Postado por Ananda Kenney- Doutoranda em Psicologia Clínica pela UNICAP e Milena Paula Donato
O movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil teve
como resultados da busca pela
|
reabilitação
um arcenal de
modelos substitutivos de
cuidado em saúde
mental, a partir
da
|
necessidade
de desinstitucionalização, dentre
eles há o
CAPS – Centro
de Atenção
|
Psicossocial, o qual “caracteriza-se por ser um
serviço de atenção diária, que se propõe como
|
alternativa
ao hospital psiquiátrico e
tem como principal
objetivo promover a
reabilitação
|
psicossocial
de seus usuários.”.
(FIGUEIREDO & RODRIGUES,
2004, p. 174).
E para
|
melhor
executar esta tarefa,
deve haver uma
boa relação entre
equipe técnica e
usuários,
|
garantindo um bom acolhimento, vínculo e
responsabilidade, além de comprometimento com
|
projetos de
|
re-inserção
|
social e cidadania.
|
Dentre as principais ferramentas
que regem o
programa de tratamento
desta
|
modalidade de serviço,
encontram-se as oficinas
terapêuticas que se diferenciam
por serem
|
espaços
terapêuticos que, de
acordo com o
Ministério da Saúde,
Portaria nº 189
de
|
19/11/1991,
desenvolvem atividades grupais “de
socializa ão, expressão e
inser ão social”
|
(BRASIL,
2001, p. 53),
incentivando a imaginação,
a criatividade e a produtividade do
|
indivíduo.
|
Diante do valor
terapêutico destas atividades para
o tratamento em saúde mental foi
|
elaborado este trabalho com o intuito de apresentar os relatos das experiências
vividas pelas
|
autoras
durante o estágio
curricular para conclusão
do curso de
Psicologia, facilitando as
|
seguintes oficinas terapêuticas: poesia e história.
Estas atividades são submetidas à supervisão
|
da psicóloga Cristina Pinto Lopes, CRP 0210545, e
ocorrem no espaço físico que atende ao
|
público com
|
neuroses graves
|
e
|
dependência química
|
, no Centro de Atenção Psicossocial Casa
|
Forte,
instituiço privada da
cidade do Recife
– PE, a
qual está em
funcionamento desde
|
janeiro de 2002, oferecendo um serviço de atenção e
reabilitação no sistema de hospital dia,
|
dispondo de dois espaços físicos distintos: um para
atender usuários com
|
transtorno psicótico
|
e outro com
|
neuroses graves e dependência química
|
, tendo faixa etária acima dos 16 anos.
|
Esta instituiço propõe o trabalho com oficinas terapêuticas, partilhando da visão de
|
Valladares
et al (2003, p.
6), que diz
que elas “são
atividades de encontro
de vidas entre
|
pessoas em sofrimento
psíquico, promovendo o
exercício da cidadania,
a expressão de
|
liberdade e convivência dos diferentes atr av s
preferencialmente da inclusão pela arte”. E, por
|
isso, o serviço
faz uso de recursos
artísticos que favorecem
esta expressão e
o resgate do
|
potencial criativo de cada pessoa, a
transcendência, a transformação
e a
recriação de novas
|
realidades,
pois como nos diz Guttmann
(2004, p. 256): “a
criatividade a porta
que o ser
|
humano encontra para alcançar a si mesmo, o outro e
sua própria natureza”.
|
Deste
modo, atr avés da
Oficina de Poesia
buscou-se estimular, de
uma maneira
|
singular, o
potencial criativo para
“traduzir” emo ões sentidas,
ou seja, o
poeta interno de
|
cada usuário,
suscitadas pelas produções artísticas de diversos
poetas, clássicos e modernos,
|
tradicionais e estrangeiros. Visto que, “uma boa
poesia é como uma semente de emoço que
|
germina suas verdades no coração e na alma daqueles
que a compr eendem.”. (GUTTMANN,
|
2004, p. 270).
|
Compartilhando com a idéia da autora supracitada,
a escuta de uma poesia, das suas
|
ressonâncias
e da produção
de um texto
poético, favorece a
pessoa em sofrimento
mental
|
entrar em contato
com sentimentos e lembran as
“esquecidos”. Como função terapêutica, a
|
poesia facilita
o encontro com o ouro,
isto é, com o Si-mesmo, o qual consiste na meta do
|
Processo de Individua ão, ou seja, no “desenvolvimento
da personalidade individual, singular
|
e indivisível.”. (DINIZ, apud PHILIPPINI, 2009, p. 9).
|
Para
tanto, é preciso
aprender a cultivar
conscientemente um estado
interior de
|
disponibilidade,
isto é, de
abertura, entrega e
desejo para a
vivência poética (ALMEIDA,
|
1981). E foi baseando-se nisto que, a oficina foi
pensada, buscando seguir uma sequência na
|
apresentação das poesias, partindo da produção de
textos individuais, a cerca da percepção do
|
mundo interior de cada um até textos elaborados
coletivamente.
|
Iniciou
por temáticas mais
singulares, tais como:
auto-retrato, mundo interior,
|
lembranças
infantis, ou seja,
temas que retratam
vivências pessoais, possibilitando um
|
momento de autodescoberta, através
de uma escrita
criativa, pois como
afirma Guttmann
|
(2004, p. 257):
|
escrever
é um meio de expressar imagens, sentimentos, emoçes e p ensamentos por
|
meio de
palavras. Quando escrevemos
expressamos o que
somos e o
que
|
imaginamos ser
em uma linguagem
que tenta alcançar
a necessidade de
nos
|
comunicarmos
com os outros e com nós mesmos.
|
Esta
experiência de autoconhecimento pode
ser percebida neste
fragmento poético,
|
escrito por uma usuária, durante a oficina de poesia:
|
Aquela
parte escura em nós, incógnita de nossa vida, que às vezes muito fortemente
|
se apresenta
e nos do mina,
nos assusta e
surpreend e, mas que
vamos driblando,
|
escondendo,
sufocando, é o nosso lad o de seres não tão racionais, não tão hominais,
|
mas
primitivos como primitivo foi o princípio da vida no planeta. (sic, V. M.).
|
A partir deste “efetivo diálogo silencioso entre o
indivíduo e seus fragmentos, muitas
|
vezes, sombrios e inconscientes [...] os significados
vão sendo apreendidos pela consciência”
|
(PHILIPPINI, 2009, p. 113) e cada ser vai tendo a
possibilidade de ir encaixando as páginas
|
soltas no seu livro da vida.
|
Em paralelo a este encontro consigo mesmo há um
desdobramento de encontros de
|
Si-
|
mesmo
|
com
outros. Neste sentido,
a oficina segue
estimulando o contato
grupal,
|
proporcionando uma reflexão sobre como estabelecemos
relações com outros seres humanos,
|
qual a repercussão
desses laços afetivos
para si e
para os outros,
além de favorecer
um
|
momento de reflexão sobre como cada um está se
inscrevendo no mundo. Esta ocasião ocorre,
|
por exemplo, por meio da produção de uma poesia
coletiva, esboçada a seguir:
|
Medo
da morte ou medo de viver?
|
so
mos frutos de nós mesmos
|
e
ainda assim nos assustamos
|
estamos
aq ui, e agora?
|
Para
onde devo ir?
|
A
pro cura da felicidade
|
muitas
vezes nos perd emos
|
um
caminho simples a percorrer
|
da
ansiedade do viver
|
Perdemos
o gosto do simples.
|
Simp
lesmente por medo de viver. (Sic, grupo).
|
Estas e outras possibilidades são desdobradas a partir
da estimulação e do desbloqueio
|
do processo criador.
A escrita poética,
coletiva e individual,
também possibilita, segundo
|
Philippini (2009), de modo terapêutico: a interação
entre o campo simbólico das palavras, a
|
fluência da comunicação, o diálogo silencioso entre
fragmentos de si mesmo, o documentário
|
de afetos, a compreensão de si mesmo e o acesso
gradual a conteúdos inconscientes.
|
Para que aconteça
o desenvolvimento destas
e outras potencialidades no homem,
|
estimulados por
recursos terapêuticos como a poesia e
a contação de
história, como afirma
|
Silveira
(1997), é preciso
um confronto entre
o inconsciente e
o consciente, visando
um
|
amadurecimento
dos componentes da
personalidade, seguidos de
uma síntese, constituindo
|
um indivíduo específico e inteiro, o que vem a ser o
processo de individuação, proposto por
|
Jung.
|
Diante disto, a proposta da Oficina de História, como
fonte terapêutica às pessoas em
|
sofrimento mental, é permitir que, através da história
ouvida, elas possam entrar em contato
|
com seu mundo
interior,
|
re-significando
|
suas questões e
resgatando o seu potencial criativo
|
que ora se encontra adormecido, por acreditar que todo
ser humano carrega dentro de si uma
|
força
criativa que lhe
impulsiona para frente.
Assim, Guttmann (2004,
p. 256) afirma
que
|
“criar abrir
espa o para o Ser, mostrar ao tempo
que ele tem poder até certo ponto, pois a
|
vida e o ser humano são parceiros eternos na cria ão”.
|
Neste período de atuação foi escolhido trabalhar
com contos tradicionais do Brasil e
|
literatura
de cordel, recolhidos por Luís
Câmara Cascudo. Isto por
acreditar que utilizar da
|
nossa própria cultura é possibilitar aos usuários entrarem em contato
com o que é de mais
|
habitual no Homem, como nos diz Cascudo (2000, p.
11-12) “o folclore ensina a conhecer o
|
espírito,
o trabalho, a
tendência, o instinto”
e ainda “[...]
um dos altos
testemunhos da
|
atividade espiritual do Povo, em sua forma espontânea,
diária e regular”.
|
Contudo, o conto popular carrega em si temas simbólicos da psicologia coletiva que
|
estão presentes no substrato comum ao Povo brasileiro,
substrato este a que Jung chamou de
|
inconsciente coletivo, o qual corresponde à “dimensão
da psique inconsciente que é de caráter
|
humano
geral”. (WHITMONT, 2008,
p. 38). E
por isto, esta
literatura desperta emoçes,
|
desbravando o mundo interior de quem ouve e de quem
conta.
|
Após ouvir a
história, os usuários
são convidados a
confeccionarem fantoches,
|
colocando
neles toda a
energia, sentimentos e
angústias vivenciados e
despertados no
|
momento da contação, materializando-os, isto é, dando
forma ao que lhes afligem. E isto pode
|
ser
constatado através de
vários depoimentos, como
os das usuárias
que discursam: “Este
|
boneco a minha
depressão: horrorosa e
triste” (sic, M.
C.); “Construí uma
enfermeira,
|
reconhecendo que preciso ser cuidada” (sic, S. R.).
|
É possível,
portanto, concluir que a construção
dos bonecos é a possibilidade de dar
|
vida, conectar as
pessoas aos mundos
interior e exterior,
e assim, estimular
o potencial
|
criativo. Sendo, os fantoches, produtos desta
experiência interna personificada, confirmando o
|
que assegura Guttmann (2004, p. 259):
|
As
histórias, como arte em geral, trazem imagens que se passam dentro de nós,
que
|
refletem
a alma da nossa realidade humana, com nossos valores, buscas, conflitos e
|
necessidades. Elas
atualizam as dimensões
pessoais de cada
um, possibilitando a
|
consciência
e a transformação.
|
Por fim, a contação, em sua função terapêutica, como
cita Philippini (2009), traz como
|
benefícios: auxiliar o encontro da própria soluço dos
conflitos através da escuta,
|
insights
|
e
|
reflexão da narrativa da história; interação lúdica;
ampliação da percepção pelo contato com
|
questões
arquetípicas e transculturais;
contar eventos comuns à dimensão
humana; ativar o
|
imaginário; favorecer o autoconhecimento; ativação e
desenvolvimento da comunicação oral;
|
e, descobrir um momento criativo para encontrar
consigo mesmo.
|
Percebemos,
portanto, que os
caminhos trilhados pela
poesia e pela
história se
|
bifurcam
na forma de
suas narrativas e
na distinta maneira
de estimular a
criatividade,
|
entretanto,
em diversos momentos
se entrecruzam, tornando-se
parceiras, tendo como
|
instrumento de crescimento, criatividade e
conhecimento pessoal, a criação literária. Por isso,
|
escolher
falar sobr e o
benefício terapêutico da
poesia e da
história é falar
de como dois
|
dispositivos literários distintos conseguem, através
da linguagem, tocar na alma, no que tem
|
de mais íntimo no ser humano, possibilitando a este
criar e recriar a sua história, a partir do
|
momento que se abre para viajar na imaginação das
histórias contadas e se deliciar nos versos
|
poéticos.
Como demonstração deste
possível encontro, segue
um trecho de
uma poesia
|
elaborada
coletivamente, intitulada:
|
“Todas as coisas
que há neste
mundo têm uma
|
história...”
|
, na qual os próprios usuários falam de história
poeticamente:
|
A
história do mundo possui várias fases e sentidos que a cada passo de vida nos
traz
|
mais
verdades e esperanças para vencermos os nossos obstáculos. Em qualquer lugar
|
neste mundo
encontraremos histórias bonitas,
alegres e tristes,
porém em certas
|
situações
nos serve de acalento.
|
A
nossa estória engloba tudo isso, para que possa tornar-se História...
|
Cada
história tem um começo e um fim.
|
Qual
o fim desta história? (sic, grupo).
|
Deste
modo, os efeitos
alcançados por estas
oficinas terapêuticas são
sentidos e
|
tecidos pelas facilitadoras, por cada usuário
singularmente e pelo grupo, a cada encontro. E,
|
por isso, o presente estudo tem sua importância
científica por contribuir no alargamento das
|
discussões
sobre os diferentes
recursos utilizados em
oficinas terapêuticas, demonstrando,
|
com isso, sua
aplicabilidade eficaz, obtendo
efeitos terapêuticos que
colaboram com a
|
construção
de um novo
olhar da sociedade
e da comunidade
científica sobre o
sofrimento
|
mental. Entretanto, estas oficinas seguem seu percurso
sem um fim em si.
|
REFERÊNCIAS
|
ALMEIDA,
V. L. P.
Poesia e Individuação.
|
Jornal
Psicopombo
|
, n. 4, p.
234-235, 1981.
|
Disponível
em:
<http://www.geocities.com/Paris/Gallery/6543/poesia.html>. Acesso
em: 19
|
set 2009.
|
BRASIL. Ministério da Saúde, Portaria nº 189 de
19/11/1991. In: Brasil. Ministério da Saúde.
|
Legislação em
saúde mental 1999-2001.
|
2. ed. revista
e atualizada. Brasília: Ministério da
|
Saúde,
2001, série e,
n. 4, p.
53. Disponível em:
<http://www.inverso.org.br/blob/40.pdf>.
|
Acesso em: 25 abril 2010.
|
CASCUDO, L. C.
|
Contos tradicionais do Brasil
|
. 8. ed. São Paulo: Global, 2000.
|
DINIZ, L. Prefácio.
In: PHILIPPINI, A.
|
Linguagens
e Materiais Expressivos
em
|
Arterapia:
|
Uso, Indicações e Propriedades. Rio de Janeiro: Wak,
2009.
|
FIGUEIREDO, V. V. & RODRIGUES, M. M. P. Atuação do
psicólogo nos CAPS do Estado
|
do Espírito
Santo.
|
Psicologia em Estudo.
|
[online]. 2004, vol.9, n.2, p. 173-181. Disponível
|
em: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v9n2/v9n2a04.pdf
>. Acesso em: 25 abril 2010.
|
GUTTMANN, M. A criação literária na arteterapia (nas
páginas das histórias e da poesia). In:
|
CIORNI,
S.(Org).
|
Percursos
em arteterapia:
|
ateliê
terapêutico, arteterapia no
trabalho
|
comunitário,
trabalho plástico e
linguagem expressiva, arteterapia
e história da
arte.
|
São
|
Paulo: Summus, 2004, p. 256-274.
|
PHILIPPINI, A.
|
Linguagens e Materiais
Expressivos em Arteterapia:
|
Uso, Indicações
e
|
Propriedades. Rio de Janeiro: Wak, 2009.
|
SILVEIRA, N.
|
Jung:
|
vida e obra. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. Originalmente
|
apresentado em 1997.
|
VALLADARES, A. C. A. et AL. Reabilitação psicossocial atr avés das
oficinas terapêuticas
|
e/ou cooperativas sociais.
|
Rev. Eletrônica de Enfermagem.
|
Goiânia: UFG, v. 5, n. 1. p. 04 –
|
09, 2003. Disponível em: <
http:/www.fen.ufg.br/Revista>. Acesso em: 25 abril 2010.
|
WHITMONT, E. C.
|
A busca do Símbolo:
|
conceitos básicos de Psicologia Analítica. 13. ed.
|
São Paulo: Cultrix, 2008. Originalmente apresentado em
1969.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário