quinta-feira, 19 de maio de 2016

CRÍTICA DE UMA TRADUÇÃO ILUSÓRIA


Por Marcos InHauser Soriano

Lá vai Joana a correr pela praia, cabelos soltos ao vento, pezinhos descalços a tocar a areia, inquieta e livre, parando de repente a pescrutar o mar. O mar também sofre da mesma inquietude, às vezes revolto, às vezes em tranquila calmaria. Joana é mar.
Através da escrita, Clarice Lispector cria a inquieta Joana, em “Perto do coração selvagem”. Joana vai ser assim, inquieta por toda a obra, sempre perto, apenas perto, sem alcançar o selvagem do coração. O mar vai rodear Joana em toda sua existência, através da escrita de Clarice.
Toda obra literária retrata, clara ou enigmaticamente, um pedaço, um recorte do cotidiano humano. Joana cria Clarice, enquanto Clarice vai criando Joana. Um profundo “romper o cerco das coisas” em um ato de mergulho vertical em autêntica transferência entre Joana, Clarice e o leitor de “Perto do coração selvagem”.
Se existe alguma intencionalidade em Clarice? Se existe alguma intencionalidade em Joana? Talvez caiba ao leitor, o trabalho de fantasiar a intencionalidade, em tentativa de traduzir Joana/Clarice a seu modo, individual e único, portanto imperfeito quanto à direção correta de tradução, sempre apenas perto do selvagem do coração.

Marilene Carone, em seu brilhante esforço de tradução de alguns artigos de Freud, nos apresenta, com sinceridade, a dificuldade de tal intento. Utilizo aqui “Luto e melancolia” como exemplo. Traduzir Freud é tentar entrever Viena, localizar o autor no devido contexto histórico de uma época, conhecer profundamente o “jeito” da escrita alemã – tão diferente da nossa -, tentar mergulhar na forma criativa e científico-artística do fundador da Psicanálise. Traduzir Freud é tentar sê-lo apenas de perto.
O próprio Freud nos revela a dificuldade de traduzir a resgatada nomenclatura “melancolia”. Freud sabe e comunica que conseguirá apenas tocar de perto os andaimes que tecem a melancolia, em seus aspectos depressivos e maníacos.
Mesmo Freud, na tradução de Marilene, encontra-se apenas perto da compreensão da melancolia.

Chega dizendo de um estranhamento, um choro assim, que aparece do nada, um choro apenas chorado.
Ao meu silêncio, ao me negar a oferecer qualquer representação, qualquer tradução pronta, o estranho do choro chorado vai buscando formas de minimamente esboçar-se.
De início um atrito resistencial de encaixe de qualquer coisa que represente o estranho. Nada serve, falta. Surge um choro chorado que representa falta. Mais uma vez, sou convidado, intimado a traduzir. Recuo, suportando a angústia que também me atinge. Vejo-me, na falta, a chorar um choro chorado. Se tivermos paciência, o choro chorado da falta há de falar, explicar-se, se fazer entender, traduzir-se por si.
O que falta? Que possamos manter a inquietude de Joana a perscrutar o mar. Que sustentemos a posição de estarmos apenas perto disso estranho, pois que o estranho é inquieto e fugidio feito Joana. Que deixemos que “surja” o sentido da falta. Que escapemos do apelo ilusório de traduzir para, no mergulho vertical da transferência, interpretar.
Interpretar não é traduzir. Interpretar é encontra-se apenas perto, suportar que disso nada há para o saber da razão – Joana a perscrutar o mar.
Traduzir seria apontar um caminho certo, correto, frente a sentidos equivocados. Caminho certo para quem? Caminho correto de quem? Um comportamento adequado talvez?

Interpretar é assim um pequeno movimento de desencontrar o sentido estabelecido, sem certo ou errado. Uma ruptura de sentido, um desencontro do discurso, um movimento sutil a promover o surgir de sentido outro, deste que chora o choro chorado da falta. Interpretar é um ato falho a dois, um momento cômico a romper o engessamento do que se foi sem mais ser. Interpretar é aproximar-se de Joana a perscrutar seu mar, aguardando que o mar de Joana fale para ela, para Clarice, para nós.