ratificar a continuidade entre o pai da infância e a crença em Deus ao falar da "tríplice missão" dos deuses: "exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs" (Freud, 1927, 29). Nasceria assim um "cabedal de ideias" resultado da "necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana" (Freud, 1927, 30). Se o segredo da força das ideias religiosas reside "na força desses desejos" [a de um pai protetor para tornar suportável o desamparo], o valor de tais ideias reside no fato de não poderem ser provadas nem refutadas.
Em O mal-estar na civilização, respondendo a Romain Rolland sobre o sentimento oceânico – "uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras" (Freud, 1930, 81) – Freud retoma, por um outro caminho, a questão do desamparo. Ele aceita a existência deste sentimento embora, admita, nunca tê-lo experimentado em si próprio. Mas, ao contrário de Rolland, ele não vê ai a "fons et origo" da necessidade de religião. Para Freud, o sentimento ‘oceânico’ não seria uma prova da existência de Deus, como defende Rolland, mas derivar-se-ia do fato de que nosso sentimento atual do ego nada mais é do que "um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo – na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca" (Freud, 1930, pp. 85-86). Este sentimento, continua Freud, teria persistido em graus variados em muitas pessoas, paralelamente de um sentimento mais "demarcado da maturidade". Contudo, em circunstâncias favoráveis como em uma regressão que "volte suficientemente atrás", tal sentimento "pode ser trazido de novo à luz". Ou seja, quando o desamparo se torna insuportável, tenderíamos a regredir ao ego onipotente do narcisismo primário, a um mundo indiferenciado.
Na perspectiva freudiana, o trabalho analítico consistiria, dentre outras coisas, em fazer o luto da imago infantil do pai protetor e autoritário para não mais depender dele e, ao mesmo tempo, acrescentamos, ser pai para si mesmo. Ou seja, livrar-se do sentimento religioso que sustentaria a necessidade de dependência do pai da infância. "Esta necessidade deve ser sublimada", escreve Freud a Jung na carta de 13 de fevereiro de 1910. Esta passagem sugere que Freud não nega a existência da necessidade do sentimento religioso. O problema é quando esta necessidade – que pode ser entendido como um investimento libidinal na nostalgia do pai – não é sublimada, e se transforma em uma revivência neurótica do arcaico.

Em Lacan
É a partir de dois textos freudianos sobre a gênesis da religião – Totem e tabu e Moises e o monoteísmo – que Lacan faz suas considerações sobre a relação entre psicanálise e religião. Nestes textos, Deus encarna o retorno do Pai, não devido ao desamparo mas, antes, em razão da sexualidade infantil, ou seja, do complexo de Édipo que transmite à humanidade o interdito do incesto. A importância do mito apresentando em Totem e tabu é de ser "talvez o único mito que a época moderna foi capaz de criar. E foi Freud que o inventou" (Lacan, 1986, 208). O Pai onipotente e tirano que possui todas as mulheres – o Urvater – retorna como Pai na religião, no amor ao divino. Este retorno se dá por etapas: o Totem, animal incorporado por canibalismo; os heróis e os deuses que possuem forma humana; o monoteísmo do faraó Akhenaton; e, finalmente, o Deus mestre e pai de Moises, fundador do judaísmo. A morte do Pai permite a passagem da imagem ao nome, que se efetiva no monoteísmo de Moises. Por isto, observa Lacan (1986, 227) "só o cristianismo dá seu conteúdo pleno, representado pelo drama da Paixão, ao natural desta verdade que chamamos a morte de Deus". Este "progresso da espiritualidade" produz, também, a passagem do ódio ao amor pelo Pai; não havendo mais imagem, só resta o nome: o Nome-do-Pai. Nome este, diga-se de passagem, que por não poder ser pronunciado, gera um vazio criador (Lacan, 1986, 155) o qual, justamente, a religião tenta negar. O mito do assassinato do pai é um mito de um tempo em que Deus está morto. "Mas, se Deus está morto para nós, é por que ele está morto desde sempre (…) ele só foi pai na mitologia dos filhos" (Lacan, 1986, 209). À pergunta "'o que é um Pai?' Freud responde: 'é o pai morto'" (Lacan, 1966, 812).
Para falar deste Deus que não se nomeia por si só, e que só pode ser nomeado do Nome-do-Pai, Lacan utiliza-se várias vezes da passagem bíblica do livro do Êxodo (3, 13-14) quando Moises replica a Deus: "Quando eu me dirigir aos filhos de Israel, eu direi: 'O Deus dos antepassados de vocês me enviou até vocês'; e se eles me perguntarem: 'Qual é o nome dele?' O que eu vou responder?" Deus disse a Moisés. "Eu sou aquele que sou". Ou seja, Ele não tem um nome pronunciável.
Este pai inominável é trabalhado por Lacan em três registros:
• No simbólico: lugar do significante, a paternidade é o Nome-do-Pai que designa um lugar. Isto significa, vimos, que o Pai não se nomeia: ele é nomeado pela mãe para ocupar um lugar; lugar que indicará à criança o seu desejo como mulher, indicando para esta última que ela não é o objeto de desejo da mãe mas, sim, um efeito deste desejo.
• Ter um pai todo poderoso e forte, castrador e protetor, revela a dimensão do pai: o Urvater, possuidor de todas as mulheres, interditadas aos filhos. Este pai está na origem do Superego; é o Grande Homem, do qual nos fala Freud em Moisés e o monoteísmo. Entretanto, este pai que acolhe o desamparo da criança se revelará um dia ser, ele também, desamparado, e incapaz de garantir à criança a proteção que – imaginariamente – ela dele esperava.
• A solução ao conflito entre o pai no simbólico e o pai no imaginário será dada pelo pai no real, o que possibilita fazer o luto do Pai ideal. O pai no real é o homem que ocupará o lugar instaurado e transmitido à criança no simbólico, pela mãe como mulher desejante. O desejo do pai real não se identifica à imagem de um pai onipotente, que poderia transformá-lo em um pai psicotizante, como o pai de Schreber .
Estas três dimensões do pai são solidárias e indissociáveis: nenhuma é mais importante do que a outra; cada uma delas depende da outra mas, ao mesmo tempo, serve de referência às demais. Embora Lacan tome emprestado do discurso cristão o lugar no simbólico do Nome-do-Pai, ele inova ao introduzir "o real do pai, o seja, o lugar do sexual na lei do desejo" (Julien, 2008, 68).
Algumas reflexões
Mesmo assim, o problema continua: "Freud", escreve Lacan (1986, 119) "nos deixou frente ao problema de uma hiância (béance) renovada a respeito da Das Ding, que é o dos religiosos e dos místicos, quando nada mais se pode colocar sob a garantia do Pai".
Se a questão do sentimento religioso atravessa toda a obra freudiana, há de se perguntar porque Freud não se deu por satisfeito ao responde-la a partir do assassinato do pai. "É que o elemento afetivo [do sentimento religioso] lhe escapa; aquilo que faz o fundo, e não a norma da crença religiosa" (Mijolla-Mellor, 2004, 278). Quando não se pode mais contar com a garantia do Pai frente a ausência de significantes na cadeia associativa, nada resta ao sujeito senão produzir sentido para não ser invadido pelo pulsional. A necessidade de acudir o desamparo não é da realidade, e sim do psiquismo; é algo do subjetivo sem nenhuma objetividade. Ai está, assim nos parece, o fundo pulsional que atravessa tanto a psicanálise quanto o religioso: embora de forma radicalmente diferente, tanto uma, quanto o outro, oferecem respostas ao desamparo. "Na confissão o pecador conta o que sabe; na análise o neurótico tem mais a dizer" (Freud, 1926b, 215). Tanto em uma, quanto na outra, deparam-se com a impossibilidade de saber, com uma hiância irredutível.

Paulo Roberto Ceccarelli*
Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Pós-doutor por Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da Société de Psychanalyse Freudienne, Paris, França; Membro fundador da Rede Internacional em Psicopatologia Transcultural; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG. Professor visitante da pós-graduação da Faculdade de Ciências Humanas ESUDA, Recife/PE. Professor credenciado a dirigir pesquisas de pós-graduação, e pesquisador no Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará, em Belém. Pesquisador Associado do LIPIS. Pesquisador do CNPq.

BIBLIOGRAFIA
CECCARELLI, Paulo Roberto. Violência e cultura. In: Traumas. Rudge, A. (org). São Paulo: Escuta, p. 111-123. 2006.

A SEDUÇÃO DO PAI































in GRIFOS. Publicação anual do Instituto de Estudo Psicanalíticos – IEPSI – Belo Horizonte, número 18, out. 2001, pp. 91-97. 
Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai.
Sigmund Freud [1]

Introdução
Em um trabalho anterior debati a questão, relativamente pouco estudada em psicanálise, da construção da masculinidade [2]. Nele, insisto na importância da relação do sujeito com o seu pai da realidade, ou com aquele que assume este papel, para o acesso às representações simbólicas do masculino e, consequentemente, de como o sujeito experimentará sua masculinidade.
Mostrei também como, em Freud, a referência ao pai real é central. Para Freud é da relação com o pai em carne e osso, que o sujeito forja o protótipo de Deus [3] e também o do demônio [4]; é por ter tido um pai particularmente violento e cruel na realidade que Dostoievski [5] desenvolve um superego sádico. Ao pai, a tarefa de substituir a mãe na proteção da criança pelo resto da infância contra os perigos de mundo externo, como lemos em O Futuro de uma Ilusão.
Do onipotente pai herói – o grande homem da infância [6] – profundamente admirado, por vezes idolatrado, mas também temido – ficará a nostalgia do pai, sentimento que coincide com a necessidade de proteção ligada ao desamparo humano [7]. É também ele que vai, via ameaça de castração, – o pai que castra mas que protege – marcar e direcionar, por assim dizer, o desejo do filho.


Ainda nesse texto, discuti a dificuldade, dentro da obra freudiana, de chegar-se a uma definição satisfatória do par masculino/feminino: ao não subordinar masculino e feminino a dados biológicos, genéticos ou hereditários, Freud faz destas noções construções psíquicas.
Neste trabalho gostaria de avançar um pouco mais a discussão: se o masculino é uma construção psíquica, a masculinidade é uma representação. Toda representação (Vorstellung) – é resultado de um investimento [8] basicamente de traços mnésicos logo, suscetível de ser decomposta em seus elementos originais. Na situação analítica isto significa a reconstrução de seus movimentos constitutivos, inclusive daqueles que foram esquecidos, recalcados, clivados: os avatares dos processos identificatórios, o lugar que o sujeito ocupa na economia libidinal da família, os investimentos dos pais em relação ao filho, as particularidades do contexto social no qual o sujeito se encontra inserido…
Como sabemos, no complexo de Édipo em sua forma completa, positiva e negativa e sob a égide da bissexualidade constitucional, duas vertentes se opõem e se conjugam: de um lado, uma atitude afetuosa para com o pai; de outro, uma hostilidade igualmente intensa em relação a ele. Mais tarde, estas tendências deverão ser recalcadas produzindo uma identificação [9]: para aspirar ser como o pai, é necessário parar de temê-lo. Quando o recalcamento falha, as tendências pulsionais afetuosas retornam como moções intoleráveis para o ego, exatamente por reatualizar a atitude afetuosa feminina para com o pai, reativando no mesmo movimento, a ameaça de castração.
A proposta deste texto é seguir, na criança do sexo masculino, um dos possíveis destinos da corrente afetuosa, que é um dos elementos constitutivos da masculinidade, e as variáveis identificatórias que ela pode produzir.

O pai protetor/sedutor
O personagem central da teoria da sedução, longamente debatida entre os anos de 1895 e 1897, é o pai. O pai sedutor ao qual Freud se refere – a mãe como sedutora só aparecerá mais tarde na teoria freudiana – é o pai acusado de perversão, responsável pela histeria de suas pacientes. Nesta série de “pais-perversos” Freud inclui o seu próprio: Infelizmente, meu próprio pai, escreve Freud [10], foi um desses pervertidos e é responsável pela histeria de meu irmão (cujos sintomas, em sua totalidade, são identificações) e de várias das minhas irmãs mais moças. (Ao que tudo indica, apenas o pequeno Sigmund teria escapado!)
De maneira geral, a sedução ocorria com mulheres. Talvez a única exceção se encontre na carta de 6 de dezembro de 1896 onde o pai é apresentado como sedutor do filho: Assim ela [a paciente de Freud] conjeturou que as preferência sexuais do filho derivavam do pai; e que este fora também o sedutor do primeiro [11].
Por outro lado, se, para os dois sexos, a mãe é o primeiro objeto de amor, assimilar-lhe a atividade sedutora na análise da situação edipiana, sobretudo no caso do filho, é limitar tal análise à sua conseqüência antropológica mais comum. A dimensão da sedução pelo pai, nos dois sexos, apresenta conseqüências que têm sido pouco exploradas pelos psicanalistas [12].
O pai do qual eu gostaria de falar neste trabalho não é o pai sedutor que aparece na fala das histéricas, nem o pai que castra mas que também protege. Trata-se, antes, de um pai que estabelece uma relação muito particular com o filho e que vive, na maioria das vezes fantasmaticamente, uma situação na qual este último é colocado como objeto de desejo lá onde a companheira deveria estar; um pai que, ao invés de encontrar o seu gozo junto a uma mulher, procura-o em sua relação com a criança.
O pai que se “oferece” ao filho como possibilidade de objeto de desejo inverte seu papel: ao invés de ser aquele que castra, ele seduz. Se, segundo Lacan, [13] a imago do pai, nos dois sexos, polariza as formas mais perfeitas do ideal do eu, vemos que a “sedução do pai”, que compromete o recalcamento da corrente afetuosa e o da hostil, , o que terá conseqüências tanto na resolução edipiana quanto na formação dos ideais. Neste caso, a integração simbólica, que só é possível via um conflito imaginário, não ocorre impedindo a introjeção da imagem edipiana [14]. O estado de coisas gerado pela “sedução do pai” terá repercussões na construção da nostalgia da proteção do pai [15], elemento de peso na estruturação do mundo interno do sujeito.
Inicialmente é importante sublinhar que o pai como função, o Nome-do-Pai, não faltou, pois o sujeito se constituiu. Também não se trata do pai que se faz legislador, que se coloca como pilar da lei, produzindo aquilo que Lacan vai chamar de efeitos destruidores da figura paterna [16]. Meu interesse é insistir, seguindo os passos de Freud, na importância do pai da realidade nos processos constitutivos do sujeito. Observa-se quase que um descuido neste ponto. O uso excessivo do conceito de “função paterna”, indiscutivelmente fundamental para a teoria/prática psicanalítica, corre o risco de relegar, quando não ignorar, a importância do pai da realidade.
Centrar o debate na “sedução do pai” não significa, em absoluto, que este elemento seja determinante na solução apresentada pelo sujeito. Apenas que, neste texto, privilegiarei este aspecto de fundamental importância na construção da psicossexualidade. É por isto que a participação da mãe na “sedução do pai” não é tratada aqui, embora pareça-me evidente que, sem a sua cumplicidade, tal “sedução” não teria ocorrido. Pela mesma razão, a questão da bissexualidade não será abordada.
Antes de prosseguir, uma observação se faz necessária. Embora o termo “escolha” continue sendo amplamente utilizado – fala-se de “escolha” homossexual, “escolha” heterossexual – a palavra “solução” parece-me cada vez mais adequada. A “escolha de objeto”, homo ou heterossexual, é uma “solução” encontrada pelo sujeito que está se constituindo frente às comunicações verbais e pré-verbais dos pais – que podem ser contraditórias – a respeito dos elementos constitutivoos da identidade sexuada, da interpretação que a criança faz destes significantes, do lugar que se espera que a criança ocupe na economia libidinal da família… e assim por diante. A palavra “solução” deve ser entendida no sentido matemático do termo: uma equação que comporta diferentes variantes frentes às quais, tal como em um sistema vetorial de forças, uma resultante, uma solução, será encontrada. Neste sentido, aquilo que chamamos de identidade – com toda discussão que este termo comporta em psicanálise – é uma solução, ou se preferimos um sintoma, no sentido psicanalítico do termo: uma formação de compromisso frente as múltiplas variáveis com as quais o sujeito tem que lidar desde o seu nascimento.

A sedução do pai
Tradicionalmente, ao analisarmos os conflitos pulsionais – a ambivalência – presentes na situação edipiana recorremos à versão clássica do mito que sugere a existência de uma atração heterossexual natural e normativa. Entretanto, o mito possui outras variantes que indica que, na pulsão, nada existe de natural e ainda menos de inato. Segundo uma das versões, Édipo teria matado seu pai Laios durante uma briga onde ambos disputavam o amor do belo Crisipo, filho de Pélops [17]. É no mínimo curioso que esta versão do mito não tenha recebido, principalmente por parte dos psicanalistas a começar pelo próprio Freud [18], a atenção que ela merece. Sem dúvida, analisar o complexo de Édipo nesta vertente abre novas e interessantes perspectivas identificatórias. Podemos supor que Crisipo tornou-se o depositário não apenas da corrente afetuosa filho-pai, mas também daquela do pai em relação ao filho – o pai reedita e atualiza com o filho, e no filho, os conflitos de sua própria situação edipiana. Nesta configuração edípica marcada por intensos investimentos homossexuais – caracterizando aquilo que chamo de “sedução do pai” – o recalque da corrente afetuosa/hostil em relação ao pai torna-se problemática.
As vicissitudes desta corrente podem ser acompanhadas em diversas configurações psíquicas. Entretanto, foi em algumas expressões da homossexualidade que pude observá-la mais de perto. Porém, é importante sublinhar que não existe relação direta entre a “sedução do pai” e a solução homossexual. Mesmo porque, como Freud já observara:
Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até as disposições instintivas [19]. 

Meu propósito, então, limita-se à tentativa de seguir os caminhos pulsionais da “sedução do pai” nesta forma de expressão da sexualidade. Segundo minha hipótese, a solução homossexual pode, em alguns casos, permitir que o sujeito invista a corrente afetuosa dirigida ao pai quando este último não exerce sua função de pai edípico, ou seja, na ausência de ameaça de castração. Um pequeno fragmento clínico pode ilustrar esta hipótese.

Considerações clínicas
O sujeito, que chamarei de João, procurou análise queixando-se de “dificuldades afetivas”. Só após algum tempo de trabalho analítico foram abordados os aspectos homossexuais constitutivos de sua identidade. Com isso quero dizer que, para João, sua homossexualidade não era sintomática.
O trabalho analítico não relevou qualquer ligação particular com a mãe, nem tampouco uma figura paterna ausente, como sugere a Freud na maioria dos textos que trata a questão homossexual [20]. Ao contrário: o pai de João foi bastante presente, e foi a “qualidade” dessa presença que participou na sua solução homossexual.
João apresenta comportamento masculino, sem afetação, e nada em sua atitude indicaria o estereótipo de “gay”. No ato sexual, prefere o que se chama de papel ativo. A escolha dos parceiros apresenta um característica: devem ser pessoas para quem ele possa ser “pai”, como se nele o aspecto crucial do pai protetor estivesse ausente. Foi a partir dessa hipótese que, em determinada altura da análise, pude colocar uma questão fundamental para se compreender a dinâmica identificatória de João. Diante da pergunta esclarecedora “Você diria que teve um pai?” a resposta foi: “Não”. Aqui, “pai” refere-se ao personagem com o qual o sujeito se identifica e através do qual são adquiridas as referências simbólicas da masculinidade.
Outra particularidade de João, que pude observar em outros sujeitos com histórias semelhantes, é a reação que apresenta diante de situações onde deve ser “pai para si mesmo”; situações do cotidiano, nas quais tem que enfrentar e, por vezes, disputar com outros homens. Nessas ocasiões, João é tomado por uma angústia muito grande, ao ponto de evitar ao máximo tais situações.
João passou pelo seguinte “episódio de sedução” com o pai.
João morava em Paris enquanto seu pai residia, havia algum tempo, na Martinica. Ele, que nunca tinha ido visitar o pai, um dia resolveu fazê-lo, “para conhecer o local”. Segundo disse, os amigos de seu pai não sabiam que ele tinha um filho, quanto mais já adulto. Após alguns dias, seu pai lhe disse estar achando muito engraçado o fato de todos pensarem que eles eram namorados. Aparentemente, a situação era bem prazeirosa para o pai que nada fez para esclarecer o equívoco e ainda insistiu em imaginar, solicitando para isso a cumplicidade do filho, o que as pessoas estariam pensando da relação deles. Profundamente desconfortável diante da atitude do pai, João insistiu para que ele esclarecesse o mal-entendido, o que foi feito finalmente sem, contudo, deixar de comentar a imaginária relação homossexual dos dois.
A partir de deste fato e de sonhos produzidos, João fez associações importantes que o remeteram a outros acontecimentos semelhantes. A carga afetiva que alguns deles continham – traduzida por angústia proporcional ao recalque – era de tal forma intensa que a recordação da representação associada foi vivida como ameaçadora. A análise destes acontecimentos permitiu-lhe compreender melhor a construção da sua psicossexualidade e de suas escolhas sexuais, revelando também certos aspectos de seus pais.
À medida que pôde entender e, conseqüentemente, elaborar melhor os conflitos com seu pai, João passou a viver sua vida afetiva de maneira mais satisfatória, menos carregada de angústia e de culpa. Isto permitiu-lhes aproximar-se mais “do homem dentro dele” para utilizar uma expressão do próprio João.

Outros destinos
Outras configurações clínicas, que sem dúvida merecem aprofundamento mais exaustivo, serão citadas apenas em linhas gerais.
Como já foi dito, a sedução do pai não é exclusiva daqueles que adotam uma solução homossexual. Tive oportunidade de ouvir relatos semelhantes outros pacientes (heterossexuais) com os quais ocorreram situações de sedução bem mais concretas: estes pacientes disseram ter sido masturbados várias vezes pelo pai. Estes homens procuraram análise em razão de grandes dificuldades, não só em suas vidas sexuais mas também quanto a estabelecer relações afetivas.
O retorno da corrente afetuosa em relação ao pai pode apresentar-se de uma forma que, à primeira vista, corre o risco de ser confundida com homossexualidade não assumida. Por não constituírem sintoma, estas expressões da sexualidade são vividas pelo sujeito com relativa tranqüilidade fantasmática. Às vezes acontece que só são trazidas para a situação clínica após um certo tempo de trabalho analítico. Trata-se de pessoas que se encaixam nos padrões sociais da normalidade: são heterossexuais, alguns casados, às vezes têm amantes, satisfazem sexualmente suas parceiras. Enfim, são o que se costuma chamar de “homens de verdade”. Pois estes homens sentem, por vezes, vontade não de penetrar, mas de se fazer penetrar. O particular desta situação é o fato de haver uma separação, por vezes total, entre sexualidade e sensualidade. Tais sujeitos não gostam – sem que exista algum mecanismo de repressão ou de recalque envolvido – de qualquer manifestação de afeto: beijos, toques, abraços, carinhos.
Encontramos muitos deles entre os clientes dos travestis. Também a pornografia pode constituir, para alguns, um meio de dar expressão a esta forma de sexualidade. Ou então criam encontros “por acaso” em situações anônimas: viagens, praias, clubes, saunas, etc. Além disso, não têm, e nem querem ter, parceiros fixos nem apreciam algum tipo físico em especial: o que importa é, antes, o fato de serem penetrados. Em análise, um deles relatou ter certa vez procurado um travesti negro, pois sabia da fama de que os negros são “bem-dotados”. Tendo estimado o tamanho do seu pênis, pediu-lhe que o penetrasse. O que queria era sentir “tudo aquilo dentro”, não obstante a dor. Apenas isto: sem afeto, sem contato.
A análise destes casos revelou que a fantasia de incorporação anal/genital do pênis paterno era uma tentativa de identificação com o pai, segundo o modelo freudiano, que trata a incorporação como o primeiro modo de identificação com o pai; uma tentativa de apropriar-se completamente do pai ideal, aquele que protege [21]. Em outras situações, a busca de identificação se dá via felação, ou seja, pela incorporação oral do pênis paterno, tal como é apresentado em Totem e Tabu. Tais práticas, além disso, informam-nos sobre o destino que a corrente afetuosa em relação ao pai pode tomar.
Em alguns, o ser penetrado parece representar uma maneira de investimento, em negativo, da corrente afetuosa: a atitude dita passiva adotada pelo sujeito é a forma encontrada para fazer frente à angústia gerada pela ausência de ameaça de castração.
Em outros casos, parece que a penetração expressaria uma tentativa de se livrar do peso dos elementos constitutivos da representação da masculinidade, elementos que traduzem não só o imaginário social, mas também o investimento parental sobretudo o do pai em relação à criança do sexo masculino: ser penetrado é livrar-se do fardo da masculinidade.
Uma outra situação, bastante significativa, foi-me relatada por um paciente que procurou-me por recomendação médica, devido a “stress”. Falando de sua prática sexual, disse que o fato de uma mulher não ser atraente nunca o impediu de fazer amor com ela. Em situações nas quais a pessoa não lhe despertava qualquer excitação, ele “evocava o macho dentro de [si]” para provar que era homem de verdade. Pode-se facilmente imaginar o custo psíquico de tal “evocação”.
Nas chamadas sexualidades adictivas, ou em algumas formas de neo-sexualidade, pode-se também observar as marcas da sedução do pai” [22]. Joyce McDougall diz que na dimensão adictiva da sexualidade – no contexto heterossexual ou homossexual – ocorre um colapso das funções parentais internas. A esta observação, eu acrescentaria que uma das razões deste colapso é a sedução que o pai exerce no filho.
O colapso das funções parentais, que atesta a impossibilidade de se evocar a nostalgia da proteção do pai, pode também ser observado na drogadicção: frente ao desamparo (Hilflosigkeit) original e não podendo apelar para o pai – no sentido da nostalgia do pai – em busca de proteção, a droga pode produzir um “arrimo de segurança”, espécie de ilusão [23], da volta ao paraíso perdido numa tentativa de restabelecer o estado «oceânico» rompido. O apelo ao pai é um pedido de proteção contra a castração – logo, contra a morte – num contexto onde a castração já se deu, ou seja, onde já houve função paterna.
(Vale lembrar que o desamparo original não deve ser compreendido apenas do ponto de vista biológico. Para o bebê, o que a falta do Outro traz não é a morte biológica mas, antes, a morte ontológica que tem sua expressão máxima em algumas formas de psicose. A função essencial do Outro primordial encarnada inicialmente pela mãe é a de introduzir a criança no mundo da metáfora onde os objetos secundários substituem os primordiais: para manter-se o narcisismo secundário, o do eu, deve-se sacrificar o narcisismo primário. O bebê humano que recusasse esta necessidade seria impensável como humano, excluindo-se da cultura.)
Lacan [24], na análise que faz de Hans, fala da importância do pai real para a aquisição da função sexual viril. Para que o complexo de Édipo ocorra, o pai deve assumir a função de pai castrador a função de pai de forma concreta. Lacan observa a dificuldade de Hans em suportar seu pênis real, à medida que este não é ameaçado. A carência do pai castrador torna a situação intolerável. Isto vai obrigar Hans a se inscrever numa linha matriarcal, encontrando na figura da avó o substituto paterno. A partir daí, segundo Lacan, Hans desenvolve uma estrutura narcísica em suas relações com as mulheres, circunstância que leva à sua solução fóbica. Entretanto, uma leitura atenta do Caso Hans revela o quanto seu pai, com o apoio de Freud, era antes um “pai amigo”: esta posição é uma variante da sedução do pai.
É crescente o número de crianças, principalmente meninos, que são encaminhados para terapia por apresentarem “problemas” de identidade. Desde os primeiros encontros fica claro qual a “qualidade” da relação dessas crianças com a figura masculina e, conseqüentemente, é possível avaliar se a imago paterna pode ou não servir-lhes de suporte identificatório. Estas crianças exibem, por vezes, certos comportamentos ditos “femininos”. Entretanto não se trata de crianças que apresentem uma orientação homossexual, embora esta situação também possa existir. Seriam antes meninos que, devido à particularidade de suas constelações familiares, identificaram-se com as referências simbólicas que, em nossa sociedade, são atribuídas às meninas. Isto pode ser gerador de angústia nos pais, principalmente nas mães que “cobram” dos maridos aquilo que eles não podem dar.
Digno de nota é o fato de que, em muitos destes casos, os pais dos meninos estão em crise em relação às referências sociais da masculinidade às quais não conseguem corresponder. Uma exploração dos elementos, principalmente inconscientes, presentes no trajeto identificatório destes pais revela, em muitos casos, uma problemática bastante próxima àquela apresentada pela criança, relativisada pela diferença de gerações e pelas mudanças no contexto social.
Nesta perspectiva, não seria exagerado dizer que a chamada “crise do masculino”, tão estudada e debatida neste fim de milênio, seja conseqüência da dificuldade, cada vez mais acentuada, que tanto a corrente afetuosa quanto a hostil têm para encontrar suporte identificatório. As referências simbólicas do masculino, que são construções sociais sem nenhuma ancoragem na “realidade” anatômico-biológica, estão em constante movimento e, como sabemos, qualquer mudança gera angústia, pois implica o desinvestimento de antigas posições libidinais, em favor de novas.
Uma palavra sobre as psicoses: os destinos da corrente afetuosa/hostil em relação ao pai podem ajudar-nos a compreender algumas formas de psicose, em particular a paranóia.
Evidentemente, a situação neste contexto é bem diferente das anteriores, pois estamos no registro da psicose onde a metáfora paterna não se realizou [25]. A análise do caso Schreber, por exemplo, revela a sua impossibilidade de viver a corrente afetuosa em relação a seu pai. Entretanto, cabe a pergunta: além de uma projeção, não seria a homossexualidade em Schreber uma busca de figura masculina que servisse de suporte identificatório na construção da masculinidade? Isto significa que o lugar que Schreber atribui ao Dr. Flechsig, e mais tarde a Deus, pode ser compreendido como uma tentativa de encontrar um depositário para a corrente afetuosa que não pôde ser vivida com seu próprio pai. Nesta perspectiva, a projeção, que é busca de identificação, é vivida de forma persecutória. Da mesma forma, em O Homem dos lobos, O Homem dos ratos, e no Pequeno Hans, boa parte dos problemas psíquicos apresentados por estes sujeitos devia-se ao retorno de elementos recalcados percebidos pelo ego do sujeito como “femininos”. Talvez por esta mesma razão, a paranóia, assim como algumas formas de perversão, exibem uma “preferência” pelo sexo masculino: a projeção de moções homossexuais não-integradas permite ao sujeito tratar um perigo pulsional interno como se fosse externo.
De uma maneira geral, acredito que a razão pela qual as moções homossexuais são tão temidas por alguns analisandos – o contato com tais moções pode chegar a provocar desorganização psíquica – deve-se ao fato de estarem apoiadas em representações carregadas de afeto em relação ao pai. Quando reinvestidas, tais representações despertam angústias ligadas à ameaça de castração. Na prática psicanalítica, é de fundamental importância distinguir quando as moções homossexuais, que se manifestam como projeção ou como desejos inconscientes por vezes ego-distônicos, representam uma homossexualidade (ainda?) não assumida pelo sujeito, ou quando tais moções são uma busca de identificação. Limitar alguns movimentos projetivos a desejos homossexuais recalcados é esquecer o “radical homossexual” [26] presente na masculinidade.

Para concluir
O complexo de castração é uma reação às limitações impostas pelo pai à atividade sexual precoce do filho [27]. Entretanto, se o pai não integra suas pulsões eróticas/agressivas e as vive, ainda que na fantasia, com o filho, ele repete conflitos que não foram elaborados com seu próprio pai: no encontro pai/filho, as marcas edipianas significantes do encontro desse pai com seu próprio pai serão reatualizadas. Como escrevi em outro lugar: Tornar-se pai é correr o risco de pressentir, tal como Laios, aquele que vai desejar sua morte; aceitar que seu filho seja seu sucessor, legar-lhe sua função; pressupõe que o pai saiba que o lugar que ele ocupa foi ocupado anteriormente por outro, e que seu filho, assim como ele, só o ocupará de modo transitório. Ser apenas um elo na cadeia de gerações significa não apenas descobrir-se mortal, mas também compreender sua morte como conseqüência de uma lei universal, e não como uma punição retardada por desejos edipianos proibidos [28].
Pode acontecer que o pai, incapaz de reconhecer e suportar os investimentos eróticos do filho, seja-lhes hostil. Freqüentemente, neste caso, um circuito de desinvestimentos se estabelece: devido à ansiedade causada por tais investimentos, vivida pelo pai com uma ameaça à sua masculinidade, ele desinveste o filho, afasta-se deste. Inevitavelmente, este último vive esse afastamento como uma rejeição – e, de fato, o é – e, por sua vez, desinveste o pai. Uma tal rejeição pode gerar um sentimento de depreciação, de baixa auto-estima, em outros aspectos da vida. Mas o oposto pode também acontecer: aqui, é o filho que vai afastar-se do pai para evitar que este reconheça os seus sentimentos eróticos. Acredito que o relato de ter tido “um pai distante” e o de “ser mais próximo da mãe” que alguns sujeito trazem, tenha aqui suas origens.
Para Freud, vale lembrar, o complexo paterno que culmina com o assassinato do pai – o crime principal e primevo da humanidade [29] – constitui o ponto onde se unem ontogênese e filogênese, a pequena história com a grande História: a morte do pai que cada criança tem que levar a cabo nada mais é que a reatualização da morte do tirano pelas “crianças” da horda primária.
Quando o pai não assegura o lugar de depositário tanto da corrente afetuosa quanto da intensa hostilidade do filho – ou quando a interiorização do medo do mundo externo não é transformada em angústia do pai [30] – a criança vê-se impedida de experimentar seus sentimentos ambivalentes. Isto pode prejudicar a maturação do desejo de morte do pai e entravar a identificação com o pai edipiano. Sem essa identificação, sua função simbólica se vê comprometida. E é justamente esta dimensão simbólica, própria do humano, que transforma o tirano em pai e os membros em irmãos.
Quando o pai simbólico não se apresenta, o sujeito não poderá evocar a imago paterna protetora para ser, por sua vez, pai para si mesmo. Pode acontecer que, na tentativa de elaborar essa carência, o sujeito atue como pai nos seus relacionamentos. Muitas vezes, ele exercerá o papel de pai para com seu próprio pai, colocando os limites lá onde o pai não o consegue. Assim, em diferentes circunstâncias de sua vida, ele lançará mão do pai imaginário com toda a fantasmática a ele ligada. Se a única figura de pai continua sendo a do “tirano”, que pode castrar ou seduzir, a relação do sujeito com o mundo, mas sobretudo com outros homens, corre o risco de, em determinadas ocasiões, apresentar-se sob um modo persecutório ou histérico.
Notas
[1] – FREUD, Sigmund (1933). O mal-estar na civilização. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI, p. 90.
[2] – ; CECCARELLI, P. R., “A construção da Masculinidade. in Percurso, v. 19, 1998, 49-56.
[3] – ; FREUD, Sigmund (1912-13). Totem e Tabu. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIII, p. 176.
[4] – ; FREUD, Sigmund (1923). Uma Neurose demoníaca do século XVII, Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XIX, p. 111.
[5] – ; FREUD, Sigmund (1928). Dostoievski e o parricídio. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI, p. 214.
[6] – ; FREUD, Sigmund (1939). Moisés e o monoteísmo. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v. XXIII, p. 131.
[7] – ; FREUD, Sigmund (1933). O mal-estar na Civilização. Op.Cit., p. 90.
[8] – FREUD, Sigmund (1915). O inconsciente. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV.
[9] – FREUD, Sigmund (1923). O Ego e o Id. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XIX, p. 45 e seg.
[10] – MASSON, Jeffery. A correspondência completa Freud-Fliess, 1887-1904. Carta de 8/2/1897. Rio de Janeiro: Imago, 1986, p. 232.
[11] – Ibid., 214.
[12]- Em um texto recente, Laplanche faz um observação neste sentido. Conf. LAPLANCHE, JEAN. Le prégénital freudien: à la trappe. A propos du livre d’André Green: «Les chaînes d’Éros». Actualité du sexuel. in Rev. franç. Psychanal., nº 4, Paris, 1997, p. 1359-1369.
[13] – LACAN, Jacques. Les complexes familiaux. Paris: Navarain, 1984, p.65.
[14] – LACAN, Jacques. Le séminaire, Livre III. Les psychoses. Paris: Seuil, 1981, p.240.
[15] – FREUD, Sigmund (1933). O mal-estar na Civilização. Op. cit.
[16] – LACAN, Jacques. D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose. in Ecrits.Paris: Seuil, 1966, p. 579.
[17] – GRIMAL, Pierre. Dictionnaire de la Mythologie Grècque et Romaine. Paris: PUF, 11ème édition, 1991, p. 248.
[18] – Talvez Freud não tenha trabalhado esta possibilidade devido a questões intrínsecas à maneira como lidou com homossexualidade ao longo de sua obra. Este aspecto é particularmente claro na correspondência Freud/Jung.
[19] – FREUD, Sigmund (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XVIII, 211.
[20] – Numa extensa nota de rodapé, acrescentada em 1915 aos Três ensaios, Freud apresentou a síntese mais completa do seu pensamento científico – mas também humano – sobre o tema da homossexualidade.
[21] – FREUD, Sigmund (1921). Psicologia de grupo e análise do ego. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, v. XVIII.
[22] – McDOUGALl, Joyce. As múltiplas faces de Eros. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 204.
[23] – A palavra “ilusão” é empregada aqui no mesmo sentido utilizado por Freud. Cf. FREUD, Sigmund (1927). O futuro de uma ilusão. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI. Neste mesmo texto, Freud fala do uso da droga como um recurso ante o desamparo do homem.
[24] – LACAN, Jacques. Séminaire IV, La relation d’objet. Paris: Seuil, 1994, 220.
[25] – Não cabe aqui uma discussão detalhada sobre o caso Schreber. Remeto o leitor ao trabalho de Lacan sobre as psicoses. Cf. LACAN, Jacques. Séminaire III, Les pyshoses. Paris: Seuil, 1981.
[26] – VANGGAARD, Thorkil. Phallós: A symbol and Its History in the Male World. New York: International University Press, 1972.
[27] – FREUD, Sigmund (1933). Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise. Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976, Conf. XXI, v. XVI.
[28] – CECCARELLI, P. R., “A construção da Masculinidade”, Op. cit.53.
[29] – FREUD, Sigmund (1928). Dostoievski e o parricídio. Op. cit., p. 211.
[30] – FREUD, Sigmund (1933). Neuroses de transferência: um síntese. Rio de Janeiro: Imago, 1985, p. 77.
Resumo: A “sedução do pai” se configuraria quando, no Édipo, o pai inverte o seu papel: ao invés de ser aquele que castra, ele seduz. Apoiado na clínica, o Autor afirma que na criança de sexo masculino a sedução do pai impede que as duas atitudes edipianas em relação ao pai – afeição e hostilidade – sejam transformadas em uma identificação. São debatidas as conseqüências disso sobre a construção da “nostalgia da proteção do pai”, assim como a transformação deste pai em pai simbólico.
Palavras chaves: sedução, pai, identificação, recalque.
Summary: The “seduction by the father” is disclosed when, in the Oedipus complex, the father reverses his role: instead of being the one who castrates, he seduces. Based on clinical data, the Author says that, in the male child, the seduction by the father hampers the transformation of the two oedipal attitudes towards the father into identifications. The consequences of this fact upon the construction of the “nostalgia of the father’s protection” are discussed, so as the transformation of this father into a symbolic father.
Key words: seduction, father, identification, repression

Paulo Roberto Ceccarelli*