terça-feira, 5 de março de 2013

OFICINAS TERAPÊUTICAS: UM ENCONTRO HISTÓRICO- POÉTICO

Postado por Ananda Kenney- Doutoranda em Psicologia Clínica pela UNICAP e Milena Paula Donato






O movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil teve como resultados  da busca  pela
reabilitação  um  arcenal  de  modelos  substitutivos  de  cuidado  em  saúde  mental,  a  partir  da
necessidade  de  desinstitucionalização,  dentre  eles  há  o  CAPS  –  Centro  de  Atenção
Psicossocial, o qual “caracteriza-se por ser um serviço de atenção diária, que se propõe como
alternativa  ao  hospital  psiquiátrico  e  tem  como  principal  objetivo  promover  a  reabilitação
psicossocial  de  seus  usuários.”.  (FIGUEIREDO  &  RODRIGUES,  2004,  p.  174).  E  para
melhor  executar  esta  tarefa,  deve  haver  uma  boa  relação  entre  equipe  técnica  e  usuários,
garantindo um bom acolhimento, vínculo e responsabilidade, além de comprometimento com
projetos de
re-inserção
social e cidadania.
Dentre  as  principais  ferramentas  que  regem  o  programa  de  tratamento  desta
modalidade de serviço,  encontram-se  as oficinas terapêuticas que se  diferenciam por  serem
espaços  terapêuticos  que,  de  acordo  com  o  Ministério  da  Saúde,  Portaria  nº  189  de
19/11/1991,  desenvolvem  atividades  grupais “de  socializa ão,  expressão  e  inser ão  social”
(BRASIL,  2001,  p.  53),  incentivando  a  imaginação,  a  criatividade  e  a  produtividade  do
indivíduo.
Diante  do valor terapêutico  destas atividades para o  tratamento em saúde mental foi
elaborado este trabalho com o intuito de  apresentar os relatos das experiências vividas pelas
autoras  durante  o  estágio  curricular  para  conclusão  do  curso  de  Psicologia,  facilitando  as
seguintes oficinas terapêuticas: poesia e história. Estas atividades são submetidas à supervisão
da psicóloga Cristina Pinto Lopes, CRP 0210545, e ocorrem no espaço físico que atende ao
público com
neuroses graves
e
dependência química
, no Centro de Atenção Psicossocial Casa
Forte,  instituiço  privada  da  cidade  do  Recife  –  PE,  a  qual  está  em  funcionamento  desde
janeiro de 2002, oferecendo um serviço de atenção e reabilitação no sistema de hospital dia,
dispondo de dois espaços físicos distintos: um para atender usuários com
transtorno psicótico
e outro com
neuroses graves e dependência química
, tendo faixa etária acima dos 16 anos.



Esta instituiço propõe o  trabalho com oficinas  terapêuticas, partilhando da  visão de
Valladares  et  al (2003,  p.  6),  que  diz  que  elas  “são  atividades  de  encontro  de  vidas  entre
pessoas  em  sofrimento  psíquico,  promovendo  o  exercício  da  cidadania,  a  expressão  de
liberdade e convivência dos diferentes atr av s preferencialmente da inclusão pela arte”. E, por
isso,  o  serviço  faz  uso de  recursos  artísticos  que  favorecem  esta  expressão  e  o  resgate do
potencial criativo de cada  pessoa, a  transcendência, a  transformação e  a  recriação de  novas
realidades,  pois como nos diz Guttmann  (2004, p.  256): “a criatividade   a  porta  que o  ser
humano encontra para alcançar a si mesmo, o outro e sua própria natureza”.
Deste  modo,  atr avés  da  Oficina  de  Poesia  buscou-se  estimular,  de  uma  maneira
singular, o  potencial criativo  para “traduzir”  emo ões  sentidas,  ou  seja,  o  poeta  interno de
cada usuário,  suscitadas pelas produções artísticas de  diversos  poetas, clássicos e modernos,
tradicionais e estrangeiros. Visto que, “uma boa poesia é como uma semente de emoço que
germina suas verdades no coração e na alma daqueles que a compr eendem.”. (GUTTMANN,
2004, p. 270).
Compartilhando com a idéia da autora supracitada, a  escuta  de uma poesia, das suas
ressonâncias  e  da  produção  de  um  texto  poético,  favorece  a  pessoa  em  sofrimento  mental
entrar  em  contato  com  sentimentos e lembran as “esquecidos”. Como função terapêutica, a
poesia facilita  o encontro com o  ouro, isto  é, com o  Si-mesmo, o qual consiste na meta do
Processo de Individua ão, ou seja, no “desenvolvimento da personalidade individual, singular
e indivisível.”. (DINIZ, apud PHILIPPINI, 2009, p. 9).
Para  tanto,  é  preciso  aprender  a  cultivar  conscientemente  um  estado  interior  de
disponibilidade,  isto  é,  de  abertura,  entrega  e  desejo  para  a  vivência  poética  (ALMEIDA,
1981). E foi baseando-se nisto que, a oficina foi pensada, buscando seguir uma sequência na
apresentação das poesias, partindo da produção de textos individuais, a cerca da percepção do
mundo interior de cada um até textos elaborados coletivamente.
Iniciou  por  temáticas  mais  singulares,  tais  como:  auto-retrato,  mundo  interior,
lembranças  infantis,  ou  seja,  temas  que  retratam  vivências  pessoais,  possibilitando  um
momento  de  autodescoberta,  através  de  uma  escrita  criativa,  pois  como  afirma  Guttmann
(2004, p. 257):
escrever é um meio de expressar imagens, sentimentos, emoçes e p ensamentos por
meio  de  palavras.  Quando  escrevemos  expressamos  o  que  somos  e  o  que
imaginamos  ser  em  uma  linguagem  que  tenta  alcançar  a  necessidade  de  nos
comunicarmos com os outros e com nós mesmos.



Esta  experiência  de  autoconhecimento  pode  ser  percebida  neste  fragmento  poético,
escrito por uma usuária, durante a oficina de poesia:
Aquela parte escura em nós, incógnita de nossa vida, que às vezes muito fortemente
se  apresenta  e  nos  do mina,  nos  assusta  e  surpreend e,  mas  que  vamos  driblando,
escondendo, sufocando, é o nosso lad o de seres não tão racionais, não tão  hominais,
mas primitivos como primitivo foi o princípio da vida no planeta. (sic, V. M.).
A partir deste “efetivo diálogo silencioso entre o indivíduo e seus fragmentos, muitas
vezes, sombrios e inconscientes [...] os significados vão sendo apreendidos pela consciência”
(PHILIPPINI, 2009, p. 113) e cada ser vai tendo a possibilidade de ir encaixando as páginas
soltas no seu livro da vida.
Em paralelo a este encontro consigo mesmo há um desdobramento de encontros de
Si-
mesmo
com  outros.  Neste  sentido,  a  oficina  segue  estimulando  o  contato  grupal,
proporcionando uma reflexão sobre como estabelecemos relações com outros seres humanos,
qual  a  repercussão  desses  laços  afetivos  para  si  e  para  os  outros,  além  de  favorecer  um
momento de reflexão sobre como cada um está se inscrevendo no mundo. Esta ocasião ocorre,
por exemplo, por meio da produção de uma poesia coletiva, esboçada a seguir:
Medo da morte ou medo de viver?
so mos frutos de nós mesmos
e ainda assim nos assustamos
estamos aq ui, e agora?
Para onde devo ir?
A pro cura da felicidade
muitas vezes nos perd emos
um caminho simples a percorrer
da ansiedade do viver
Perdemos o gosto do simples.
Simp lesmente por medo de viver. (Sic, grupo).
Estas e outras possibilidades são desdobradas a partir da estimulação e do desbloqueio
do  processo  criador.  A  escrita  poética,  coletiva  e  individual,  também  possibilita,  segundo
Philippini (2009), de modo terapêutico: a interação entre o  campo  simbólico das palavras, a
fluência da comunicação, o diálogo silencioso entre fragmentos de si mesmo, o documentário
de afetos, a compreensão de si mesmo e o acesso gradual a conteúdos inconscientes.
Para  que  aconteça  o  desenvolvimento  destas  e  outras  potencialidades  no  homem,
estimulados  por recursos  terapêuticos como a poesia e a  contação  de  história, como afirma
Silveira  (1997),  é  preciso  um  confronto  entre  o  inconsciente  e  o  consciente,  visando  um



amadurecimento  dos  componentes  da  personalidade,  seguidos  de  uma  síntese,  constituindo
um indivíduo específico e inteiro, o que vem a ser o processo de individuação, proposto por
Jung.
Diante disto, a proposta da Oficina de História, como fonte terapêutica às pessoas em
sofrimento mental, é permitir que, através da história ouvida, elas possam entrar em contato
com seu mundo  interior,
re-significando
suas  questões e resgatando o  seu potencial criativo
que ora se encontra adormecido, por acreditar que todo ser humano carrega dentro de si uma
força  criativa  que  lhe  impulsiona  para  frente.  Assim,  Guttmann  (2004,  p.  256)  afirma  que
“criar   abrir espa o para o Ser,   mostrar ao tempo que ele tem poder até certo ponto, pois a
vida e o ser humano são parceiros eternos na cria ão”.
Neste período de atuação foi escolhido trabalhar com  contos tradicionais  do Brasil e
literatura  de  cordel, recolhidos  por Luís  Câmara  Cascudo.  Isto por  acreditar  que  utilizar da
nossa própria cultura é possibilitar aos  usuários entrarem em  contato  com  o que é de  mais
habitual no Homem, como nos diz Cascudo (2000, p. 11-12) “o folclore ensina a conhecer o
espírito,  o  trabalho,  a  tendência,  o  instinto”  e  ainda  “[...]    um  dos  altos  testemunhos  da
atividade espiritual do Povo, em sua forma espontânea, diária e regular”.
Contudo, o conto popular carrega em si temas  simbólicos da  psicologia coletiva que
estão presentes no substrato comum ao Povo brasileiro, substrato este a que Jung chamou de
inconsciente coletivo, o qual corresponde à “dimensão da psique inconsciente que é de caráter
humano  geral”.  (WHITMONT,  2008,  p.  38).  E  por  isto,  esta  literatura  desperta  emoçes,
desbravando o mundo interior de quem ouve e de quem conta.
Após  ouvir  a  história,  os  usuários  são  convidados  a  confeccionarem  fantoches,
colocando  neles  toda  a  energia,  sentimentos  e  angústias  vivenciados  e  despertados  no
momento da contação, materializando-os, isto é, dando forma ao que lhes afligem. E isto pode
ser  constatado  através  de  vários  depoimentos,  como  os  das  usuárias  que  discursam:  “Este
boneco    a  minha  depressão:  horrorosa  e  triste”  (sic,  M.  C.);  “Construí  uma  enfermeira,
reconhecendo que preciso ser cuidada” (sic, S. R.).
É possível,  portanto, concluir que a construção  dos  bonecos é  a possibilidade  de dar
vida,  conectar  as  pessoas  aos  mundos  interior  e  exterior,  e  assim,  estimular  o  potencial
criativo. Sendo, os fantoches, produtos desta experiência interna personificada, confirmando o
que assegura Guttmann (2004, p. 259):



As histórias, como arte em geral, trazem imagens que se passam dentro de nós, que
refletem a alma da nossa realidade humana, com nossos valores, buscas, conflitos e
necessidades.  Elas  atualizam  as  dimensões  pessoais  de  cada  um,  possibilitando  a
consciência e a transformação.
Por fim, a contação, em sua função terapêutica, como cita Philippini (2009), traz como
benefícios: auxiliar o encontro da própria soluço dos conflitos através da escuta,
insights
e
reflexão da narrativa da história; interação lúdica; ampliação da percepção pelo contato com
questões  arquetípicas  e transculturais; contar  eventos comuns à  dimensão  humana;  ativar  o
imaginário; favorecer o autoconhecimento; ativação e desenvolvimento da comunicação oral;
e, descobrir um momento criativo para encontrar consigo mesmo.
Percebemos,  portanto,  que  os  caminhos  trilhados  pela  poesia  e  pela  história  se
bifurcam  na  forma  de  suas  narrativas  e  na  distinta  maneira  de  estimular  a  criatividade,
entretanto,  em  diversos  momentos  se  entrecruzam,  tornando-se  parceiras,  tendo  como
instrumento de crescimento, criatividade e conhecimento pessoal, a criação literária. Por isso,
escolher  falar  sobr e  o  benefício  terapêutico  da  poesia  e  da  história  é  falar  de  como  dois
dispositivos literários distintos conseguem, através da linguagem, tocar na alma, no que tem
de mais íntimo no ser humano, possibilitando a este criar e recriar a sua história, a partir do
momento que se abre para viajar na imaginação das histórias contadas e se deliciar nos versos
poéticos.  Como  demonstração  deste  possível  encontro,  segue  um  trecho  de  uma  poesia
elaborada  coletivamente,  intitulada:
“Todas  as  coisas  que  há  neste  mundo  têm  uma
história...”
, na qual os próprios usuários falam de história poeticamente:
A história do mundo possui várias fases e sentidos que a cada passo de vida nos traz
mais verdades e esperanças para vencermos os nossos obstáculos. Em qualquer lugar
neste  mundo   encontraremos  histórias  bonitas,  alegres  e  tristes,  porém  em  certas
situações nos serve de acalento.
A nossa estória engloba tudo isso, para que possa tornar-se História...
Cada história tem um começo e um fim.
Qual o fim desta história? (sic, grupo).
Deste  modo,  os  efeitos  alcançados  por  estas  oficinas  terapêuticas  são  sentidos  e
tecidos pelas facilitadoras, por cada usuário singularmente e pelo grupo, a cada encontro. E,
por isso, o presente estudo tem sua importância científica por contribuir no alargamento das
discussões  sobre  os  diferentes  recursos  utilizados  em  oficinas  terapêuticas,  demonstrando,
com  isso,  sua  aplicabilidade  eficaz,  obtendo  efeitos  terapêuticos  que  colaboram  com  a



construção  de  um  novo  olhar  da  sociedade  e  da  comunidade  científica  sobre  o  sofrimento

mental. Entretanto, estas oficinas seguem seu percurso sem um fim em si.

REFERÊNCIAS

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A busca do Símbolo:

conceitos básicos de Psicologia Analítica. 13. ed.

São Paulo: Cultrix, 2008. Originalmente apresentado em 1969.

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