Por Paulo Roberto Ceccarelli,
Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Pós-doutor por Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da Société de Psychanalyse Freudienne, Paris, França; Membro fundador da ONG TVer; Membro fundador da Rede Internacional em Psicopatologia Transcultural; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG. Professor visitante da pós-graduação da Faculdade de Ciências Humanas ESUDA, Recife/PE. Professor credenciado a dirigir pesquisas de pós-graduação, e pesquisador no Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará, em Belém. Pesquisador do CNPq.
INTRODUÇÃO
Quando fui convidado para participar desta mesa, a primeira
coisa que chamou-me a atenção foi seu título: "Diferenças sexuais".
Porque no plural? (Aliás, é o único título no plural.) Num nível superficial
pode-se dizer que, de fato, as diferenças entre os sexos são muitas: é comum se
ouvir por aí que um determinado comportamento ou atitude, se deve às diferenças
entre os homens e as mulheres; ou seja, às diferenças sexuais. Mas isso, não
resolve o problema pois a questão de fundo continua inalterada, a saber, quais
as bases dessas diferenças? Quando dois sujeitos atribuem algo às diferenças
entre os sexos estão falando da mesma coisa? Além disso: existe relação entre
as diferenças sexuais construídas a partir do sistema simbólico próprio a cada
cultura, e as diferenças sexuais do ponto de vista da psicanálise?
Esta questão abre no mínimo dois campos de pesquisa: um que
estaria mais relacionado às prerrogativas dos homens e das mulheres que, é
claro, variam nas diferentes culturas e que, grosseiramente, poderíamos chamar
de "papel dos gêneros"; o outro, que interessa em saber se existem
diferenças psíquicas entre um sexo e outro.
Para Freud, elas existem. E estas diferenças se devem,
segundo ele, à "distinção anatômica entre seus orgãos genitais e da
situação psíquica aí envolvida".(2) Como se constituem essas diferenças?
Quais são os movimentos psíquicos envolvidos? E mais ainda, a diferença
anatômica constitui, em si, garantia para a diferença psíquica? Ou seja, uma
criança anatomicamente do sexo masculino, ou feminino, será necessariamente
homem, ou mulher, do ponto de vista psicológico? A anatomia é o destino?
SEXUALIDADES
Para a biologia, a sexualidade é um conceito operacional,
uma especificação de uma função. Ao que tudo indica, a sexualidade apareceu bem
cedo na evolução como uma espécie de auxiliar na reprodução, um supérfluo não
se constituindo, no início, uma necessidade. De fato, uma bactéria não
necessita recorrer a sexualidade para se multiplicar e não existe "sex
appel" entre elas. Da mesma forma, alguns organismos inferiores, que são
hermafroditas, só utilizam o sexo ocasionalmente. Entretanto, na medida que o
organismo ia ganhando uma certa autonomia, a sexualidade tornou-se o único meio
de reprodução e os indivíduos de um sexo tiveram que desenvolver uma maneira de
reconhecer os do outro sexo. Apareceram assim os diversos sistemas de
comunicação a distância para permitir a seleção dos indivíduos de sexos
opostos. Contudo, nada implica que uma tal especialização deva ser
necessariamente binária embora a maioria o seja no "mundo natural".
Quer dizer, nada nos impede de imaginar que não apenas dois, mas 3, 4 ou mais
sexos, sejam necessários para a procriação.
Isso também é verdade para os seres humanos no imaginário.
Muitas teorias de povos ditos primitivos fazem intervir vários elementos, na
maioria das vezes sobrenaturais, para explicar a concepção mesmo se esta última
ocorre através do coito.
Do ponto de vista da anatomia, as coisas não são menos
complicadas. Onde se situa a diferença? Até o século XVIII, o que inclui a
Renascença, o modelo dominante era o do sexo único.(3) Tal modelo se baseava na
definição da ordem dos seres, de Aristóteles, e na do corpo anatômico, de
Galeno. Nesta referencia, homens e mulheres se organizavam segundo o grau de
perfeição metafísica, sendo o grau máximo ocupado pelo homem; em segundo lugar
vinha a mulher. As pranchas anatômicas dessa época testemunham bem que não
existia diferença específicas nos orgãos sexuais masculinos e femininos: apenas
no homem os orgãos se encontravam no exterior enquanto na mulher no interior.
Nessa perspectiva, os então denominados hermafroditas, hoje chamados de
intersexo, colocam um problema exemplar: a questão não era a de saber a que
sexo eles pertenciam, mas de qual gênero seus corpos eram mais próximos. (Em
certa medida, Freud mantem o modelo de um único sexo: sua teoria da sexualidade
se basea no sexo masculino.) A partir do século XVIII um outro modelo começa a
dominar: ao contrário do anterior, diferencia tanto no nível anatômico quanto
no fisiológico, homens e mulheres. Seja como for, calcar a diferença na
anatomia não resolve o problema. A psicanálise mostra como, no ser humano, a
anatomia é impregnada de elementos fantasmáticos: os sintomas histéricos são
completamente indiferentes a anatomia científica. É o discurso que anima cada
sujeito que faz a diferença entre o corpo em geral, o corpo que a anatomia
disseca e que a fisiologia descreve as funções, e o corpo cena de conflitos
pulsionais.
A pesquisa psicanalítica mostra também que do ponto de
vista fisiológico, funcional, não se pode falar de complementariedade, de
dualismo. De fato, qual o lugar de excitação natural do pênis? O que dizer do
auto-erotismo? E dos sintomas?
DIFERENÇA SEXUAL
A solução para se compreender a diferença dos sexos tem que
partir do pulsional, sendo motivada "por pulsões egoístas" (4) .
Entretanto para Freud existe, inicialmente uma classificação segundo o gênero
que começa numa etapa anterior a castração e que não implica o pulsional. Bem
cedo, segundo Freud, a criança é capaz de distinguir, "graças aos signos
mais exteriores", pai e mãe e se posicionar de um lado ou de outro.(5) Tal
distinção, entretanto, diz Freud, não leva em conta "a diversidade"
dos orgãos sexuais (6) . Nessa etapa, a criança não faz a correspondência entre
sexo e gênero. Ou seja, a apreensão dos gêneros se faz sem levar em conta o
orgão sexual; isso significa que o que distingue os gêneros não é o sexo
anatômico e, inversamente, o sexo anatômico, não garante, a priori, o gênero.
Quer dizer que a presença, ou a ausência, do orgão sexual masculino, ou
feminino, não constitui garantia que o sujeito se coloque do lado dos homens ou
do das mulheres. Em resumo, trata-se então de dois movimentos distintos que
ocorrem em momentos diferentes: um, a distinção dos gêneros; outro, a diferença
dos sexos.
A questão da distinção dos gêneros e da diferença dos sexos
nos remete à duas modalidades identificatórias cuja distinção faz emergir duas problemáticas
que frequentemente se superpõem, mais que devem ser tratadas separadamente: de
um lado, o sentimento imutável que se estabelece bem cedo e que constitui o
núcleo mesmo da identidade de gênero.(7) Tal sentimento se traduz por: "Eu
sou menino" ou "eu sou menina". Do outro lado, o sentimento que
se traduz por "eu sou masculino" ou "eu sou feminina", que
se refere a masculinidade e a feminilidade, resultado de investimentos e
identificações, num corpo suporte de fantasmas marcando assim suas funções e
seus desejos. A construção deste sentimento, bastante complexo e sutil, é
dependente da situação edipiana cuja dinâmica só se completará na época da
puberdade quando a polaridade "orgão genital masculino/castrado, será
substituida por masculino/feminino (8) , e a diferença dos sexos terá por base
a realidade material pênis/vagina.
Cabe chamar a atenção para o fato de que Freud fala, na
passagem citada acima, não de "diferença" mas sim de
"diversidade" dos orgãos sexuais. (A E. S. B. traduz, indistintamente,
Unterschied (diferença) e Verschiedenheit (diversidade) por diferença. Vol.
XIX, p. 181.)
Isso a meu ver é um ponto importante para se compreender a
dificuldade na aquisição das diferenças sexuais. Pois para a criança que está
fazendo a apreensão da distinção dos gêneros, não há porque essa distinção se
baseie no sistema binário da diferença sexual: para a criança todos os
caracteres sexuais - primários, secundários, sociais - entram nessa distinção e
a ausência de um, não implica na presença de outro. Ademais, nesta fase nada
impede a criança de imaginar a existência de um terceiro ou quarto sexo, o que
seria coerente com as fases pré-genitais. Na verdade, porque a criança não
poderia imaginar que a boca, ou o anus, é um orgão sexual? A clínica é rica em
exemplos desse tipo.
Voltando ao tema da diferença dos sexos, resta ainda tentar
achar um consenso para "masculino" e da "feminino" que,
como vimos, está na base dessa diferença.
Quando se tenta definir em bases "sólidas" os
termos "masculino" e "feminino", nos encontramos numa
situação bastante incômoda. Com efeito, poucas palavras condensam conteúdos tão
pesados e tão difíceis de precisar quanto masculino e feminino. Falar, como se
faz frequentemente de "características femininas" tal como a graça, ou
de "masculinas" tal como a coragem, é se ater à definições
tautológicas limitadas à um sistema binário que repete indefinidamente, sob
formas variadas, as mesmas cópias. Como, então definir "masculino" e
"feminino"? Trata-se de noções? de categorias? de conceitos? de
classificações?
Freud, ao expressar-se sobre a questão fala de
"conceitos", de "noção" e até mesmo de "qualidade
psíquicas". Em determinados momentos, ele refere-se ao masculino e ao
feminino em termos de atividade e passividade; em outros observa que, em se
tratando de seres humanos, essa relação é insuficiente.(9) Se a psicanálise
utiliza-se desses conceitos, diz Freud, ela não pode elucidar a sua essência .
O conteúdo dessas noções, não comporta nenhuma distinção psicológica (11) .
Seja como for, a posição de Freud ao chamar a atenção para a dificuldade em se
definir masculino e feminino é revolucionária na medida em que, nessa
perspectiva, Freud atrela o significado destas noções a resultados de processos
complexos que as ultrapassam as determinações anátomo-fisiológicas.(12)
A maneira pela qual, a partir de Freud, cada corrente
psicanalítica elabora seu referencial teórico diverge bastante se se considera
que a masculinidade, e a feminilidade correspondem naturalmente a anatomia de
cada um ou se, ao contrário, a masculinidade, e a feminilidade, são adquiridas
e isto independentemente do sexo anatômico. No primeiro caso, a identificação
ao genitor do mesmo sexo é o resultado de um desenvolvimento normal devido a
diferença dos sexos: a anatomia é o destino. É por exemplo, o caso para Melanie
Klein : quando ela defende a existência de uma "feminilidade
primária", a referência ao anatômico continua, correndo o risco travestir
o verdadeiro debate - o que faz a diferença dos sexos? - para tentar explicar
quais seriam as características específicas de cada sexo.(13)
No segundo caso, masculinidade, e feminilidade, são
adquiridas e isto independentemente do sexo anatômico. Ou seja, não é por ser
anatomicamente do sexo feminino que a criança se posicionará necessariamente
como menina se identificando, "naturalmente" com as prerrogativas
femininas.
As formulações teóricas a partir do pictograma de Piera
Aulagnier (14) vão neste sentido, pois a produção pictográfica resultante do
encontro mãe/bebê, não comporta nenhum determinismo biológico e ultrapassa toda
representação sócio-cultural da sexualidade. A primeira representação que a
psiqué se forja dela mesma é o resultado deste encontro duplo entre a corpo e a
psiqué maternal. Esse primeiro encontro é determinante para a aquisição da
diferença dos sexos que se seguirá.
Sem dúvida, foram as contribuições de Lacan sobre a
sexuação do corpo que mostram, de maneira mais clara, que a inscrição do
sujeito na função fálica é feita sem levar em consideração a diferença
anatômica dos sexos(15) , ou seja, sem levar em conta a realidade da anatomia.
Nessa perspectiva, "feminilidade" e "masculinidade" passam
então a ser duas representações do falus, fazendo com que a identidade do
sujeito seja da ordem do significante. É a partir da inscrição na função fálica
que o sujeito se posicionará no simbólico como homem ou mulher. Na grande
maioria dos casos, essa inscrição coincide com a anatomia; mas nem sempre.
O estudo do intersexualismo(16) e do transexualismo(17) ,
mostra que as características anátomo-biológicas não oferecem nenhum a priori
para a constituição do sujeito: se o sujeito se constitui como desejo do outro,
a força do imaginário dos pais assim como o lugar do sujeito na economia
libidinal da família - fatores esses que antecedem seu nascimento - serão
decisivos para que o recém-nascido se inscreva no simbólico como homem ou
mulher. Será então a partir daí que ele vai ter acesso, inicialmente através da
mãe em seguida pelo grupo primário, às referências identificatórias do
masculino e do feminino.
A antropologia e a sociologia nos mostram que aquilo que
chamamos de masculino e feminino, longe de serem realidades objetivas e muito
menos fenômenos naturais calcados em elementos anátomo-biológicos são, antes,
noções dependentes das formas culturais dentro das quais tais noções emergem.
CONCLUSÃO
A palavra sexo, vem do latim secare : cortar, separar,
"sexuar"; a designação de um sexo em detrimento do outro, e o termo
"masculinidade" só faz sentido em relação à "feminilidade".
A condição preliminar para a sexuação do corpo, para que o sujeito tenha um
sexo, é que ele se inscreva na função fálica, e isto qualquer que seja sua
anatomia.
As diferenças sexuais, que são um incidente do simbólico,
podem então ser definidas como o resultado do conjunto dos movimentos psíquicos
que permitirão ao sujeito de se referir ao seu próprio sexo anatômico e de se
posicionar como homem ou como mulher.
Se Freud reconhece que sua teorização se basea na criança
do sexo masculino e que para Lacan a relação do sujeito ao falus independe da
anatomia, somos levados a constatar que a teoria psicanalítica continua
bastante lacunar no que diz respeito aquilo que diferencia os sexos.
Resta finalmente sublinhar que o estudo dos movimentos
psíquicos que levam à diferenciação sexual, coloca à psicanálise questões
fundamentais como, por exemplo, as relações entre os processos identificatórios
e a construção do sentimento de identidade sexual.
Paulo Roberto Ceccarelli*
e-mail: pr@ceccarelli.psc.br
* Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia
Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação Universitária de
Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Membro da "Société de Psychanalyse
Freudienne", Paris, França; Professor
Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG; Conselheiro Efetivo do X
Plenário do Conselho Regional de Psicologia da Quarta Região (CRP/O4).
NOTAS
1- Texto apresentado no II Congresso de
Psicopatologia Fundamental. São Paulo, 24 e 27 de abril de 1997.
2- FREUD, S., (1925) "Algumas
consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos", E. S. B.,
1976, XIX, 319.
3
- LAQUEUR, T., "La fabrique du sexe", Paris, Gallimard, 1992.
4 - FREUD, S., (1908), "Sobre as
teorias sexuais das crianças", E. S. B., 1976, IX, 215.
5 - FREUD, S., (1908), "Sobre as
teorias sexuais das crianças", ibid.
6 - FREUD, S., (1923), "A organização
genital infantil", E. S. B, 1976, X IX, 181.
7 - Stoller propõe que se distinga entre
"núcleo da identidade de gênero" - sou um menino, sou uma menina - e
"identidade de gênero - sou viril, sou feminina. STOLLER, R.,
"Recherche sur l'identité sexuelle", Paris, Gallimard, 1978, 61.
8 - FREUD, S., (1923), "A organização
genital infantil", E. S. B., 1976, X IX, 184.
9 - FREUD, S., (1933)
"Feminilidade", in Novas conferências introdutórias sobre
psicanálise, E. S. B., 1976, XXII, 143.
10 - FREUD, S., (1920) "A psicogênese
de um caso de homossexualismo numa mulher" , E. S. B., 1976, XVIII, 211.
11 - FREUD, S., (1933), "Feminilidade
", Op. Cit., 142.
12 - Freud expõe longamente sobre a
dificuldade de se encontrar um significação satisfatória para
"masculino" e "feminino" numa extensa nota de rodapé
acrescentada em 1915 aos "Três ensaios" (E. S.B., 1972, VII, 226); e
também em uma outra nota de rodapé, ainda mais longa, no Capítulo VII de
"O mal-estar na Civilização" (E. S. B., 1974, XXI, 126 e seg.).
13
- KLEIN, M., "The effects of early anxiety-situations on the sexual
development of the girl", in The psycho-analysis of children, London,
Hogarth Press, 1959, 268-325.
14
- AULAGNIER, Piera. "La violence de l'interprétation", Paris, PUF,
1981.
15
- LACAN, J., "La signification du Phallus", in Écrits, Paris, Seuil,
1966, 686. "La relation du sujet au phallus "s'établit sans égard à la
différence anatomique des sexes"
16
- KREISLER, L., "Les intersexuels avec ambiguïté génitale", in
Psychiatrie de l'enfant, 13, 1, 1970.
17
- CECCARELLI, P., "Le transsexualisme: Nature ou contre-nature?", in
Topique, 55, 1994. & "Mal-estar na
identificação", Boletim de Novidades da Livraria Pulsional, 93, 37-46,
1997.
fonte:http://ceccarelli.psc.br/paulorobertoceccarelli/?page_id=235
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