domingo, 24 de março de 2013

PROSTITUIÇÃO – CORPO COMO MERCADORIA



in: Mente & Cérebro – Sexo, v. 4 (edição especial), dez. 2008

Na troca de favores sexuais, que caracteriza a prostituição, elementos sentimentais, como o afeto, devem estar ausentes em pelo menos um dos protagonistas. Nesta profissão, tida como “a mais antiga do mundo”, na grande maioria das vezes troca-se sexo por dinheiro. Mas, pode-se cambiar relações sexuais por favores profissionais, informações, bens materiais e muitas outras coisas. Ainda que muitos homens se prostituam, historicamente a prostituição feminina é mais freqüente que a masculina.
A representação social da prostituta varia segundo época e cultura; nem sempre foi acompanhada do estigma que o Ocidente lhe atribui. Nas sociedades em que a propriedade privada inexistia e a família não era monogâmica, por exemplo, o sexo era encarado de forma bem diferente que a nossa, e ao que tudo indica, não havia prostituição. Já em algumas civilizações tratava-se de um ritual de passagem praticado pelas meninas ao atingirem a puberdade; em outras, os homens iniciavam sexualmente as jovens em troca de presentes.
Além disso, a percepção dessa prática muda enormemente segundo a moral vigente. A posição social que a prostituta ocupa hoje na sociedade ocidental é tributária da visão que temos da sexualidade, algo bem diverso da Antiguidade, em que não havia a noção de pecado ligado ao sexo.
De sacerdotisas a hereges
Algumas formas de prostituição (do latim “prostituere”: “colocar diante”, “à frente”, “expor aos olhos”) já foram vinculadas a divindades, como nas primeiras civilizações da Mesopotâmia e do Egito, onde sacerdotisas prostitutas, consideradas sagradas, recebiam presentes em troca de favores sexuais. Na Grécia antiga, havia as hierodule, mulheres sagradas que ofereciam serviços sexuais em ocasiões especiais, mas não correspondiam exatamente ao que entendemos por prostitutas. Eram vistas como a encarnação de Afrodite e respeitadas pela população e pelos governantes por evocarem o amor, o êxtase e a fertilidade. Embora fossem escravas como as deikteriades (prostitutas cujos donos eram cidadãos comuns) tinham mais regalias que elas.
Na antiga civilização grega, a prostituição fazia parte da paisagem cotidiana, era um meio de obtenção de rendimento igual a qualquer outro e uma prática controlada pelo estado. As prostitutas deviam pagar altos impostos e vestir-se de forma a serem identificadas como tal. Entre as várias categorias, havia as hetairas, de grande relevância social, conhecidas pela inteligência, esperteza na administração dos bens e competência nas articulações políticas. Freqüentavam livremente o universo masculino e participavam das atividades reservadas aos homens. Trabalhavam nos bordéis do Estado, sem sofrerem qualquer represália. As hetairae eram formadas em escolas nas quais as aspirantes aprendiam a arte do amor, a literatura, a filosofia e a retórica, vindo a ser as mulheres mais instruídas da Grécia.
A prostituição era uma profissão tão rentável que algumas mães incentivavam as filhas a fazer carreira. Aspásia, por exemplo, tornou-se uma prostituta famosa e admirada pelas qualidades intelectuais a ponto de o grande Sócrates levar seus discípulos para ouvi-la – o contrário do que ocorria com as jovens destinadas ao casamento, que se dedicavam exclusivamente ao trabalho doméstico. Curiosa expressão da legendária democracia grega: só as prostitutas tinham acesso ao conhecimento.
Na cultura judaica, por sua vez, a prostituição era severamente punida; a lei mosaica previa sanções severas aos praticantes, inclusive com pena de morte. Na prática, entretanto, havia certa tolerância como o mostra a história de Raabe – prostituta salva pela graça de Deus – relatada no livro de Josué. A moral cristã sempre condenou tal prática, que também era tida como a responsável pela disseminação de doenças sexualmente transmissíveis – sífilis, por exemplo.
A partir do século XII o amor cortês passou a regular a sociedade européia. Em nome de interesses político-econômicos, as uniões passaram a ser arranjadas, não se levando em conta os sentimentos mútuos entre os parceiros, o que contribuiu para ampliar a prática da prostituição, que passou a ser regulamentada e protegida pela lei. Em muitas cortes, as prostitutas alcançaram grande poder, tendo conhecimento de questões estratégicas.
Com a Reforma religiosa no século XVI, o puritanismo passou a controlar os costumes e ditar a moral. A Igreja Católica lançou mão, então, de seu arsenal teológico para lidar com o problema de prostituição. Em conseqüência da ação conjunta das igrejas católica e protestantes, a prostituição caiu na clandestinidade sem, contudo, ser eliminada: cortesãs continuariam a existir nas cortes européias e colônias.
A Revolução Industrial trouxe um elemento significativo à prostituição, pois as mulheres tiveram de enfrentar condições desiguais no trabalho em relações aos homens. Prostituir-se em troca de favores, de melhores condições de vida, revelou-se uma opção.
Valores revistos
Os primeiros movimentos internacionais contra a exploração sexual de mulheres e adolescentes começaram no final do século XIX. Em 1921, a Liga das Nações designou um comitê para tratar o problema do tráfico de mulheres e crianças; em 1946, a ONU adotou uma convenção a fim de erradicar a prostituição. As questões tornaram-se mais agudas com a epidemia da aids na década de 80, exigindo providências urgentes e eficazes. Se as medidas profiláticas de higiene e o advento dos antibióticos contribuíram para diminuir a incidência de doenças sexualmente transmissíveis, a aids representava uma ameaça fatal tanto para as prostitutas quanto para os clientes, obrigando o poder público a intervir. Não se podia mais, sobre um pretexto moral, negar a existência de certas camadas do tecido social, ignorar o comércio marginal do sexo. Como conseqüência, ocorreu uma reorganização dos costumes e valores.
Nos últimos anos, a grande maioria dos países ocidentais adotou medidas destinadas a descriminalizar a prostituição. Alguns países europeus, como Alemanha, Países Baixos, Dinamarca e Noruega legalizaram a prostituição; em outros, como no Reino Unido, é tolerada. Em Portugal, a prostituição não é ilegal, desde que não haja incentivo para essa atividade. Na França, não é legal nem proibida, embora o proxenetismo seja uma infração.
Outros países ainda a penalizam, como a Suécia, onde vender sexo é tão ilegal quanto comprá-lo. Resultado: prostituta e clientes são punidos com até seis meses de prisão. Nos Estados Unidos a prostituição é ilegal em praticamente todo o território. Nos países mais pobres, assolados pela miséria, a prostituição continua presente e as tentativas de melhorar as condições de vidas das prostitutas têm sido ineficazes. No Brasil a prostituição adulta é legal na medida em que não existe lei que a proíba, mas é incriminada quando existir incitação pública ao ato sexual. Igualmente, o incentivo à prostituição e o comércio do sexo são atividades delituosas.
Números alarmantes
Segundo pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde do Brasil, 40% das prostitutas está na profissão há mais ou menos quatro anos, sugerindo uma ligação entre prostituição e juventude. O Centro de Educação Sexual, ONG que trabalha com garotas e garotos de programa do Rio de Janeiro e Niterói, estima que a maioria dessas pessoas se prostitui para sobreviver e guarda a esperança de encontrar um grande amor e mudar de vida.
Realidade ainda mais triste é a prostituição infantil que assola a sociedade brasileira. Presente nas camadas sociais mais pobres dos grandes centros urbanos, sobretudo nas capitais do norte e nordeste do Brasil, assim como em regiões isoladas do país marcadas por atividades extrativas, supõe-se que o número de meninas envolvidas nessa atividade chegue aos 500 mil. Entre os motivos que as levam a se prostituir destacam-se fatores econômicos e a baixa escolaridade. Em um primeiro momento, a prostituição é uma solução temporária à espera de um trabalho regular. Entretanto, devido à falta de qualificação profissional para a entrada no mercado, a prostituição permanece como a única possibilidade de sobrevivência.
A prostituição infantil ocorre em ruas, praças públicas, boates, pátios de postos de gasolina, estacionamentos, bares e restaurantes, ou até mesmo em casas especializadas, às margens dos grandes eixos rodoviários do país. Em 2006 a Polícia Rodoviária Federal recenseou mais de 1.200 locais de prostituição infantil. Junte-se a isto o turismo sexual que explora adultos, crianças e adolescentes, meninas e meninos. Segundo relatório da ONU, no período do Carnaval o sexo-turismo atrai ao país, milhares de pessoas provenientes de várias partes do mundo, sobretudo da Europa e da América do Norte. Esse “turismo” ocorre sobretudo nas áreas litorâneas de grande movimento, como em Santos e no Rio de Janeiro e no eixo norte-nordeste (Recife, Natal, Fortaleza e Belém).
O tráfico de mulheres para comércio sexual é outro grande problema a ser enfrentado. O “Relatório sobre Tráfico de Pessoas”, de 2008, elaborado pelo Departamento de Estado norte-americano, reconhece os avanços consideráveis do governo brasileiro na aplicação das leis contra o tráfico sexual interno e internacional, mas conclui que o problema ainda está longe de ser erradicado. A maioria das mulheres recrutadas sai das cidades litorâneas rumo a países europeus, em particular a Itália, Espanha e Portugal. Existem aproximadamente 70 mil brasileiras envolvidas na prostituição no exterior, a maioria entre 18 e 21 anos.
Novos mercados

O campo de atuação não cessa de expandir: nos meios de comunicação é cada maior o número de propostas de “serviços personalizados”, seja por meio de anúncios em jornais e/ou revistas (de forma explícita ou velada), na televisão, via telefone ou MSN. Nos sites da Internet, onde (quase) todas as fantasias sexuais podem ser realizadas mediante pagamento que varia segundo a extravagância da demanda, surgiu a prostituição virtual: sexo vendido por meio de imagens fotográficas, filmes, e mesmo “ao vivo”, via webcam.
Em paralelo, cresce o número de agências de encontros e de garotas de programa que adotam nomes politicamente corretos como call ou scort girls. Nesse mercado em franco desenvolvimento, circulam garotas de todas as classes sociais, algumas com formação universitária, e falando mais de um idioma. Para uma boa profissional, convidada a acompanhar executivos e empresários em festas e recepções, é fundamental que nada as identifique como prostitutas. Já para a que se prostitui na rua, a “mulher de vida fácil”, os critérios são completamente diferentes. Em vez de manter sua atividade em segredo, ela deve deixar claro quem é e o que faz para ser identificada.
A grande diferença entre as prostitutas de luxo e as do baixo meretrício, porém, não se localiza nos elementos externos (formação intelectual, beleza, etc.), e sim nas suas posições subjetivas, nas relações que cada uma estabelece com o que faz e como percebe a si mesma. As scort girls, por pertencem, na grande maioria das vezes, ao mesmo universo social que seus clientes, estabelecem com a prostituição uma relação bem diferente da prostituta do baixo meretrício, muitas vezes nem cumprimentada na rua.
Fato curioso: a prostituição se adapta às novas demandas do mercado, a despeito das mudanças de costumes e mesmo da chamada revolução sexual que, argumenta-se, teria reduzido os tabus sexuais. Então, por que os homens de hoje, mesmo vivendo uma situação afetivo-sexual satisfatória com uma parceira fixa, ainda procuram prostitutas? Que tipo de fantasia buscam viver com elas? A mesma coisa com os jovens que, graças à liberação sexual, podem iniciar a vida sexual com colegas ou namoradas, e apesar disso, continuam a buscar “profissionais do sexo” para a iniciação sexual.
É claro que não se pode dar uma resposta única e definitiva sobre o lugar que a prostituta ocupa na economia psíquica dos prazeres da cultura ocidental. Porém, justamente por ela estar à margem da sociedade encarna a possibilidade de uma sexualidade sem entraves, uma liberação sexual.
O sistema de valores que sustenta a família burguesa determina a moral sexual vigente. Historicamente, na construção dessa moral, a mulher foi “dessexualizada”, fazendo emergir a figura da “rainha do lar”. Para que a “moça de bem” se mantivesse virgem até o momento de entregar-se a um só homem, ela deveria aprender a conter seus desejos e a evitar os prazeres carnais e mundanos. Ora, os espaços da prostituição, locais dos prazeres sem limites, foram opostos ao lar, lugar de procriação. Os dois espaços são inconciliáveis; quem freqüenta um, não pode ser visto no outro. Ao mesmo tempo, ambos se atraem, pois enquanto a prostituta muitas vezes sonha em mudar de vida, casar-se e tornar-se respeitada dona de casa, sua liberdade sexual não deixa indiferente a esposa que, não raro, imagina a sexualidade da prostituta a partir das fantasias sexuais em geral a ela interditadas.
Um negócio de homens

Eis as dificuldades subjetivas para erradicar ou legalizar a prostituição: erradicá-la traria problemas, pois tal prática funciona como uma válvula de escape aos limites impostos pela moral sexual ocidental; oficializá-la seria igualmente complicado, pois corresponderia a reconhecer a falência e a hipocrisia da moral vigente.
Se, por um lado, a prostituição traz a marca de um estigma relacionado a comportamentos e práticas sexuais marginais, por outro lado, é justamente dessa marginalidade que ela tira sua força. O território de prazeres ilegítimos, que conta com a cumplicidade entre aqueles que o freqüentam, permite ao homem viver fantasias sexuais inconfessáveis, sem se sentir ameaçado em sua identidade social. Além disso, os eventuais e inevitáveis fracassos sexuais são igualmente preservados neste espaço. Existem também aqueles para quem o pagar representa uma forma de afirmação de poder, virilidade (em particular quando a performance sexual deixa a desejar), uma maneira de compensar uma insegurança ou frustrações afetivo-sexuais, etc. Mas, por certo, existem pessoas que sentem prazer nessa forma de viver a sexualidade sem maiores problemas.
Evidentemente, não se pode negar que, no Brasil, a miséria seja um dos maiores fatores que leva as mulheres à prostituição. Entretanto, atribuir a entrada e a permanência nessa prática unicamente a questões financeiras é um argumento redutor, além de misógino, pois nega, mais uma vez, o direito à mulher de escolher livremente como quer viver sua sexualidade. Ou seja, se posicionar como sujeito desejante e histórico, fazendo da prostituição uma escolha como qualquer outra.
Se não existe um motivo único do por que os homens procuram prostitutas, são insatisfatórias as tentativas de explicar a razão que leva as mulheres a optar pela prostituição: rivalidade com os homens, reconhecimento narcísico, conflitos infantis mal resolvidos, predisposições perversas, abandono pelo marido, dificuldade de criar os filhos, etc.
A profissional do sexo não existe sem o cliente. Entre eles há um movimento mútuo e complementar de oferta e demanda: é por existirem, de ambos os lados, desejos em busca de satisfação e promessa de satisfazê-los que a prostituição sempre existiu e continuará existindo, mesmo nos lugares em que sua prática seja oficialmente proibida. Todos os elementos presentes na construção do universo erótico da prostituição (local, formas de sedução, promessas, confidências, preço, adereços, vestimentas, fetiches, etc.) se misturam de forma que é impossível saber quem está realizando a fantasia de quem, embora, objetivamente, os papéis estejam bem definidos.
A prostituição sempre foi um negócio dos homens e do Estado, os quais mantiveram o controle da situação geradora de recursos econômicos à custa da exploração das mulheres, seja na figura do proxeneta, nas taxas, leis ou extorsões que as prostitutas são obrigadas a se submeter. Juntamente com a violência conjugal, o estupro, e outras tantas formas de dominação masculina, a prostituição constitui mais uma manifestação da cultura machista, pois, em certa medida, a sexualidade feminina continua sendo gerenciada pelos homens. Além disso, a sociedade que cria fiscalizações, sanções e punições às atividades de prostituição em nome da moralidade e dos bons costumes é a mesma que cria subterfúgios para manter esses serviços ativos e disponíveis quando a ocasião, e/ou a necessidade, se apresentar.
Seja como for, refletir sobre a prostituição é aprofundar o debate sobre as relações entre homens e mulheres, o que não pode ser feito sem levar em conta as questões ligadas à posição subjetiva da mulher na sociedade, em particular a da prostituta, e a hegemonia do discurso masculino dominante.
O universo dos michês
Em geral, a prostituição masculina se deve a fatores de ordemeconômica
Na Grécia antiga, a prostituição masculina, como a feminina, já existia e não era vista como algo escandaloso. Os pórnoi, “homens prostituídos”, atendiam homens e mulheres e estavam sujeitos ao pagamento de taxas nos bordéis de Atenas. Hoje, no Brasil, guias turísticos de algumas cidades brasileiras incluem roteiros noturnos às áreas da cidade freqüentadas pelos prostitutos masculinos: os michês. As razões para a entrada na profissão são quase sempre de ordem econômica. As idades em geral variam de 18 a 30 anos. Há michês homossexuais, bissexuais e heterossexuais. Muitos são casados ou têm parceira fixa.
Há os que ficam nas ruas se expondo, como produtos em vitrine. Os mais ousados, não hesitam em mostrar o pênis ereto. Outros, de classe social mais alta, como estudantes universitários, justificam a atividade para “arredondar” as contas no final do mês. Estes em geral anunciam seus serviços em jornais, revistas, nas salas de bate papo e de namoro da net, ou freqüentam saunas masculinas. Nos anúncios, a aparência física, assim como a menção do tamanho de pênis e das preferências sexuais – ativo, passivo, versátil, moderno – são fatores importantes para atrair a clientela.
Existem também os scort boys: garotos de programa ligados a agências especializadas, que se anunciam de forma discreta e personalizada. Possuem um book fotográfico, no qual a beleza física, o corpo perfeito e as qualidades intelectuais são realçadas para atender uma clientela diferenciada composta de homens de alto poder econômico. Por fim, há os michês eventuais que, quando a ocasião se apresenta, não perdem a chance de “ganharem um extra”. Fato interessante é que entre tais sujeitos, existem os que usam a prostituição como desculpa – “isso é apenas um trabalho” – para viver uma relação homossexual de outra forma intolerável a eles.
Os clientes dos michês, majoritariamente homens, são diversificados: bissexuais, homossexuais não assumidos, heterossexuais curiosos, que procuram os garotos de programa para viverem fantasias e desejos homossexuais de forma anônima. Outros, que não escondem a homossexualidade, recorrem aos michês por diversas razões: solidão, uma aventura sem compromisso, uma noite à dois, um extra à vida do casal homossexual, ou simplesmente por gostarem dessa forma de relação sexual. Casais heterossexuais também procuram os michês para que participem, como um terceiro, da relação sexual. Geralmente, o parceiro fica na posição do voyeur que observa a parceira tendo relações sexuais com outro homem.
Entre o michê e seu cliente existe, às vezes, uma cumplicidade que vai além das questões financeiras. Como na prostituição feminina, entre os protagonistas se estabelece um jogo erótico no qual fica difícil saber quais fantasias estão sendo realizadas.
A legislação brasileira
No Brasil, a prostituição existe de fato, mas não de direito.
A legislação penal brasileira não criminaliza a prostituição, por entender que ela não é um problema penal, mas social. Nem as prostitutas nem os clientes incorrem em penas. O Capítulo V do Código Penal, porém, considera crime punível com prisão induzir ou atrair alguém à prostituição, ou, ao contrário, impedir alguém de abandoná-la; criar ou manter casas ou locais para encontros libidinosos, havendo ou não intuído de lucro; tirar proveito da prostituição alheia; intermediar a entrada, o transporte, a transferência ou acolhimento no território nacional de pessoas que venham exercer a prostituição; facilitar a saída de pessoas para exercê-la no exterior.
Em 2003, o então deputado Fernando Gabeira apresentou o Projeto de Lei 98, baseado na legislação da Alemanha, que propõe a descriminalização da prostituição e o pagamento por prestação de serviços sexuais (que inclui o tempo dispensado para tais serviços, ainda que não tenham sido prestados). Em complementação, o Projeto propõe a supressão do Código Penal dos artigos que tratam do favorecimento dessa atividade, das casas de prostituição e do tráfico de mulheres.
Gabeira argumenta que a prostituição, atividade própria à civilização, nunca deixou de existir, embora tenha sido estigmatizada e reprimida, inclusive com violência. Sua descriminalização seria uma maneira de admitir a realidade, tornar possível que os serviços prestados sejam pagos e reduzir os malefícios que acarretam a marginalização dessa atividade.
Embora, sem dúvida, o Projeto traga uma discussão importante e atual, ele sofre de limitações por não levar em conta certos aspectos relativos aos direitos das prostitutas. Ademais, tal como está, corre o risco de reforçar ainda mais a indústria da prostituição, transformando as prostitutas em reféns dos empresários, os grandes beneficiados economicamente. Haveria, também, o perigo de estimular crianças e adolescentes a essa prática.
Ainda que exista um relativo consenso quanto à necessidade de descriminalizar a prostituição, o Projeto necessita de modificações, para contemplar, entre outros, direitos previdenciários, à assistência médica e à educação das prostitutas.
Para conhecer mais:
- Prostituição: artes e manhas do ofício. R. Araújo. Cânone Editorial, 2006.
- Manicômios, prisões e conventos. E. Goffman. Perspectiva, 1987.
- As prostitutas na Bíblia: algumas histórias censuradas. J. Kirsch. Rosa dos Tempos, 1998.
- A prostituição na Idade Média. J. Rossiaud. Paz e Terra, 1992.
- Prostituição: exploração sexual e dignidade humana. N. Reveron. Paulinas, 2008. 2008.

Paulo Roberto Ceccarelli*
* Psicólogo; psicanalista; Pós-doutorando pela Universidade de Paris VII; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio de Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da “Société de Psychanalyse Freudienne”, Paris, França; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG (graduação e pós-graduação).

HOMOSSEXUALIDADE: VERDADES E MITOS




in BAGOAS – estudos gays, gênero e sexualidade. Natal, 5, 119-129, 2010
Paulo Roberto Ceccarelli
Samuel Franco
A sexualidade sempre foi um grande enigma da humanidade e uma das mais importantes e complexas dimensões da condição humana. Sua compreensão envolve inúmeras variáveis que incluem questões morais, políticas, e ideológicas. Neste texto, procuraremos fazer uma breve digressão da construção sócio-histórica da sexualidade para tentar mostrar que a maneira que a cultura ocidental lida com as manifestações da sexualidade, particularmente a homossexualidade, é tributária dos códigos e valores que sustentam o imaginário desta cultura. Tais códigos, que variam segundo as épocas, influenciam diretamente o que é permitido, o que é proibido, o que é normal, e o que é patológico, em termo das práticas sexuais dos indivíduos.
Na cultua ocidental, o termo homossexualidade deve ser compreendido, inicialmente, como uma construção social tributária do contexto histórico no qual emerge. Portanto, quando dizemos algo a respeito da homossexualidade devemos ficar atentos a que este termo não represente uma essência em si, mas, como algo próprio da construção da linguagem moral da modernidade (COSTA, 1992). Como sabemos, na Antiguidade Clássica, assim como muitas culturas atuais, as convicções morais, políticas e religiosas a respeito da sexualidade divergem bastante da modelo ocidental da sexualidade. Assim, sustentar a existência de uma sexualidade “natural” trans-historica baseada no imperativo biológico da divisão dos sexos, seria no mínimo ingênuo. Todas as idéias e termos que temos à respeito da sexualidade são sustentadas pela cultura judaico-cristã que as criou (COSTA, 1992). É importante ressaltar que toda a teorização à respeito da diferença dos sexos foi construída nos séculos XVIII e XIX. Homossexualidade e heterossexualidade são, portanto, identidades socioculturais que determinam nosso agir, sentir, pensar, etc., e não uma essência universal. Desta forma, Costa (1992), retornando Ferenczi, propõe que venhamos a substituir o termo homossexualismo e homossexualidade pelo termo homoerotismo, pois, este abrange melhor a pluralidade das diversas práticas e desejos entre os indivíduos do mesmo sexo, evitando assim, alusões à anomalia, perversão ou desvio.
Se, como dissemos, não existe uma essência da sexualidade, podemos dizer que o que existe são construções conceituais e eventos que a linguagem, o simbólico, se utiliza para chamar, definir e classificar tanto a sexualidade quanto as práticas sexuais. Daí a impressão de que, quando discursamos sobre sexo, esta palavra, ou melhor, dizendo o(s) conceito(s) que ela define(m) encontram-se na realidade ou na natureza das coisas que elas designam – Nunan (2003). Na sociedade contemporânea a palavra sexo possui duas características fundamentais: primeira a de que o sexo é algo separado dos comportamentos sexuais dos indivíduos; segundo a de que o sexo é naturalmente dividido em dois: o sexo do homem e o sexo da mulher. De acordo com Nunan (2003), do ponto de vista das leis biológicas homens e mulheres são completamente diferentes a nível sexual, porém, esta visão do sexo na teoria da bissexualidade original é uma visão recente, logo, histórica. É exatamente a partir deste conceito de bissexualidade, que se fundamenta a idéia da heterossexualidade e homossexualidade.
No ocidente, até o século XVIII, a visão cientifica acerca da sexualidade era concebida através de um modelo sexual único: a mulher era compreendida como sendo um homem invertido e inferior. Invertido do ponto de vista biológico, inferior do ponto de vista estético. A partir desta teoria, a concepção científica da época afirmava que só havia um sexo. Somente a partir do corpo do homem se realizava todas as potencialidades. A distinção entre eles era percebida (de acordo com a posição social e cultural), mas não explicada pela distinção entre os sexos. Em certa medida, a posição falocêntrica de Freud dá continuidade a esta visão.
No final do século XVIII e início do século XIX, a realidade social é transformada pela revolução burguesa e pelo iluminismo. A percepção médico-científica da anatomia feminina também é transformada devido ao aparecimento de uma nova ordem política, onde se faz necessário distinguir, em termos de oposição, homens e mulheres, fazendo aparecer, portanto, dois modelos de sexos. A distinção entre os sexos, passa agora a justificar e colocar diferenças morais aos comportamentos femininos e masculinos, de acordo com as exigências da sociedade burguesa – Albuquerque (1987). Sob o ponto de vista biológico, legitima-se assim a superioridade masculina como algo de ordem “natural”. Esta ideologia foi uma maneira nascida dos interesses dos filósofos, moralistas e políticos, com a finalidade de justificar a inferioridade político-jurídico-moral da mulher, transformando-a em símbolo da delicadeza e fragilidade da vida privada e da família. Para justificar esta transformação da mulher, recorreram à questão da biologia feminina procurando naturalizar esta “vocação” inata para os cuidados da casa e dos filhos, mantendo-a, assim, longe da esfera pública. A mulher então passa a ter a função de procriação, ou seja, reproduzir a população e, conseqüentemente, a força de trabalho. “A família tornava-se, deste modo, a célula do estado burguês” – Nunan (2003, p.29). O homem por sua vez passa a exercer o papel de protetor devido sua força física e sua superioridade moral. O homem então, se transforma em sinônimo de altivez mulher em submissão, situação que observamos até os dias atuais. A superioridade intelectual do homem e uma superioridade afetiva da mulher. A partir daí, homens e mulheres começam a se distinguir radicalmente em função dos gêneros masculino e feminino. A partir do século XIX, a mulher diante do novo modelo dos sexos, se torna o inverso complementar do homem. Por outro lado, a categoria de inversão (agora como algo anormal, antinatural e perverso), passa a designar o homossexual.
Sua inversão será perversão porque seu corpo de homem será portador da sexualidade feminina que acabara de ser criada. O invertido apresenta um duplo desvio: sua sensibilidade nervosa e seu prazer sexual eram femininos. Se sexo foi, por isso mesmo, definido como contrario aos interesses da reprodução biológica (COSTA, 1995, p.129).
De acordo com Foucault, todos os comportamentos sexuais que fogem à “lei da natureza”, começam a ser estudados incansavelmente pela ciência, pois estas manifestações sexuais apresentam à sociedade como uma ameaça ao costume moral familiar e à raça. Os indivíduos passam então a ser categorizados a partir de suas praticas sexuais. Podemos observar que até nos dias atuais a pluralidade das manifestações sexuais fica reduzida a uma dualidade categórica imperativa.
Pode-se observar que o uso dos conceitos de degeneração, instinto sexual e evolucionismo na ciência do século XIX justificava a ideologia burguesa. O homossexual no começo do século XIX se tornará um perverso, um monstro, uma anomalia. De acordo com Áries (1985), tanto a igreja quanto a ciência buscam reconhecer a “deformidade física” que fazia do homossexual um homem-mulher. A homossexualidade será reconhecida no início como uma anomalia do instinto sexual causada pela degeneração ou atraso evolutivo. É importante comentar que o homossexual, num primeiro momento, era visto como um efeminado. O indivíduo não era culpabilizado por esta “deformidade”, porém, ele era isolado e vigiado como se fosse uma mulher, pois, acreditava-se que o homossexual, assim como a mulher, eram seres pecaminosos que poderiam seduzir outras pessoas para o “mau caminho”. Segundo Nunan (2003), os homossexuais passam a ser enquadrados como delinqüentes, juntamente com prostitutas, homicidas, doentes mentais, criminosos, etc., ou seja, a conduta homossexual passa a representar uma subversão moral da sociedade burguesa.
O preconceito social que estigmatiza e rotula o homossexual até os dias de hoje foi um produto da ideologia evolucionista burguesa, onde se criou uma crença numa vivência sexual “normal” e “civilizada”, a partir do momento em que o sexo se transformou em elementos político e social relevantes para época. O instinto sexual ligado diretamente à palavra “sexo”, passa a ter uma finalidade única. Todas às relações e condutas que fugissem à esta finalidade eram consideradas perversas e antinaturais.
A “naturalidade” do instinto sexual eram as relações entre homens e mulheres, com vistas à reprodução biológica e à manutenção da família nuclear burguesa (NUNAN 2003, p.32).
A psiquiatria clássica descrevia o homossexual como um ser perverso. Sustentava, também, que sua personalidade continha traços femininos (por ser um homem invertido), o que se manifestava na atração que os homossexuais sentem pelos homens viris. Assim de acordo com Pollak (1985), estas classificações foram criando no imaginário social estereótipos e imagens caricaturais à respeito da homossexualidade. Costa (1995) relata que não podemos nos esquecer que todo este rótulo e estereótipo pertence a uma linguagem lingüística do século XIX e não a uma realidade natural e biológica. Portanto, o que entendemos sobre homossexualidade, nasceu de esforços da ficção médico-literária.
É importante ressaltar que, antes do século XVIII, quando as concepções judaico-cristãs determinavam a moral sexual vigente, os homossexuais eram descritos pela igreja como sodomitas (termo bíblico que, originalmente, era utilizado para descrever qualquer relação ou ato dito “contra a natureza”. Ou seja toda manifestação sexual que não visasse a reprodução). Quanto ao homossexual que, posteriormente, passou a ter uma fisiologia e uma psicologia particular, ele foi transformado, frente aos olhos do estado burguês, em um pederasta ou infame (NUNAN, 2003).
O conceito homossexual foi proposto, no século XIX, pelo médico húngaro Benkert, a fim de transferir do domínio jurídico para o médico esta manifestação da sexualidade. Entretanto, a invenção da palavra “homossexual”, de acordo com Nunan (2003), altera a idéia que se faz destes sujeitos. A palavra transforma-se em um rótulo que coloca os homossexuais na categoria de doentes psíquicos ou um mal social. Ao classificarmos o homossexualismo como doença, começam a surgir, a partir das investigações médicas, tentativas de cura, através de abstinências, hipnoses, e até a cirurgias. A homossexualidade surgida na concepção médica do século XIX, integrou-se à psicologia e à psiquiatria e o “homossexual passou a ser explicado como um produto das espécies individuais” Nunan (2003, p.35).
O discurso médico do século XIX transformou os comportamentos sexuais em identidades sexuais e, na cultura ocidental contemporânea, esta identidade sexual tornou-se identidade social. O sujeito passa, então, a ser classificado como “normal” ou “anormal” a partir de sua manifestação, ou inclinação, sexual.
A sexualidade, que poderia representar a diversidade, acabou por se converter em um destino aprisionante, particularmente para aqueles que, tal como os homossexuais, apresentam uma sexualidade considerada desviante. (NUNAN 2003, p.36).
Finalmente, é curioso observar as posições abertamente machistas no discurso sobre a homossexualidade: sobre a homossexualidade feminina existia, na época, um silêncio no mínimo inquietante que, provavelmente, é um resquício da ideologia do século XVIII da posição inferior da mulher.
Homossexualidade e psicanálise
Como sabemos, a sexualidade ocupa um lugar central na obra freudiana. No que diz respeito à homossexualidade, as posições de Freud foram fundamentais para a despatogenização desta manifestação da sexualidade, além de promover um questionamento da moral sexual de sua época. Seus principais trabalhos onde a questão homossexual é debatida são: Os três ensaios sobre a sexualidade (1905), O caso Schreber (1911), Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1911), e Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920).
Podemos observar, através de seus escritos, que tanto a homossexualidade, quanto a heterossexualidade, são resultados de caminhos pulsionais, fazendo com que uma seja tão legítima quanto a outra. Segundo Freud, é a partir do complexo de Édipo, baseado na bissexualidade original, que a “escolha do objeto” vai constituir-se, pois em todos os seres humanos desde o inicio da vida encontramos, ainda que no inconsciente, investimentos libidinais homossexuais e heterossexuais. Para Freud (1905), os homossexuais não possuem nenhuma qualidade especial que os torne um grupo à parte do resto da humanidade. Na perspectiva da psicanálise, desde a infância, nos estágios primitivos da sociedade e nos primeiros períodos da historia, a escolha do objeto recai igualmente em objetos femininos e masculinos, se desenvolvendo tanto os tipos normais quanto os invertidos. Além disso, em uma nota acrescentada aos Três Ensaios em 1915, Freud (1905, p.146) afirma que “o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo, baseado em uma atração afinal de natureza química” (chemische Anziehung).
De qualquer forma, o interesse de Freud parece centrar-se menos no problema da homossexualidade em si do que na elucidação dos caminhos pulsionais que levam às escolhas objetais:
Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até as disposições instintivas (FREUD, 1920, p.211).
No artigo Sexualidade e preconceito Ceccarelli (2000), observa que a genialidade de Freud foi afirmar que as tendências perversas catalogadas e inventariadas pelos psicopatólogos daquela época como “aberrações humanas” eram ingredientes da psicossexualidade estando, inclusive, presentes na sexualidade infantil, a qual é definida como “polimorficamente perversa”. Subjugada às leis da linguajem e à dimensão do desejo, a sexualidade foge a qualquer tentativa de normalização contrariando, assim, tanto a moralidade sexual quanto a opinião popular, ambas tributarias da biologia, e da religião. No ser humano, a sexualidade não tem finalidade única, nem tampouco objeto fixo. Ou seja, ela não está atrelada, como nos animais, à determinações instintuais. O objeto da pulsão, diversificado e anárquico, manifesta-se de formas variadas: oral, anal, vocal, sádica, masoquista… De acordo com Ceccarelli (2000, p.29), a sexualidade humana é, em si, perversa pois,
Ao buscar o prazer, a sexualidade escapa à ordem da natureza e age a serviço próprio “pervertendo”, assim, seu suposto objetivo natural: a procriação. (…) Nesta perspectiva, a sexualidade é contra a natureza; ou seja, em se tratando de sexualidade, não existe uma “natureza humana”.
As posições de Freud sobre a homossexualidade não eram apenas teóricas: Freud as sustentava na prática (Ceccarelli, 2008). A opinião de Freud, publicada no jornal vienense Die Zeit a respeito de um escândalo envolvendo uma personalidade acusada de práticas homossexuais não é sem conseqüências. Nela, Freud declara que a homossexualidade não releva do âmbito jurídico e, mais ainda, que os homossexuais não devem ser tratados como doentes pois, se a homossexualidade for uma doença, teremos que qualificar de doentes grandes pensadores que admiramos. Há também a carta de Ernest Jones enviada a Freud em 1921 sobre o pedido de admissão de um jovem homossexual à sociedade psicanalítica. Jones é contra a admissão. Freud discorda de Jones e afirma que a admissão, ou não, do candidato dependerá exclusivamente da análise de suas qualidades.
O que parece evidenciar do que foi dito acima é que a questão das “sexualidades desviantes” é um problema que está intimamente ligado a como o imaginário da cultura ocidental lida com a sexualidade. Em toda e qualquer cultura, boa parte da noção de “normal”, e de “patológico”, está em relação direta com o imaginário desta mesma cultura. Na cultura ocidental, é no imaginário judaico-cristão, cujas origens remontam aos mitos fundadores que o sustentam, que encontramos as bases daquilo que é considerado “normal” e, por conseguinte, “desvio”.
Sem dúvida, um dos pontos de ruptura da teoria psicanalítica que até hoje, e talvez ainda por muito tempo, seja problemático para a cultura ocidental é a questão da sexualidade. À despeito de tanta “evolução”, a sexualidade continua a ser um grande tabu. Neste sentido, o texto de Freud (1889) A sexualidade na etiologia das neuroses escrito há mais de 100 anos é de uma atualidade desconcertante. Por outro lado, embora muito já tenha sido dito e escrito sobre o impacto produzido pela publicação dos Três ensaios, o assunto é geralmente debatido, já o dissemos, em relação às revolucionárias posições freudianas a respeito da sexualidade. Acreditamos, entretanto, que a ruptura mais importante trazida por este texto fundador ainda não foi suficientemente avaliada. Trata-se da desconstrução do imaginário judaico-cristão produzida pelos postulados freudianos (CECCARELLI, 2007). Nossas referências mais caras sobre a sexualidade, assim como nossas posições morais e éticas, são baseados no sistema de valores judaico-cristão que são historicamente construídos. Na cultura ocidental, estes valores funcionam como referências identitárias que organizam nosso cotidiano e explicam a origem do mundo e como ele deve funcionar segundo a vontade de Deus: eles são nossa mitologia. Baseado nessa mitologia, o desejo sexual espontâneo é prova e castigo do pecado original – a concupiscência: o homem é fruto do pecado – e a única forma de sexualidade aceita é a heterossexual para a procriação (RANKE-HEINEMANN, 1996). Ao postular, como vimos, que a sexualidade humana age a serviço próprio, Freud destrói o sistema de pensamento que sustentada a crença de uma “natureza humana”.
Considerações finais
Mesmo que o “mundo natural” seja igual para todos, cada cultura, cada sociedade, ira interpretá-lo de acordo com o sistema simbólico que rege esta determinada cultura. Vivemos nossa sexualidade conforme os parâmetros ideológicos, morais e políticos de uma criados pela cultura na qual estamos inseridos. Por sermos dirigidos por convenções sócio-históricas, percebemos a sexualidade como algo inata, pronta, que transcende o humano, o tempo, a linguagem, e a historia, valida desde sempre para todos os sujeitos. A crença em uma sexualidade normal e natural nos leva a uma intolerância contra comportamentos sexuais que fogem a essa ordem, pois abalam nossas verdades. Legitimar o comportamento sexual do outro diferente é afirmar que não existe uma verdade absoluta e que verdade é sempre a verdade de cada, o que mostra que nossos referenciais são construções simbólicas de um tempo histórico e de uma cultura determinada.
A homossexualidade é uma construção de um discurso social sedimentado nas referencias simbólicas que ditam os parâmetros sexuais de normalidade levando a exclusão do sujeito homossexual no discurso dominante de uma dada cultura por seu comportamento ser “desviante”.
Compreendendo que os comportamentos da sexualidade humana são criados e não inatos, é necessário entender e considerar a particularidade da historia de cada um na origem de sua solução sexual. Sendo que cada sujeito tem uma historia, esta é marcada por identificações sucessivas, resultado de investimento libidinais em diferentes registros.
Como no inconsciente não existe uma demarcação simbólica e temporal, não existe uma sexualidade natural e muito menos normal. Existem moções pulsionais que se deslocam manifestando uma pluralidade de expressões da sexualidade. Portento não existe uma única maneira certa de vivenciar a sexualidade.
O discurso dominante cria os ideais sociais construindo um padrão sexual “normal” na tentativa de direcionar a pulsão, o que não deixa de ser uma forma de controle. A psicanálise vem mostrar que a sexualidade não é algo inato, pois, falando de pulsão não existe natureza humana. O que é necessário compreender e a dinâmica que subjaz as diferentes orientações sexuais.clássica.
Paulo Roberto Ceccarelli*
e-mail: pr@ceccarelli.psc.br
Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Pós-doutor pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio de Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da “Société de Psychanalyse Freudienne”, Paris, França; Membro fundador da Rede Internacional em Psicopatologia Transcultural; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG.
Samuel Franco*
Psicólogo graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-MG; especialista pela UFMG.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALBUQUERQUE, J. A.G. Gênero, Sexualidade e Sexo: três dimensões da diferenciação sexual. Rio de Janeiro: Taurus, 1987.
AIRÈS, P. Reflexões Sobre a História da homossexualidade. In: AIRES, P & BEJIN, A. (Orgs.) Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1985.
COSTA, J. F. A Inocência e o Vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992.
______. A Face e o Verso: estudos sobre o homoerotismo II. São Paulo: Escuta, 1995.
CECCARELLI, P. R. Sexualidade e Preconceito. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, III, 3, 18-37, set. 2000.
______. Mitologia e processos identificatórios. In: Tempo Psicanalítico. Rio de Janeiro: 39, p. 179-193, 2007.
______. A invenção da homossexualidade. In: BAGOAS – estudos gays, gêneros e sexualidades, Natal, 2, 71-93, 2008.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976 [1905], v. VII.
_______. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976 [1920], v. XVIII.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade I – A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1976/1999.
NUNAN, A. Homossexualidade: do Preconceito aos Padrões de Consumo. Rio de Janeiro: Caravansarai, 2003
.
POLLAK, M. A Homossexualidade Masculina, ou: a felicidade do gueto? In: AIRES, P & BEJIN, A. (Orgs.) Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1985.
RANKE-HEINEMANN, U., “Eunucos pelo Reino de Deus”. 3.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996.

sábado, 16 de março de 2013

E SE LOUCO EU FOSSE?





Por Djair Junior, estudante de Psicologia pela UFPE

E se louco eu fosse?
Como feliz eu seria, Se no lugar da normalidade, Deus de mim fizesse um louco.
Seria a cada amanhecer um ser diferente. Do meu jeito, imperfeitamente perfeito.
Vivendo em um mundo só meu, Criado por mim.
Lá seria rei, depois plebeu. Seria o bem e o mau.
Seria o problema e a solução. E quando cansado estivesse, seria apenas eu.
Livre, sem medidas, sem pudores.
Seria feliz e isso me bastaria.
Quem dera meu sonho não fosse tão utópico.
A realidade é que me limito à normalidade.
Quero a pureza dos loucos, pois ser normal me causa tédio.

POEMA: JOGO DE MÁSCARAS




Por Djair Junior, estudante de psicologia pela UFPE


Sim! Vivo mascarado.
Escondo o que nem em sonho posso mostra-los.
Caso contrário não seria ao menos amado.
Posso parecer exagerado, mas essa é minha medida de segurança.

Atrás dela esta toda uma herança.
Os meus códigos até então indecifráveis.
Meus sentimentos frágeis, que quando expostos foram tão magoados.
Posso parecer errado, talvez eu esteja sendo premeditado.
Mas a vida me fez amar as máscaras.

Como não amá-las? Amo a vida e a vida é um fabuloso jogo de máscaras.
Jogo onde vence quem melhor se mascara.
Onde os sem máscaras são peças raras,
que antes do fim do poema já estarão extintos.

Escolham, fantasiem-se e joguem o jogo das máscaras.
Reze para que elas não caiam até o fim da partida,
Pois o que é verdadeiro tende a não agradar.
Eu me mascaro,
pois caro pagaria se fizesse o contrário.

OS EFEITOS PERVERSOS DA TELEVISÃO














Por Paulo Roberto Ceccarelli, 
Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Pós-doutor por Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da Société de Psychanalyse Freudienne, Paris, França; Membro fundador da ONG TVer; Membro fundador da Rede Internacional em Psicopatologia Transcultural; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG. Professor visitante da pós-graduação da Faculdade de Ciências Humanas ESUDA, Recife/PE. Professor credenciado a dirigir pesquisas de pós-graduação, e pesquisador no Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará, em Belém. Pesquisador do CNPq.



in, A criança na contemporaneidade e a psicanálise. Mentes & Mídia: diálogos interdisciplinares, Comparato C, Monteiro D., (coord.),   São Paulo, Caso do Psicólogo, Vol.  II, 75-86.


A escolha deste título - "Os efeitos perversos da televissão" - é uma tentativa de melhor compreender, e consequentemente avaliar, a extensão dos efeitos que, evidentemente podem ou não ser perversos, da mídia, e em particular a televisão, na constituição do psiquismo.

Etimologicamente, perversão, do latim perversio, define a "ação de perverter", "transformar em mal", "depravação", "corrupção"; perversão dos costumes, do gosto artístico... Fala-se de ato perverso, de conselho perverso, máquina perversa, etc. Assim, o sentido primeiro e geral de perversão é a idéia de um desvio, uma derrapagem, do bem em mal. O paradigma é a Criação: o ato criador é bom mas o criado, não sendo Deus, implica a possibilidade do mal(2).
                        
Logo percebemos que esta definição não resiste à uma análise mais rigorosa. Todos conhecemos situações onde uma iniciativa, uma palavra, tenha produzido efeitos opostos ao desejado; ou ainda aquelas onde o objetivo foi pervertido por aqueles a quem a referida iniciativa, ou palavra, fora dirigia. Isto coloca uma questão filosófica: "a boa intenção e a convicção interior contrabalançam os efeitos perversos não esperados da ação original?" e também uma ética: "é-se responsável pelos efeitos secundários que não se desejou?"
                        
A análise se complicada ainda mais ao introduzirmos a dimensão psicanalítica que vai justamente querer saber mais sobre "a boa intenção e a convicção interior".
                        
Entendo por "perversão" toda tentativa de impor algo a um outro que não consentisse nisso ou, o que talvez seja ainda pior, impor algo a alguém que não tenha a dimensão do que lhe está sendo imposto(3). Por exemplo, impor à uma criança uma fantasia sexual; utilizar-se situações transferênciais, como na clínica, para manter uma relação falida onde, num narcisismo mortífero, o analisando, com a cumplicidade do analista, entrega-se de corpo e alma ao gozo suposto do Outro que o analista encarna.
                        
Em alguns casos, este raciocínio pode ser transposto para a televisão: esta última - seja na programação ou nos comerciais - pode utilizar de seu poder de persuasão para incentivar comportamentos e sugerir "valores sociais de felicidade" absolutamente inalcansáveis, se não para todos, para a grande maioria da sociedade. Em nome do consumo (o telespectador é, antes de mais nada, um consumidor) certas emissoras não medem esforços para manter os pontos da audiência. O perigo é que isto leve à criação de referências "ético-morais" divergentes daquelas necessários para a construção de uma estrutura social calcada no respeito e no direito do cidadão.

Um outro ponto importante: o mundo está, como sempre esteve, em constante mudança. Para avaliar tais mudanças é necessário manter, dentro do possível, uma certa neutralidade. Não podemos nos esquecer que nossa leitura não é imune à nossa própria organização identificatória, ao nosso referencial de valores ético-morais, e que, tampouco, está ao abrigo de nossos complexos inconscientes infantis que a transferência atualiza. A meu ver, nada pode atrapalhar mais qualquer tentativa de compreensão da atualidade, do que a insistência em manter a todo custo antigas posições narcísicas que se traduzem por expressões como: "antigamente as coisas não eram assim"... "naquela época"... e assim por diante. Se quisermos ter uma compreensão psicológica da criança na era digital devemos ter o cuidado, justamente para não cairmos em posições nostálgicas que, que qualquer forma, não voltarão jamais, de não avaliar as mudanças deste final de milênio como se estivéssemos caminhado para um algo necessariamente pior; onde alguma coisa foi irremediavelmente perdida. Qualquer mudança gera angústia pois implica no desinvestimento libidinal de antigas posições em favor de novas.

A mídia não é um fato isolado da modernidade. Seria no mínimo ingênuo acreditar que as mudanças de valores, comportamentos e atitudes da contemporaneidade devem-se exclusivamente à mídia: ela só chegou onde está devido à condições sócio-econômicas favoráveis num contexto histórico preciso em uma sociedade capitalista. E como acreditamos, em direta filiação freudiana, que a "psicologia individual (...) é ao mesmo tempo, também psicologia social"(4), uma análise completa da situação requereria também uma análise do social pois a constituição do sujeito não pode prescindir dos movimentos sociais onde este sujeito é engendrado. Entretanto tal empreitada por demais ampla, foge ao objetivo do presente trabalho.
                        
Minha proposta, bem mais modesta, é de tentar compreender a participação das novas configurações da contemporaneidade, em particular a da TV, na construção da subjetividade. A mídia, a internet o sexo virtual, os video-games os computadores, que fazem parte da paisagem pós-moderna, são dados objetivos ao alcance da criança: é com esta realidade que temos que lidar. 
                        
A pergunta então seria: como o instrumental psicanalítico pode ajudar-nos a analisar estas novas configurações? como estas últimas tomam parte na construção da subjetividade na atualidade e, finalmente, quando esta participação pode gerar efeitos perversos?  
                        
Segundo o Aurélio: «"mídia" vem do inglês (mass) media, 'meios de comunicação (de massa)'; o inglês media, por sua vez, advém do neutro plural do latim medium, 'meio', 'centro'; é a forma substantiva do adjetivo latino medius, a um, 'que está no meio', inicialmente usado na acepção geral de 'meio', 'meio termo'.»
                        
"Mídia" significa «"o conjunto dos meios de comunicação, e que inclui, indistintamente, diferentes veículos, recursos e técnicas, como, p. ex., jornal, rádio, televisão, cinema, outdoor, página impressa, propaganda, mala-direta, balão inflável, anúncio em site da Internet, etc. "Mídia" significa também "O conjunto de meios de comunicação selecionados para a veiculação de mensagem ou de campanha publicitária."»
                        
Temos aqui um ponto de choque, um divisor de águas, entre o discurso midiatizado e o discurso psicanalítico: enquanto o primeiro, apoiado num conjunto de recursos regidos pelas leis de mercado visa influenciar pelos meios mais variados - sugestão, persuasão, condicionamento... - o consumo, o segundo, o discurso psicanalítico, apoia-se no desejo, no particular de cada um; enquanto o primeiro, em nome de uma ideologia, defende a massificação, a padronização, o segundo propõe resgatar a experiência do subjetivo, o "pathos", no sentido de paixão, sofrimento, para transformá-lo em experiência. 
                        
Para a psicanálise, o começo da vida do ser humano é marcado por uma relação de indiferenciação com o mundo externo. Neste estado de narcisismo primário, aquilo que poderíamos chamar de "eu-real" original, sem corte, sem borda e sem temporalidade, seria capaz de satisfazer as exigências pulsionais. Entretanto, esta satisfação auto-erótica é logo perturbada tanto pelas excitações oriundas do mundo externo quanto por aquelas de origem interna que as necessidades vitais suscitam. 
                        
Em seguida um primeiro conflito, que deixa claro as tendências antagonistas do ser humano, surge: por um lado, a condição primeira para que o bebê do homem se transforme em sujeito é a renuncia ao narcisismo - ou, se preferirmos, ao gozo narcísico - ou seja, a entrada no mundo do limite da castração e da morte. Por outro lado, uma tal renúncia nunca é completa, e a convicção de que, logo no início da vida, algo foi-nos roubado, que nada, nenhuma gratificação será uma indenização à altura do "objeto primordial" perdido, é uma constatação que se traduz pela reivindicação universal, que pode ser patológica em alguns casos, de que a comunidade nunca nos dá aquilo que nos é de direito. A própria civilização é, em seu cerne, marcada por aquilo que afeta o sujeito do desejo: o recalque.
                        
Este conflito inerente à condição humana pode também ser expresso da seguinte forma: ser "um", ou seja, unir-se na comunidade constituindo-se mais um membro desta e, por outro lado, manter os privilégios de ser "UM", "ÚNICO", quer dizer, ocupar o lugar do filho predileto, no mito de Totem e Tabu. A perspectiva que se segue é pouco alentadora: os homens não podem nem suportar a civilização, nem viver sem ela; eles têm que viver juntos... separadamente.
                        
Se, por um lado, é a civilização que constitui o homem e o protege, por outro, ela exige deste último, para que a vida em comum seja possível, o recalque, ao menos parcial, da sexualidade (a lei do incesto organiza as práticas sexuais) e da agressividade (não se pode dar livre vazão às pulsões; os direitos têm que ser respeitados). A energia das pulsões recalcadas é transformada, através do processo sublimatório, e (re)utilizada para a construção da civilização. Ao mesmo tempo, cabe à civilização oferecer satisfações substitutivas às pulsões recalcadas. Dito de outra forma: o processo civilizatório, o Outro, é aquilo que transforma o gozo em desejo; mas a ele cabe também garantir ao sujeito o acesso e a continuidade, por mínimas que sejam, às satisfações substitutivas sem o quê ocorreria um recrudescimento da frustração causada pela renúncia narcísica.
                        
Encontram-se aqui postulados os germes do Mal-estar na Civilização pois as satisfações que o processo civilizatórios oferece serão sempre parciais deixando na alma humana um sofrimento, um mal-estar, difícil de acalmar.
                        
O Édipo, etapa derradeira do longo processo ao final do qual o sujeito estará integrado à comunidade, implica em um pacto(5) onde a criança perde mas também ganha. Se, por um lado, ela deve aprender a adiar uma satisfação, ou até mesmo a renunciá-la, por outro ela recebe em troca um nome, uma filiação. Ou seja, um lugar na estrutura social e o acesso a ordem simbólica. Ao mesmo tempo, a sociedade também ganha: após o Édipo, a criança iniciará um processo de socialização ao final do qual ela estará em condições de oferecer o seu trabalho para a construção e transformação da sociedade. 
                        
Pois bem. Parece que uma das características mais marcante de nossa época é aquilo que se chama de "cultura do narcisismo(6)": uma cultura marcada pela descrença generalizada nos valores tradicionais, e por uma intensa busca do prazer pessoal, do individualismo, em detrimento dos ideais coletivos.
                        
O sistema de produção e consumo apoiado no massacrante modelo de "sucesso" imposto pelo capitalismo sustenta e aproveita desta organização psico-social. O slogan segundo o qual consumindo, possuindo, você "chega lá", marcando assim a Sua diferença e impondo a Sua marca individual, revela um aspecto perverso do sistema pois acena para a possibilidade de realização do Desejo e, consequentemente, de eliminação da falta, ou seja, da volta ao paraíso perdido do narcisismo primário. Mas a perversão não pára por aí: ao ditar os códigos a serem seguidos para que o reconhecimento narcísico seja sustentado -  pois, afinal, é o outro, o espelho, que nos reconhece - o sistema substitui, quando não elimina, os ideais pessoais que não se enquadram na cultura "objetiva" globalizante, o que pode levar à um empobrecimento, por vezes radical, da subjetividade.
                        
Se, por um lado, a proposta globalizante oferece a "vantagem" de eliminar a angústia do recalque ao criar ilusões identitárias baseadas em modelos coletivos uniformizantes, por outro, as referências identificatórias e os Ideais constitutivos do sujeito (suas origens, a particularidade de sua cultura, suas crenças e sistema de valores ético-morais) perdem seu lugar. Não havendo mais lugar para a circulação do desejo, o sujeito é transformado em objeto e perde a sua história.
                        
Cada aqui uma reflexão que, sem dúvida, merece uma elaboração mais detida. Talvez uma das razões do crescente sucesso, principalmente nas classes menos favorecidas, de seitas religiosas seja o fato destas última cumprirem uma função social: dar espaço para que o sujeito se manifeste e, consequentemente, sinta-se reconhecido e, ao mesmo tempo, acolherem a angústia de seus membros ao propor-lhes a Verdade. Mas a chamada "classe intelectual" não está ao abrigo deste tipo de proposta: há aqueles que aferram-se à uma teoria como à uma Verdade transformando, desta forma, seus pressupostos em dogmas, o que impossibilita todo e qualquer trabalho crítico e criativo. (A este respeito ver o artigo "Identidade e instituição psicanalítica". Conf., Ceccarelli, P.R., "Identidade e instituição psicanalítica", in Boletim de Novidades da Livraria Pulsional, São Paulo, ano XII, 125, 49-56, set. 1999)
                        
Votando ao tema. Um dos meios de divulgação desta "filosofia", desta ideologia - sobre a proposta globalizante - é a TV. 
                        
Graças ao plano Real e, com ele, o acesso a planos de financiamento(7), o número de aparelhos de televisão aumentou drasticamente. Segundo uma estimativa de 1998, das 92,6% das moradias com energia elétrica no país possuem aparelhos de TV dos quais 82,4% são em cores. Aumentou também o número de residências com mais de um aparelho de TV: 85% das classes A e B têm dois ou mais aparelhos em casa, além de videocassete e  TV a cabo. Na classe C, o índice de lares com TV subiu para 47% (contra 25% antes do Real); este índice passou de 3% para 8% nas classes D e E juntas.
                        
Juntamente com isto, aumentou também a produção dos chamados "programas de baixo nível". Entretanto, é curioso constatar que a adesão da população a estes programas não é um fenômeno localizado, centrado nas classes menos favorecidas e típico da realidade brasileira(8). Em países desenvolvidos, naturalmente dentro de suas realidades - por exemplo o Japão dito "o pais da classe média por excelência" ou ainda a França onde o estudo secundário é invejável - observa-se um elevado índice de audiência dos programas populares, o que sugere que a qualidade da programação não é um reflexo do grau de instrução ou do nível sócio-econômico da população. Isto parece confirmar uma das leis básicas da teoria da informação: "quanto maior a audiência, menor a taxa de informação da mensagem veiculada, o que significa menor qualidade dessa mensagem". Mais uma vez, a velha tese parece confirmar-se: a televisão foi feita para o divertimento e não para espelhar, e menos ainda para fazer que se reflita, sobre o contexto sócio-político de uma nação.
                        
Mais ainda, por vezes o apresentador, que tem sua origem nas "classes menos favorecidas", tende, como todo mundo, a tomar suas próprias referências de consumo, de sucesso, como referência geral, criando desta forma uma "cultura da massa", e não uma "cultura para a massa"(9). Muitos deles tornam-se referências identificatórias, verdadeiros heróis, "intelectuais", para outras pessoas que têm a mesma origem. Porém, enquanto cultura é o que nos fala da diferença tirando-nos do mesmo, da repetição, o entretenimento, quando massificado e unificado, tende à igualdade, à mesmice, o que atende muito bem os objetivos da mídia em termos de consumo.
                        
Se uma primeira constatação é óbvia: todas as classes passaram a ter mais acesso ao entretenimento, à informação, àquilo que se poderia chamar de "consumo cultural", uma segunda, merece reflexão: as conseqüências diferem. Diferem não apenas pela classe sócio-econômica mas, talvez e sobretudo, pela organização psíquica do sujeito exposto à informação.
                        
Sabemos que o potencial bio-psíquico que o bebê traz ao nascer será desenvolvido a partir das relações estabelecidas entre este último e seus pais e, num segundo momento, pelo grupo primário, o grupo familial, primeiro representante sócio-cultural ao qual a criança terá acesso. Através deste grupo, a criança vai adquirir os elementos de informação sobre o sistema simbólico relativo a sociedade à qual pertence e ao qual, como menina ou menino, ela deverá submeter-se e inserir seus comportamentos e condutas. Isto significa que a passagem do psicológico para o psicossocial não pode ser feita sem levar em conta a dimensão do grupo primário, "espaço transicional", limite e borda do sujeito. 
                        
Dentre os inúmeras discussões que podem ser feitas a partir do que foi dito, gostaria de centrar o debate naquelas situações onde um abismo separa a "realidade" mostrada na TV da realidade do contexto sócio-econômico - do grupo primário - onde o sujeito encontra-se inserido.
                        
Embora o fantasiar seja necessário para a manutenção do equilíbrio  psíquico - uma compensação às "exigências da sociedade"(10) - este mesmo fantasiar pode dar origem a importantes distúrbios psíquicos quando esta forma de satisfação pulsional constitui a única ao alcance do sujeito: o fantasiar transforma-se num ditame do imaginário.
                        
Ora, ao propor padrões identificatórias e de comportamento como insígnias de sucesso, a TV trabalha exatamente no veio da satisfação pulsional e do narcisismo: quando perguntado porque servia de "aviãozinho", porque levava drogas da favela para os consumidores, um interno da FEBEM de 12 anos respondeu: "assim eu posso comprar um tênis Nike, e ser igual a todo mundo (leia-se: "posso existir"), e ajudar minha família". O que a TV exibe (e qualquer novela de audiência máxima é repleta de exemplos) é, então, transformado em valor social de felicidade. Porém, nos lembra Freud(11), a felicidade é um problema de economia da libido e representa "a realização retardada de um desejo pré-histórico"(12).
                        
Como "a realização retardada de um desejo pré-histórico" é inerente ao ser humano, os valores-ideais superinvestidos pela TV - que aqui se confundem com aquilo que anteriormente chamamos de "satisfações substitutivas ao narcisismo" - jamais servirão para a realização do desejo e isto independente da classe social do sujeito. Aliás, é exatamente deste postulado - a impossibilidade de realização do desejo - que as campanhas de publicidade tiram o seu sustento.
                        
Naturalmente, a intensidade da frustração é proporcional às "satisfações substitutivas" às quais o sujeito tem acesso. Quando a distância entre o Eu e os "valores-Ideais" torna-se intransponível, a capacidade de fantasiar do sujeito se vê comprometida. Não é raro, nestas situações, que o sujeito lance mão de comportamentos anti-sociais em suas múltiplas vertentes, como uma forma de dar vazão os componentes agressivos da pulsão gerados pela frustração; para muitos tal expediente constitui a única maneira de se manter o mínimo de "saúde" psíquica.
                        
Muitas vezes os pais vítimas, mas também algozes, deste sistema perverso tornam-se incapazes de referendar os filhos à uma posição crítica: acreditar que o "certo" - em termos de valores, de condutas, de consumo, etc -  é aquilo que a TV mostra, equivale à trocar seus sentimentos e intuições pela imagem de pais "ideais" segundo modelos estereotipados, o que pode gerar profunda frustração que se traduz pelo sentimento de "não saber" agir como pai.
                        
Na tentativa, sempre frustrada, de compensar as perdas narcísicas daí advindas, os pais transformam os filhos em espelho de seus narcisismos onde é projetado o status social do momento - o uso de determinado objeto, os cursos, aulas de inglês, natação, psicólogo, etc - criando, entre pais e filhos, um circuito perverso de retroalimentação. Esta violência mortífera traduz a negação da diferença: ver no filho apenas uma imagem idealizada de si mesmo é não reconhecê-lo como outro; é pedir a este filho que seja aquilo que eles - os pais - não foram. Na crença imaginária de ser o objeto exclusivo do amor dos pais, e ao abrigo de toda e qualquer frustração, os filhos vivem a ilusão de um narcisismo ilimitado. O risco é a criação de uma imagem narcísica infantil super-valorizada que impede a construção de limites e de respeito aos direitos dos outros. Exemplo disso, são os comportamentos marginais e violentos, muitos dos quais referendados pela TV, cada vez mais comuns, embora pouco noticiados, nos condomínios de alto luxo onde, ironicamente, a segurança é máxima justamente para não deixar entrar a violência do mundo externo. Quando, mais cedo ou mais tarde, as sanções sociais e atos de autoridade são impostos, estes terão um elevado ônus psíquico, sendo vivenciados como atentados ao narcisismo.
                        
A participação dos pais na construção do mundo interno dos filhos é um postulado de base. Na constituição da psicossexualidade, os investimentos libidinais, que traduzem movimentos pulsionais, se dirigem aos genitores. Quando estes se sentem incapacitados de servir de suporte identificatório dos filhos -  pois a distância entre o que são e o imaginário do que deveriam ser é ameaçadora - estes últimos buscarão modelos fora do âmbito familiar para as projeções dos impulsos afetuosos e dos hostis indispensáveis à constituição do psiquismo. É também o grupo primário que dará à criança as primeiras referências para a construção de seu sistema de valor ético-moral. Na falta destas referências, ou quando as tradições e costumes familiares não se encaixam nos modelos padrões, a criança pode tomar aquilo que a televisão mostra como coordenadas de base. Cenas que evocam violência, agressividade, aquelas que sugerem relações baseadas na desconfiança, na falta de solidariedade e outras tantas, podem incentivar comportamentos e propor "valores éticos" divergentes daqueles necessários para a construção de uma estrutura social calcada no respeito e no direito do cidadão.
                        
A situação complica-se ainda mais na adolescência quando a busca de modelos externos é uma necessidade para a separação e luto dos modelos familiares. Para que este tempo de transição se complete é indispensável um trabalho autobiográfico de reinvestimento e de historização ao final do qual um tempo passado e, consequentemente para sempre perdido, continuará a existir psiquicamente. É a elaboração deste luto - que é também o luto da criança e de seu corpo infantil - que permitirá o investimento no tempo futuro que, por hora, só existe em termos de potencialidade, de virtualidade(13). Aqueles carentes de referências que suportem esta passagem podem recorrer a expedientes tais como a delinqüência, o recurso às drogas, a violência, a sexualidade compulsiva e a outros tantos, para encontrar respostas lá onde os pais, e em seguida a sociedade, nada lhes propõem. Mais uma vez, a televisão pode oferecer "soluções" a conflitos internos assegurando ao sujeito a ilusão de pertencer a um grupo e propiciando-lhe, ao mesmo tempo, uma defesa contra o perigo de se entrar em contato com representações inconscientes de conteúdos depressivos.
                        
Mas os adultos tampouco estão ao abrigo do uso da televisão como uma válvula de escape para moções pulsionais (perversas) recalcadas: a atração que determinados programas exercem e aos quais assistimos num misto de horror e fascínio, testemunha a força dos elementos recalcados da sexualidade infantil em busca de satisfação.
 
*        *
*
                        
A televisão não pode ignorar a sua participação na construção social, na formação de mentalidades e no desenvolvimento psicossocial da criança e do adolescente. Na atual situação sócio-econômica do Brasil onde a falta de perspectiva e de confiança no futuro, o crescimento do desemprego, a ausência de lideranças confiáveis, enfim, a desesperança social generalizada, leva a sociedade, mas sobretudo a juventude, a uma tensão psíquica cada vez maior, a responsabilidade da televisão com aquilo que ela exibe não pode ser minimizada.
                        
Isto se potencializa quando lembramos que boa parte daqueles que a televisão atinge passa mais tempo em frente ao aparelho de TV do que nas salas de aula.  A participação ativa da população na programação das TVs, e em particular a nossa como analistas para, no mínimo, refletir sobre esta situação,  mais que um direito é um dever, uma responsabilidade. 



Paulo Roberto Ceccarelli*

e-mail: pr@ceccarelli.psc.br

* Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII;  Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Membro da "Société de Psychanalyse Freudienne", Paris, França; Membro F  Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG; Conselheiro Efetivo do X Plenário do Conselho Regional de Psicologia da Quarta Região (CRP/O4).



NOTAS
__________________________________________________________________________

1- Trabalho apresentado no Seminário "Mentes e mídia: a criança na era digital", no Dep. de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiæ, São Paulo, 16 e 17 de junho de 2000. Publicado com o título de "Televisão, mídia e seus efeitos perversos", in Comparato C, Monteiro D., (coord.), A criança na contemporaneidade e a psicanálise. Mentes & Mídia: diálogos interdisciplinares,  São Paulo, Caso do Psicólogo, Vol.  II, 75-86.

2 - Sobre este tema, ver o trabalho do teólogo Eugen Drewermann, "Le mensonge et le suicide", Paris, Cerf, 1992.

3  - Esta idéia é bem proxima da de Joyce McDougall quando esta autora debate as "neo-sexualidades". Conf.  McDOUGALL, J., "As múltiplas faces de Eros", Rio de Janeiro, Martins Fontes, 1997,  p. 192.

4 - FREUD, S., (1915), "Psicologia de Grupo e Análise do Ego", E.S.B., 1976, XVIII, p. 91.

5  - Expressão utilizada por Hélio Pellegrino. Conf. PELLEGRINO, H., "Pacte Œdipien et Pacte Social", in Le Psychanalyste sous la Terreur, Paris, Rocinante, 1986, pp. 16-22.

6 - LASCH, C., "A cultura do Narcisismo", Rio de Janeiro, Imago, 1983.

7- Matéria publicada no caderno MAIS!, da Folha de São Paulo, em 12/O4/98, por Suzana Barelli.

8 -Teixeira Coelho,  caderno MAIS!, da Folha de São Paulo, em 12/O4/98.

9 --  Teixeira Coelho, Op. Cit.

10 -  FREUD, S., (1910), "Cinco lições de psicanálise ", E.S.B., 1970, XI, p.50.

11 - F REUD, S.,  (1929)  "O mal-estar na Civilização", Edição Standard brasileira, Imago, 1974, XXI, 97.

12 - J., MASSON, J,  A correspondência  completa Freud-Fliess, 1887-1904,  Rio de Janeiro, Imago, 1986, p. 295.
13 - Aulagnier, P.,  Congresso de Mônaco, 1988. (comunicação pessoal)

fonte: http://ceccarelli.psc.br/paulorobertoceccarelli/?page_id=267