Por Marcos InHauser Soriano
Lá vai Joana a correr pela praia,
cabelos soltos ao vento, pezinhos descalços a tocar a areia, inquieta e livre,
parando de repente a pescrutar o mar. O mar também sofre da mesma inquietude,
às vezes revolto, às vezes em tranquila calmaria. Joana é mar.
Através da escrita, Clarice
Lispector cria a inquieta Joana, em “Perto do coração selvagem”. Joana vai ser
assim, inquieta por toda a obra, sempre perto, apenas perto, sem alcançar o
selvagem do coração. O mar vai rodear Joana em toda sua existência, através da
escrita de Clarice.
Toda obra literária retrata, clara
ou enigmaticamente, um pedaço, um recorte do cotidiano humano. Joana cria
Clarice, enquanto Clarice vai criando Joana. Um profundo “romper o cerco das
coisas” em um ato de mergulho vertical em autêntica transferência entre Joana,
Clarice e o leitor de “Perto do coração selvagem”.
Se existe alguma intencionalidade
em Clarice? Se existe alguma intencionalidade em Joana? Talvez caiba ao leitor,
o trabalho de fantasiar a intencionalidade, em tentativa de traduzir
Joana/Clarice a seu modo, individual e único, portanto imperfeito quanto à
direção correta de tradução, sempre apenas perto do selvagem do coração.
Marilene Carone, em seu brilhante
esforço de tradução de alguns artigos de Freud, nos apresenta, com sinceridade,
a dificuldade de tal intento. Utilizo aqui “Luto e melancolia” como exemplo.
Traduzir Freud é tentar entrever Viena, localizar o autor no devido contexto
histórico de uma época, conhecer profundamente o “jeito” da escrita alemã – tão
diferente da nossa -, tentar mergulhar na forma criativa e científico-artística
do fundador da Psicanálise. Traduzir Freud é tentar sê-lo apenas de perto.
O próprio Freud nos revela a
dificuldade de traduzir a resgatada nomenclatura “melancolia”. Freud sabe e
comunica que conseguirá apenas tocar de perto os andaimes que tecem a
melancolia, em seus aspectos depressivos e maníacos.
Mesmo Freud, na tradução de
Marilene, encontra-se apenas perto da compreensão da melancolia.
Chega dizendo de um estranhamento,
um choro assim, que aparece do nada, um choro apenas chorado.
Ao meu silêncio, ao me negar a
oferecer qualquer representação, qualquer tradução pronta, o estranho do choro
chorado vai buscando formas de minimamente esboçar-se.
De início um atrito resistencial de
encaixe de qualquer coisa que represente o estranho. Nada serve, falta. Surge
um choro chorado que representa falta. Mais uma vez, sou convidado, intimado a
traduzir. Recuo, suportando a angústia que também me atinge. Vejo-me, na falta,
a chorar um choro chorado. Se tivermos paciência, o choro chorado da falta há
de falar, explicar-se, se fazer entender, traduzir-se por si.
O que falta? Que possamos manter a
inquietude de Joana a perscrutar o mar. Que sustentemos a posição de estarmos
apenas perto disso estranho, pois que o estranho é inquieto e fugidio feito
Joana. Que deixemos que “surja” o sentido da falta. Que escapemos do apelo
ilusório de traduzir para, no mergulho vertical da transferência, interpretar.
Interpretar não é traduzir. Interpretar
é encontra-se apenas perto, suportar que disso nada há para o saber da razão –
Joana a perscrutar o mar.
Traduzir seria apontar um caminho
certo, correto, frente a sentidos equivocados. Caminho certo para quem? Caminho
correto de quem? Um comportamento adequado talvez?
Interpretar é assim um pequeno
movimento de desencontrar o sentido estabelecido, sem certo ou errado. Uma
ruptura de sentido, um desencontro do discurso, um movimento sutil a promover o
surgir de sentido outro, deste que chora o choro chorado da falta. Interpretar
é um ato falho a dois, um momento cômico a romper o engessamento do que se foi
sem mais ser. Interpretar é aproximar-se de Joana a perscrutar seu mar,
aguardando que o mar de Joana fale para ela, para Clarice, para nós.