quinta-feira, 9 de maio de 2013

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO LÉSBICA


in LES Online: http://www.lespt.org/lesonline, Vol. 1, No 1 (2009)
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Nas últimas décadas, sobretudo no ocidente, importantes conquistas sociais foram alcançadas, cujas consequências geraram o que poderíamos chamar de “reorganizações coletivas”. Tal processo, cujas origens remontam à Revolução Industrial, foi intensificado após a primeira grande Guerra. Nas década seguintes, o debate iniciado no século XIX sobre o lugar dos homens e das mulheres nas relações sociais – trabalho, procriação, direitos – ganhou fôlego novo com a participação dos movimentos feministas. A nova organização sócio-política gerada por estes movimentos levou a uma discussão inédita a respeito da sexualidade e das relações sexuais. Surge um discurso revolucionário a respeito do sexual, no qual a psicanálise teve uma contribuição fundamental: um de seus textos centrais, os Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade, constitui a primeira formulação sistemática sobre o tema (Ceccarelli, 2007).
Não se discute a importância do movimento feminista na desconstrução da hegemonia discursiva que apresentava o lugar e o papel da mulher na sociedade ocidental como algo “natural”, logo imutável. Um dos desdobramentos deste reposicionamento social foi o direito das mulheres a gerenciar a sua sexualidade, e uma maior visibilidade das lésbicas (Lown, 1995).
Por outro lado tenho a impressão que esta visibilidade ainda não foi totalmente conquistada. Sustento meus argumentos a partir do meu trabalho clínico de muitos anos, assim como de minha participação, de formas variadas, em grupos de discussão LGBT, em encontros sobre direitos humanos, movimentos de gênero e diversidades sexuais, construções identitárias, questões ligadas à “educação” sexual, famílias homoparentais e muitos outros, tanto no Brasil quanto no exterior.
Muitas das reivindicações dos movimentos LGBT foram reconhecidas, e o relacionamento – estável ou não – entre pessoas do mesmo sexo passou a fazer parte da paisagem social. Observo, entretanto, que este relacionamento não se expressa da mesma forma, produzindo posições sociais diferentes e subjetividades distintas, caso se trate de dois homens ou de duas mulheres. Num primeiro momento, fui levado a pensar que esta diferença era o resultado da dinâmica psíquica interna do casal. Porém, após ouvir a mesma observação em contextos diferentes, ocorreu-me que, em alguns casos, um certo incomodo subjetivo e social do casal lésbico deve-se ao lugar da mulher na cultura ocidental. Ou seja, diferentemente do casal gay, o casal lésbico seria duplamente atingido pelo discurso social que, em muitos aspectos, continua a segregar a mulher. Perguntei-me, então, em que medida a violência simbólica, que consiste em introjetar o discurso dominante identificando-se com o dominador (Bourdieu, 2000), atuaria duplamente no casal de lésbicas. Eis minha hipótese de trabalho.
É no imaginário da cultura ocidental, cujas origens remontam a seus mitos fundadores, que encontramos as bases da hegemonia discursiva que define as construções sintagmáticas utilizadas para “ler o mundo”. Ou seja: nossa visão de mundo é tributária da ordem social que a produz. Ordem geradora de um discurso ideológico que, dentre outras coisas, dita o lugar social do homem e da mulher e apresenta as relações afetivas heterossexuais como as únicas naturais. Inseridos neste imaginário desde que nascemos e desconhecendo as convenções sociais que nos guiam, somos levados a crer na existência natural de sujeitos heterossexuais, bissexuais e homossexuais. Vivenciamos esta construção discursiva como algo intuitivo, universalmente válido desde sempre para todos os sujeitos, e não como o resultado de uma construção social arbitrária (Sousa Filho, 2003).
Um pequena digressão histórica será útil para melhor situar minha argumentação. Os critérios construídos, e historicamente datados, que determinam a forma “correta” do exercício da sexualidade são arranjos simbólicos que repousam sobre o sistema de valores de uma dada sociedade. Na ocidental, este simbólico é marcado por uma visão negativa da sexualidade, cujas origens devem ser buscadas no relato bíblico do pecado original (Ceccarelli, 2000). Foram também os ideais da cultura ocidental que deram origem ao discurso que classifica as práticas sexuais em “normais” e “anormais” (ou perversas, desviantes). Partindo da ideia de uma sexualidade normal segundo a natureza, todo desvio passa a ser considerado uma depravação, pravus, uma prática “contra a natureza” (Peixoto, 1998). Quando a sexualidade desvia da finalidade primeira – união de dois órgãos sexuais diferentes para a preservação da espécie –, estamos diante de uma perversão: pedofilia, necrofilia, masturbação, heterossexualidade separada da procriação, homossexualidade, sodomia…
Os “critérios de normalidade”, então estabelecidos, foram dogmatizados e transformados em revelações a serem seguidas sem questionamento. Tais critérios são introjetados como ideais culturais, e, juntamente com a autoridade paterna, constituem o superego. Tratam-se, observa Freud (1924), de elementos externos – os Ideais – foram, outrora, sentidos intensamente. Com esse expediente o simbólico cria, de um lado, tanto a “sexualidade normal” quanto as “desviantes”, dentro das quais encontra-se a homossexualidade, e, de outro lado, propõe categorias classificatórias que transformam posições libidinais em orientações sexuais a partir das quais os sujeitos são identificados. Tais estratégias nada mais são, como demonstra Foucault (1976), do que formas de controle. E mesmo aquelas, e aqueles, que conseguem manter uma certa distância destes valores não estão imunes de sentir uma tensão interna oriunda da defasagem entre os ideais sociais introjetados e a critica que fazem a estes ideais.
O lugar reservado às mulheres na cultura ocidental é por demais conhecido, e dispensa comentários. Responsável pela queda, a mulher inescrupulosa e sem princípios leva o homem, através da sedução, a pecar; pecado este que é sempre da ordem da sexualidade. É deste postulado que surge a concepção, presente até hoje, da imagem negativa da mulher. Em contrapartida, temos o homem, espiritual em sua origem, mas vítima indefesa da mulher diabólica. Este “destino” sem paralelo dado à mulher no mundo cristão, que esteve presente na caça às bruxas na idade média, continua atuante até hoje: em muitas decisões judiciais a pena é reduzida quando prova-se que foi a mulher que “provocou” o homem (Ranke-Heinemann, 1996).
Os movimentos LGBT, com sua história marcada por altos e baixos, se organizaram, justamente, para denunciar a arbitrariedade das convenções sociais que segregam certos segmentos da sociedade. Todavia, eles não estão imunes do retorno sintomático dessas convenções quando, por exemplo, reivindicam os mesmos valores sociais que são caros a ordem política que os exclui. Na minha opinião, a expressão máxima da violência simbólica, à qual assistimos com bastante regularidade, é a que leva o casal homossexual a reproduzir o modelo heterossexual socialmente valorizado. Por exemplo, quando em um casal de lésbicas, uma apresenta a companheira, dizendo: “esta é o minha mulher”; ou, no casal de gays: “este é meu marido”. (Uma busca de “normalidade”? de legitimidade? Esta é uma discussão para outra ocasião.)
Ao mesmo tempo, é importante não esquecer que os movimentos LGBT estão longe de serem universalmente aceitos e continuam marginais, quando não condenados e perseguidos, em outras culturas. E mesmo na cultura ocidental, onde as reivindicações LGBT vem sendo atendidas, continuamos a assistir cotidianamente atitudes reacionárias que impendem o avanço dos direitos do cidadão.
Ora, se as referências de normalidade presentes do imaginário ocidental, tal como a afirmação segundo qual a heterossexualidade é a única forma legítima de expressão da sexualidade, têm mantido toda a sua força com o passar dos séculos, é legitimo supor que a posição da mulher também tenha, em certa medida, alterado-se pouco neste mesmo imaginário. Ainda é muito forte a vinculação que se faz entre mulher e maternidade. A sexualidade na terceira idade, quando a mulher não mais procria, ainda desperta comentários pejorativos. No fundo, e este é um ponto central no debate, o que se tenta controlar é aquilo que no imaginário masculino continua ainda sendo visto como uma ameaça: a irrupção do orgasmo feminino separado da procriação, tão bem descrito por Flaubert em Madame Bovary, e que tanto incomoda aos psicanalistas com suas infindáveis questões sobre o gozo feminino. O próprio Freud desistiu desta empreitada ao qualificar a sexualidade feminina de “o continente negro” (Freud, 1933). O problema que ele enfrenta para tentar explicar a homossexualidade feminina (Freud, 1920) não é menor que o de explicar a heterossexualidade na mulher. Frente ao “enigma da feminilidade” Freud propõe uma teoria biologizante que partindo de qualidades “inatas” do pênis levaria espontaneamente à inveja do pênis na menina. Mais recentemente, as contribuições da escola lacaniana lançaram, sem dúvida, alguma luz na questão, embora muitos impasses ainda existam. Seja como for, a presença da dominação masculina nestas posições teórico-clinicas é evidente na medida em que o homem continua a sentir-se autorizado para falar, inclusive em ternos de normalidade e patologia, da sexualidade feminina. Não passa despercebido a impressionante discrepância entre o número de produções teóricas sobre a feminilidade, sobre a sexualidade feminina, escritas por homens, e a quase inexistência de textos sobre a masculinidade, sobre a sexualidade masculina, escritos por mulheres!
Os movimentos LGBT denunciam a fragilidade do discurso social que sustenta as políticas sexuais. Eles questionam, dentre outras, a existência de uma pretensa identidade homossexual que reduz o sujeito à sua prática sexual, provocando o mesmo efeito criado pela palavra homossexual: um caráter discriminatório. Entende-se porque estes movimentos são, muitas vezes, sentidos como ameaçadores e veementemente atacados pelas alas sociais conservadoras: eles obrigam os sujeitos a reavaliar as representações que, até então, pareciam imutáveis. Entretanto, já o dissemos, se os ideais sociais são introjetados pelo sujeito e passam a funcionar como referências internas de valores morais, pode acontecer, como na violência simbólica, que o sujeito viva a sua realidade interior como algo marginal e condenável: tal é a expressão do auto-preconceito. O discurso social, que constrói as referências do masculino e do feminino e dita os parâmetros que definem a “sexualidade de normal”, contribui para que o sujeito homossexual, marcado pelos ideais da sociedade, se sinta “desviante”, posto que excluído do discurso dominante. No âmbito da clínica, este estado de coisas se traduz por uma recusa, senão uma revolta, de aceitar-se como se é. Em muitos casos, para se ver livre o mais rápido possível do estigma de viver uma sexualidade contra a natureza, a “orientação homossexual” funciona como um cartão de visita a ser apresentado ao analista o mais rápido possível. (A menos que o sujeito vivencia sua sexualidade como algo tão assustador que necessite de várias sessões para detectar a possível reação do terapeuta.) Contudo, na grande maioria das vezes, o sofrimento devido ao fato de ser homossexual advém mais de questões sociais e medos – “o que os outros vão dizer”, “se os meus pais ou amigos souberem”, da culpa, da discriminação… – do que da sexualidade em si. Muita vezes, infelizmente, o terapeuta interpreta o sofrimento apresentado pelo/a homossexual como um sintoma patológico devido a sua orientação sexual, e não como resultado de uma exclusão. Como consequência, as intervenções feitas visam encontrar o conflito que teria desviado o sujeito da única solução edípica produtora de saúde psíquica: a heterossexual. A cultura ocidental cedo informa aos homossexuais que sua forma de viver a sexualidade é errada. Uma jovem em análise expressou assim o seu conflito: “Primeiro me falaram que ser homossexual era anormal. Depois, descobri que era homossexual. Ou seja, que era anormal. O que fazer?”
Acredito então, para voltar ao debate, que as relações lésbicas são mais susceptíveis de discriminações sociais do que as relações gays por questionarem, a céu aberto e duplamente, o lugar e mulher e da sexualidade feminina na cultura ocidental. O fantasma do orgasmo feminino separado da procriação concretizou-se tornando-se uma realidade com a visibilidade das ligações homoafetivas femininas. A meu ver, este ponto constitui um divisor entre as questões femininas em geral e a especificidade das questões lésbicas, fazendo com que as últimas mereçam uma abordagem diferenciada. Ainda que as reivindicações feministas incluam questões ligadas à sexualidade, as práticas sexuais em si – na vertente heterossexual – são poucos debatidas, pois, supõe-se, este é um assunto de alcova. Além disso, a possibilidade de reprodução estaria, pelo menos em teoria, potencialmente presente no casal heterossexual, assegurando-lhe o lugar esperado no discurso social. Esta lógica do sistema é desmascarada pelo casal de lésbicas, que reivindica uma prática sexual legítima e prazerosa independente da procriação, embora esta não esteja excluída por outras vias. Enquanto as relações lésbicas mantiveram-se “invisíveis”, elas foram toleradas. O fato de duas mulheres solteiras, que “ficaram para tia”, pois nenhum homem as quis, morarem juntas nunca causou espanto. Ao contrário, tais relacionamentos sempre foram admitidos, senão incentivados, como um arranjo no qual uma fazia companhia a outra, além de contribuírem mutuamente para as despesas, visto que o salário da mulher era, e muitas vezes ainda o é, inferior ao do homem. Muito mais raro era dois homens de uma certa idade, independentes, com um bom emprego e ganhando bem, cobiçados pelas mulheres, morarem juntos. Tal situação sempre levantou suspeitas. A “espécie em extinção” do solteirão caracterizava-se pelo homem que vivia só, pois (ainda) não encontrara a mulher ideal para casar-se. Mais uma vez, o que está em jogo nas duas situações é a sexualidade: por serem “naturalmente” menos resistente aos apelos da carne, era no mínimo suspeito o fato de dois homens morarem juntos sem a frequentação feminina. Alguma forma de sexualidade deveria haver. Quanto às mulheres, dentro do ideal que o discurso ocidental lhes reserva, era inconcebível, ou melhor, lhes era negado, qualquer apetite sexual fora do modelo tradicional.
A dominação masculina em muito contribui para que as relações gays sejam “mais aceitas” pois, afinal, tratam-se de dois homens. No casal lésbico, muitas vezes, a dificuldade da relação deve-se à reprodução, no âmbito do individual e no interior do casal, da posição social da mulher. Em uma sociedade na qual o discurso sobre a sexualidade é muito mas repressivo quando se trata da sexualidade feminina, particularmente ao vinculá-la à função reprodutora da mulher, a valorização da virgindade, à fidelidade e no qual, desde cedo, a equação mulher = mãe é inculcada na cabeça da criança do sexo feminino, as reivindicações dos movimentos das mulheres lésbicas trazem questões que lhes são intrínsecas e que correm o risco de passarem despercebidas nas abordagens feministas ou mesmo nas LGBT. Questões estas que, a meu ver, ainda não foram devidamente debatidas.
Finalmente, não podemos nos esquecer que ao centrar o debate na sexualidade – feminina, masculina ou bissexual em suas inúmeras vertentes – a verdadeira questão é evitada, a saber: o sexual, no ser humano, escapa a toda forma de apreensão direta, não podendo jamais ser controlado. E os discursos sobre a sexualidade são, em última análise, artefatos culturais criados para tentar lidar com o mistério do sexual. A ordem discursiva jamais dará conta do enigma do sexual, cujas manifestações são provas irrefutáveis que não somos senhores em nossa própria casa. Não é sem razão que as produções do inconsciente são muitas vezes sentidas, tanto pelo sujeito quanto pela cultura, como da ordem do estranho (Unheimlich) (Freud, 1919).

Paulo Roberto Ceccarelli*
*Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Pós-doutor por Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Membro da “Société de Psychanalyse Freudienne”, Paris, França; Sócio de Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG.

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