quinta-feira, 9 de maio de 2013

É POSSÍVEL UM PSICOLOGIA "EVANGÉLICA"?

O apelo a uma autoridade "religiosa" regulando a prática psicológica demonstra falta de informação sobre as relações entre religião e ciência (psicologia). Coloca-se arbitrariamente no mesmo lugar dois universos de questões essencialmente diferentes, cujo único princípio de encontro é a própria arbitrariedade.

por Marcio Miotto (07/05/2013)
em CiênciaFilosofiaSociedade
















– Apóstolo Paulo por Valentin de Boulogne ou Nicolas Tournier, século XVI -

Diversos “leigos” em psicologia – e alguns psicólogos – enunciam nas comunidades virtuais, na vida diária e curiosamente às vezes até no poder legislativo uma pergunta frequente: quais são as relações entre psicologia e religião? Jesus Cristo seria um “psicólogo”? Um psicólogo basta para sanar problemas ou ir à Igreja seria mais eficaz? Como corrigir nossos “males” do “espírito”? Enfim, como já saiu um best-seller por aí, Jesus seria o “maior psicólogo que já existiu”? Por vezes essas perguntas se condensam inclusive em abordagens “psicológicas”, carregando o radical “psi” nos mais variados nomes: psicologia “evangélica”, “cristã”, “teológica”, “pastoral”, “psicoteologia”… A que se deve tal mistura, se a ciência não a aceita e a religião nunca precisou dela?

Mistura entre Ciência e Fé

Primeiro fator a notar: as relações entre psicologia e religião devem ser semelhantes às relações entre ciência e fé. Ninguém contesta, por exemplo, que certos tipos de problemas competem ao médico – e só a ele – medicar. Quando alguém próximo fica doente, rezamos pelo ente querido, mas nem por isso deixamos de levá-lo ao médico (seria irracional pensar que medicina e reza, domínios de esferas bem distintas, atrapalhariam um ao outro, não?). O mesmo deve ocorrer em psicologia: dentro do universo das chamadas “doenças mentais”, alguém com quadro de sofrimento psíquico deve ser encaminhado ao psicólogo. Isso não exclui a oração dos fiéis. Mas apenas a oração não garante de saída melhora alguma (e a existência e sucesso da medicina moderna estão aí para o provar).
Não é difícil encontrar em alguns contextos (e é importante não generalizar) pessoas com sofrimento psíquico ou algum quadro de transtorno mental relatando sobre suas idas a determinados cultos. Nesse contexto, não são raros relatos semelhantes ao seguinte: um indivíduo toma remédios fortes com prescrição controlada. A interrupção brusca do medicamento pode causar efeitos colaterais ou mesmo agravar sintomas. Mas em certos lugares, quando começa a participar no culto, o indivíduo recebe a informação de que o remédio é inútil ou insuficiente. Os temas variam, mas giram em torno da recomendação de que a participação pura e simples no culto garante o milagre. Quanto mais fervorosa a participação, maior seria a garantia. Confiando no “milagre” o indivíduo adere ao culto, com uma expectativa de cura tão maior quanto retornam cada vez mais os efeitos fisiológicos anteriores ao uso do remédio. Nesses cultos, a promessa do “milagre” opera em via contrária ao uso dos remédios, e mesmo requer a ausência deles para que o dito milagre se afirme com maior autenticidade – mesmo que a “cura” nunca chegue ou dure pouco tempo (não sendo milagre algum), outro elemento muito comum nos relatos.
As práticas desses cultos deixam algo claro: há uma mistura, feita por determinadas correntes religiosas, entre religião e psicologia, entre o que compete ao padre ou pastor e o que compete ao psicólogo. Como se a psicologia fosse secundária e subsumida a interesses religiosos. Ou em outras palavras, como se o psicólogo se resumisse a uma espécie de agente religioso que ignoraria a própria ciência ou a colocaria explicitamente a serviço da religião.
Certos setores religiosos chegam a levar essa mistura a práticas errôneas, mal fundamentadas e consideradas anti-éticas. Um exemplo atual é uma “corrente” de psicólogos e/ou religiosos auto-intitulados “psicólogos evangélicos”. Alguns deles inclusive receberam reprovação pública do Conselho Federal de Psicologia (CFP), por prometerem uma terapia para os indivíduos supostamente “deixarem a homossexualidade”. O que esses “psicólogos evangélicos” fazem ao propor isso? Sob temas não muito distantes do que foi enunciado acima, eles também subjugam a ciência à fé. Misturam psicologia e religião, fazendo com que o psicólogo se transforme numa espécie de subalterno de propósitos religiosos sectários. Isso por si só contraria qualquer ideal de ciência (grosso modo uma ciência se apoia em dados factuais e pretende ser livre de simples crenças), e mesmo é um preconceito contra outras religiões. Se um psicólogo é um pretenso cientista mas se subjuga a interesses de uma fé particular, não estaria com isso anulando todas as outras fés, comprometendo a própria tentativa de isenção e relativizando a própria ciência?

Psicologia: recurso “incompleto” e “instrumental”

Para muitos, por incrível que pareça, não há problema algum nisso. Segundo eles, por uma espécie de primado “divino” e “bíblico”, um psicólogo ou prática psicológica poderia ser, aparentemente sem qualquer problema, chamado às práticas “pastorais”. Exemplificando abaixo, um relato retirado de uma dentre as muitas comunidades virtuais representa a crença de tal primado. Sob certos preceitos, a psicologia poderia supostamente servir a pastores, como se na essência ela configurasse uma espécie de instrumento, algo da ordem da retórica ou da oratória:
O cuidado pastoral orientado por este modelo tem como objetivo a produção de cura das doenças da alma a tal ponto que o indivíduo passe por mudanças e sua vida venha ter estabilidade, equilíbrio, alívio, descanso e paz em Deus. A psicoteologia, através de terapia, será utilizada com um meio de elaboração e mudança interna na vida daquele que foi criado à imagem e semelhança de Deus. Terapia é toda intervenção que visa tratar os problemas somáticos, psíquicos ou psicossomáticos, suas causas e seus sintomas, com o fim de obter um restabelecimento da saúde ou do bem-estar (sic.)
Ou ainda:
Pastor pode dar aconselhamentos psicológicos sim, pois quando os mesmos estudam em uma faculdade séria, eles são capacitados por especialistas, para fazer. Claro que não é igual um psicólogo, mas pode usar alguns traços da psicologia para isso… (sic.)
A escolha da carreira de psicologia por jovens fiéis com planos de se tornarem pastores é um fato notável em diversos departamentos de psicologia. A ponto disso inclusive criar entre religiosos certa polêmica e, do outro lado do espectro, alguns pastores mais conservadores apelarem a passagens da Bíblia para tentar evitar esse recurso “instrumental” aos saberes mundanos. Novamente vale ver um comentário de comunidade virtual sobre esse tipo de posição:
Os “psicólogos cristãos” são, em geral, mais populares e influentes do que os pregadores e mestres da Palavra. Qual é o evangélico na América que não conhece o Dr. James Dobson? A psicologicamente orientada Associação dos Conselheiros Cristãos tem 5.000 membros. A igreja evangélica é uma das líderes em serviços referenciais para conselheiros seculares (quer afirmem ser ou não ser cristãos). Como as suas contrapartes seculares, a segunda carreira mais popular na escolha dos estudantes em colégios cristãos é a psicologia. O que torna essa informação realmente chocante é o fato de que as raízes, conceitos e muitas das práticas do aconselhamento psicológico provêm de espíritos enganadores e doutrinas de demônios. (sic.)
A despeito do caráter excêntrico da passagem, é notável tal questão ser preocupação em alguns círculos cujo número de interessados não é pequeno: ao escolher psicologia, boa parte dos fiéis escolheria “conceitos” e “práticas” de “espiritos enganadores e doutrinas de demônios”! Isso caracterizaria a apostasia do fiel, deixando a Bíblia de lado para escolher doutrinas que “minam” os ensinamentos das escrituras. “Minar” os ensinamentos das escrituras seria em si mesmo “demoníaco” (ou nas correntes mais brandas simplesmente “mundano”), não necessariamente por contrariá-las, mas por implicar uma exterioridade de abordagens “extra-bíblicas” e “seculares”. É “demoníaco” ou meramente “mundano” – e portanto contingente, arbitrário, irrelevante – simplesmente por “não ser” bíblico, ou mais precisamente por não corresponder a certas traduções da Bíblia vertidas ao português ou inglês.
Nisso, é curioso notar como o juízo duvidoso da apostasia da fé se confunde com deliberadashipostasias da razão. Cabe notar os dois lados do espectro citado acima, os religiosos que pregam a junção ou a disjunção entre a psicologia e o culto. De um lado, psicologia e religião são colocadas lado a lado, embora a psicologia se resumiria a um recurso meramente instrumental e subordinado a propósitos pastorais; de outro, psicologia e religião também são colocadas lado a lado, só que agora para negar o emprego “mundano” ou até “demoníaco” da psicologia – os psicólogos evangélicos eventualmente considerados apóstatas “escolheriam” abordagens “demoníacas” porque elas não se regem pelos “mestres da Palavra”.
Nos dois lados do espectro vê-se um pressuposto comum: a crença de uma familiar, evidente, trivial, fácil passagem do evangélico (ou “cristão”, “pastoral”, “teológico” etc.) ao psicólogico, chamada então de “psicologia evangélica” (para gosto de um lado e preocupação de outro). Favoráveis e contrários enxergariam a possibilidade de uma “psicologia” que é “evangélica”, a despeito de 130 anos de psicologia propriamente dita em via totalmente contrária.
Mas há mais: se existe a acusação dos apóstatas de um lado e a fácil passagem entre “evangélico” e “psicológico” de outro, parece notável a dita “psicologia evangélica” não se interessar em geral por questões rigorosamente psicológicas de um lado e bíblicas de outro, como fariam outras correntes de estudos teológicos do passado. Por exemplo, no século XIX um autor chamado Franz Julius Delitzsch publicou um “Sistema de Psicologia Bíblica”. Ele tentava estudar questões como as relações entre as faculdades “mentais” e “espirituais” desde os escritos bíblicos mais antigos, passando pelo Novo Testamento e os Pais da Igreja. Em jogo figurava a noção de “natureza humana” segundo a Bíblia (como noções como nouspneuma e psyché se relacionariam com nepheshruah e neshamah? E assim por diante). Algo que, isento de certas pretensões, abre debates ainda atuais. Mas sobre isso, algo já se pode afirmar: uma “psicologia” “bíblica” nunca prescreveria de saída qualquer prática psicológica, restringindo-se (no que poderia ter de “psicologia” em sentido estrito) a pesquisas de cunho mais exegético e historiográfico. Como afirma o filósofo francês Frédéric Gros junto com diversos pesquisadores (como Paul Mengal e outros), o termo “psicologia” é bastante recente – remonta ao século XVI com Marko Marulic, Rudolph Goclenius e outros – e nesse sentido enxergar na noção antiga de ψυχή (psyché) o princípio de uma prática psicológica em sentido moderno não passaria de ilusão retrospectiva, puro anacronismo.
Mas no panorama da chamada “psicologia evangélica” (ou demais compostos com o radical “psi” que seguem tais linhas), esses cuidados não existem. Pelo contrário, considerando as duas posições acima enunciadas (a que “condena” e a que prega o uso instrumental da psicologia), frequentemente se recorre a passagens da Bíblia tanto para defender quanto para refutar as duas perspectivas. Novamente vale notar: tudo funciona como se a psicologia servisse de instrumentoao lado de outros, disponível à mera escolha particular do usuário. Veja-se, nessas duas alternativas (defender e refutar), uma mesma preconcepção implícita: a psicologia como mero recurso instrumental (ao lado de figuras como a retórica ou oratória), útil porém “limitado” para quem a “escolhe”, mas “terreno” e/ou “demoníaco” para quem a ataca.

Contra o recurso a Paulo, o próprio Paulo

Um livro da Bíblia muito citado para defender essas duas opções, supostamente mostrando esse “primado” bíblico sobre a psicologia e ao mesmo tempo o emprego instrumental da ciência, é aPrimeira Carta aos Coríntios. Nela, cita-se 1Cor 2,14-15 com bastante frequência:
Mas o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucuras. Nem as pode compreender, porque é pelo Espírito que se devem ponderar. O homem espiritual, ao contrário, julga todas as coisas e não é julgado por ninguém.
O significado parece evidente: o “homem natural”, “mundano”, “terreno”, não aceita as coisas do “Espírito de Deus”, e é pelo “Espírito” que tais coisas devem ser ponderadas. Em melhor posição, está o “homem espiritual”.
Segundo as duas posições do espectro acima, tem-se duas leituras:
(1) Contrários ao “uso” da psicologia: Segundo eles, os pastores que optam por “psicologia evangélica” erram por escolher as coisas do “homem natural” e não do “Espírito”. Ora, as coisas do espírito bastariam por si mesmas.
(2) Favoráveis ao “uso” da psicologia: O pastor que optar pela ciência psicológica tem apenas um ponto de vista insuficiente, “natural”, que deveria ser completado pelo “espiritual”. Assim, a ciência psicológica se subordinaria ao evangelismo como as coisas “naturais” em sua subordinação às “espirituais”.
Antes de qualquer coisa é importante notar: a Bíblia não é um texto transparente, evidente, uma fonte límpida diante da qual basta enunciar um juízo particular, achá-lo instantaneamente correto a partir de um julgamento privado, e daí conduzir as outras almas. Pelo contrário, basta consultar as fontes e ver que cada palavra em questão é muito mais complexa, envolve um jogo muito mais sério e menos evidente do que cada individualidade particular (ou agregado de individualidades particulares) pode pensar.
Consultando as versões em grego e as Bíblias com notas de rodapé, é curioso ver que o “homem natural” é ψυχικος δε ανθρωπος, psuchikos de anthrōpos. “Espírito de Deus”, πνευματος του θεου, pneumatos tou Theou. O homem da psiquê não conhece ou compreende (γνῶναι) o pneumatos tou Theou, pois apenas se ponderam ou aprazem as coisas espirituais pelo espírito (πνευματος).
A pequena passagem de Paulo já citou duas noções muito interessantes para uma psicologia Bíblica (embora aparentemente pouco passadas em revista por quem propaga mistura entre psicologia e religião): ψυχική (psiquê) e πνευμα (pneuma). Termos de longa história, com ressonâncias e entrecruzamentos judaicos e gregos, sem contar as consequências latinas. Mas e então, acima tudo opera como se o esquema do “psicólogo evangélico” fosse correto, e o homem “psíquico” algo “inferior” ao “espiritual”? Ora, se é assim, a dita “psicologia evangélica” até poderia achar a si mesma “superior” à psicologia tout court, pois o aspecto de uma psicologia “espiritual” seria superior ao de uma psicologia “psicológica”.
Mas de saída a própria diferença entre “psiquê” e “espírito” – segundo a passagem de Paulo – já contraria qualquer argumento semelhante ao acima. Simplesmente porque Paulo não é um “psicólogo”, ele não está interessado em um estudo da psiquê. Pelo contrário, para ele o que há de “natural” ou “psicológico” no homem está, nos interesses maiores de sua teologia, fora de questão. E mais: o que diz respeito ao “pneuma”, ao “espírito”, não se chama em Paulo de “psicologia”, tornando sem sentido o anacronismo “psicologia evangélica” (para uma “psicologia” reger os interesses seria necessário inverter os termos paulinos e dizer que o saber sobre o “homem natural” – o homem da psiquê – tem alguma primazia sobre os outros termos…).
Ainda nada disse respeito ao significado de “espiritual”. Inclusive, dizer πνευματος του θεου é diferente de dizer apenas πνευμα. O primeiro termo indica o “Espírito de Deus” por excelência e em sentido transcendente. O segundo refere-se a estados “espirituais” humanos. E é importante notar em nosso contexto que, por serem humanos, esses estados espirituais não sãoimediatamente “divinos” simplesmente por serem “espirituais”. Nova afirmação necessária: embora a noção de “espírito” implique em Paulo algo diverso e privilegiado diante do “natural” na ordem da criação, a condição de “espiritual” do “homem espiritual” não implica por si só algo absolutamente superior ao “psicológico”. Exceto na referência ao “Espírito de Deus”, que para além do grego tem relações importantes com o hebreu Ruach Hakodesh, não é tão simples e evidente dizer que um homem dedicado de qualquer modo, mais ou menos particular, a uma atividade “espiritual” (por melhor “intencionada”), encara o mundo de modo privilegiado frente ao homem “psicológico” ou “natural”. Aí está contido um outro significado do ensinamento paulino, contra confusões “espirituais” puras e simples. Para que o “espírito” do homem se reporte ao “Espírito de Deus”, isto é, para que o “espírito” atualize suas implicações autenticamente divinas, segundo Paulo é preciso algo mais. Tome-se, por exemplo, 1Cor 14 (outra passagem muito citada):
O mesmo acontece convosco a respeito das línguas: se não pronunciais palavras inteligíveis, como se entenderá o que dizeis? Estaríeis falando ao vento.
Existem no mundo não sei quantas espécies de linguagem, e nada carece de linguagem/sentido.
Ora, se não entendo o significado de uma língua, sou como um bárbaro para aquele que fala e aquele que fala é como um bárbaro para mim.
Assim também vós: já que aspirais aos dons do Espírito, procurai tê-los em abundância, para a edificação da Igreja.
É por isto que aquele que fala em línguas deve orar para poder interpretá-las.
Se oro em línguas, o meu espírito está em oração, mas a minha inteligêncianenhum fruto colhe. (1Cor 14, 9-14)
Novamente, vê-se duas ocorrências de “espírito” semelhantes às acima (reportadas a Deus e aos homens). Mas de algum modo surge um termo novo: “inteligência”. Também traduzida por “consciência”, ou “mente”, vem da noção grega – importantíssima – de nous, νους. E opneuma, nesse caso, de algum modo também se contrapõe ao nous. Posso ter certos estados de espírito, mesmo pretensamente “religiosos”: segundo Paulo isso não é suficiente, pois mesmo assim posso ter uma atividade “espiritual” e me assemelhar a um estrangeiro ou bárbaro. Concentrada no simples elemento “espiritual”, “minha inteligência nenhum fruto colhe”. E o mais importante, a “inteligência” (νους) não é apenas a inteligência individual, mas tal noção contém algo não entrevisto no “espírito” (πνευμα): O νους oferece a possibilidade de haver aquilo que é mais importante ao fiel segundo Paulo: expor o espírito às inteligências alheias, interpretar o Espírito de Deus em comunidade, pois o próprio significado de Igreja (ἐκκλησία) é “assembléia” ou “reunião” de fiéis. Sem a “inteligência” (νους), sem a faculdade que permite ao homem pensar e “colher” ou não os “frutos” do pensamento dos outros, pode haver “espírito” (πνευμα) em oração mas não há Igreja, pois para haver local de reunião é imprescindível reunião, e só há reunião possível quando se utiliza a faculdade humana que permite reunir, traduzida por inteligência, mente ou consciência. Onde a “inteligência” não se usa ou é impedida de agir, só restaria o “bárbaro”.
A diferença é decisiva e nela se pode ver o que vários debates chamam a atenção: o ensinamento paulino, nesse contexto, não se refere na Igreja primitiva apenas a um rito particular da Igreja primitiva (“orar em línguas” ou qualquer outro à escolha), mas, utilizado sob algumas noções gregas, refere-se à implicação do significado antigo de “Igreja”: um mero estado de espírito individual, mesmo o mais entusiasta, não indica ‘Igreja’. Apenas há “Igreja” quando esse estado de espírito pode ser compartilhado com os outros homens. E esse caráter de “compartilhar” – cabe frisar – não é uma mera interpretação, sentimento, testemunho individual ou algo que o valha, simplesmente difundido. A difusão pura e simples de uma crença ou discurso particular é apenas o fundamento dos fanáticos e dos obscurantistas: posso juntar assembléias, cultos, até mesmo países sob alguma interpretação, sentimento ou testemunho. Posso juntar o mundo inteiro sob um “mesmo” estado de espírito, estado de πνευμα. Mas esse “mesmo” nunca criará uma ἐκκλησία, aspecto ilustrado pelo próprio São Paulo: “Se deres graças com teu espírito, como responderá amém à tua ação de graças aquele que ocupa um lugar particular, se não sabe o que dizes?” (1Cor 14, 16). Se o outro não pode usar sua inteligência ou meu “espírito” o impede de “compreender”, dificilmente ele conseguirá dizer “amém”, dificilmente haverá “Igreja”.
A diferença se acentua ainda mais quando se considera a palavra acima, “particular” – ιδιωτου,idiotou. Aquele que se resume a “orar em línguas”, isto é, aquele que em termos gerais se preocupa exclusivamente com o estado espiritual permanece no nível do privado, próprio, particular, ιδιωτου (em algumas traduções, “indouto”). Mantém-se a si mesmo e ao outro nesse estado. O estado espiritual particular, no nível do πνευμα e do ιδιωτου, contrapõe-se ao sentido comunitário eclesiástico, cujo plano é da “inteligência” (νους) com os outros.
“Compartilhar” verdadeiramente, ter um sentido comum – e não vários sentidos particulares depneuma em âmbito de idiōtou -, pelo menos nessa passagem de Paulo, é algo diferente: apenas há “Igreja” quando se usa também o νους. Paulo declara “orar em línguas” “mais” do que os outros. E o bom teólogo, sabendo que essas palavras não são casuais, poderia completar: aí que está, de que isso adianta? Segundo a Carta, de nada adianta “orar em línguas”, mesmo que se recomende que alguns “orem” e outros “interpretem” (é a recomendação de Paulo). Ninguém saberá se é Paulo ou qualquer outro, se o vendilhão ou o santo, caso se mantenha apenas nesse nível do sentimento privado, do “testemunho” ou do mero julgamento íntimo de alguém. Por mais belo que possa ser um testemunho, deve haver algo mais, algo que apele à “inteligência” (ao julgamento geral) e não seja apenas “palavra ao vento”. Quando se coloca em realce a importância da palavra “Igreja”, um estado espiritual entusiástico demais tomado apenas em si mesmo não faz diferença alguma se vindo do santo, de um bárbaro ou de um louco: segundo Paulo, é tudo idiōtou.
Reunindo as considerações preliminares acima sobre as noções de ψυχική, πνευμα e νους naquelas passagens de Paulo, se existe algum ensinamento advindo do Evangelho para o fiel e transposto para os dias de hoje, ele não se refere simplesmente à validade ou não de alguém “orar em línguas” ou escolher qualquer outro rito exterior. Não estão em jogo as escolhas rituais ou mesmo doutrinárias de uma religião (quaisquer que sejam, pois elas podem ser muitas). Independente da expressão “religiosa” particular – seja qual for -, a importância reside no nível da reunião eclesiástica, ou daquilo que não diz respeito a um ou a outro indivíduo, grupo ou credo, mas ao que circula “entre” os indivíduos de diferentes particularidades.
Disso se retiram algumas consequências para as pretensões da chamada “psicologia evangélica” (ou compostos relacionados). Em primeiro lugar, ao usar Paulo ela apelava à diferença entre o “homem natural” e o homem “espiritual” para dizer que, recolhida no “natural”, a psicologia moderna era ou errônea ou insuficiente. Mas a versão grega do texto mostra que Paulo não está interessado em qualquer doutrina da psiquê ou “psicologia”, isto é, não há psicologia a ser corrigida ou completada simplesmente porque não há psicologia por definição, ψυχολογία. Seria um absurdo comparar sob um mesmo princípio de rigor a noção moderna de “psicologia” com aquela instância antiga do “homem natural”. Todo o interesse daquelas passagens de Paulo reside em, ultrapassando os níveis individuais do homem (“naturais”/”psicológicos” ou “espirituais”), ter acesso por meio eclesial ao “Espírito de Deus”, à versão cristã do Ruach Hakodesh. Não há nenhum projeto de estudo científico da “alma humana”, e mesmo que se transponha o absurdo, pressupor alguma “psicologia” do nous ou do pneuma significaria inverter a importância dos termos paulinos e inventar algo que Paulo não pretendeu.
Em segundo lugar, para haver um estudo da alma tal como o da psicologia moderna, para pressupor qualquer possibilidade de uma “psicologia” circular no legado daquelas noções paulinas, seria preciso algo mais. Veja-se por exemplo a parte inicial do título de um dos primeiros livros onde a própria palavra “psicologia” aparece pela primeira vez, sob a autoria deRudolph Goclenius (caso não se considere Marko Marulic e outros) no fim do século XVI: “ψυχολογία: hoc est, De hominis perfectione, anima et in primus ortu hujus” (Psichologia: isto é, sobre a perfeição do homem, sobre a alma e, principalmente, sobre a sua origem). Cabe notar: Goclenius vincula Ψυχολογια com “perfeição do homem”. Nada tão distante da noção paulina de “homem natural” (ψυχικος δε ανθρωπος)… Comparando com as passagens de Paulo, isso significa que o aparecimento do termo “psicologia” exige uma aproximação entre termos não aproximados no Novo Testamento. Em Paulo, qualquer “perfeição” do homem está naquilo que ultrapassa a individualidade “natural” em direção ao “Espírito” por via da “Igreja”, não na noção de “psiquê”. Já em Goclenius a “perfeição humana” se problematiza precisamente na “psiquê” (por via provável do par latino anima/animus), e por isso o termo “psicologia” parece autorizado (muito embora autores como Jean Starobinski dizem que o termo é relativamente secundário, forjado para conformar em tratados da época o estudo da alma com a nascente “fisiologia”). Para haver “psicologia” é preciso aparecer certo interesse – historicamente datado – no qual noções como a de ψυχική e νους se aproximam ou se relacionam com qualidades diferentes das antigas. Forçar essa aproximação naquelas passagens de Paulo e pressupor ali uma Psicologia em sentido moderno – ou atravessar a psicologia moderna como se o fundamento dela ou seu “uso” precisasse de um fundamento paulino – não passa de ilusão retrospectiva.
Em terceiro lugar, considerando a passagem de Paulo, uma Psicologia ou “estudo da alma” nunca se situaria no nível do que ele chama de “psicológico” ou “natural” (ψυχικὸς δὲ ἄνθρωπος). Simplesmente porque este nível se compara ao do homem relacionado com as coisas meramente naturais, mundanas, no nível da opinião, dos valores correntes e dos afazeres cotidianos, portanto não no uso da inteligência em sentido eclesiástico ou supra-individual. Se a psicologia estuda a individualidade humana, o fundamento da chamada “ciência” psicológica não residiria no mesmo nível dessa individualidade antiga, simplesmente porque para o antigo a individualidade não constitui qualquer interesse “científico” (caso contrário a “psicologia” não passaria também de um apanhado de opiniões).
E mais, retornando à psicologia moderna: se alguém se arroga o título de “psicólogo”, por definição a psicologia mesma se pretende ciência e portanto independente do nível das “impressões”, “testemunhos” ou julgamentos individuais. Como então pressupor um “psicólogo” que considera a própria psicologia errônea ou insuficiente (coisa do mero “homem natural”) e mesmo assim pretende fazer os outros acreditarem em seu juízo de psicólogo? O apelo a uma autoridade “religiosa” regulando a prática psicológica apenas demonstra, nesse sentido, o desconhecimento de religião e de psicologia. Coloca-se arbitrariamente no mesmo lugar dois universos de questões essencialmente diferentes, cujo único princípio de encontro é a própria arbitrariedade.

Psicologia e Religião, dois universos diferentes

O leitor atento sabe o quanto essas questões retiradas de Paulo ultrapassam o próprio debate paulino, especialmente se referida aos gregos e latinos vindouros. Mas não é inútil contrapor esse debate sobre a noção de “comunidade”, retirado de certo ensinamento (talvez com ressonâncias gregas) do cristianismo primitivo, com as posturas mencionadas acima de certo “cristianismo” contemporâneo. A passagem mesma de Paulo mostra o anátema: varrer para debaixo do tapete o contexto teológico dos escritos libera caminho para verdadeiros mal entendidos, centrados em imposições arbitrárias e particulares doravante mascaradas de “verdadeiras”. Interpretações desavisadas de traduções da Bíblia sem notas de rodapé seriam apenas um exemplo inicial.
Dado o ensinamento paulino, pode-se também retornar às pretensões instrumentais da “psicologia evangélica” (ou demais termos compostos cujo mote é a mistura). Para alguém que pretenda seguir São Paulo, uma interpretação “particular” (ou conjunto delas) não autoriza que se utilize instrumentalmente a psicologia para propósitos evangélicos. Se opero nesse nível, vários outros exemplos de uso “instrumental” psicológico foram incrivelmente parciais e sectários: não encontramos também casos de pretenso uso “instrumental” em exemplos como a Alemanha nazista, o stalinismo e a tecnocracia? Quando se fala de “Igreja”, é preciso um corpo doutrinal que ampare o emprego “instrumental” de uma psicologia por pastores. Isto é, para ser legítima aos olhos de um religioso, uma “psicologia evangélica”, “religiosa” etc. deveria ser prevista no próprio corpo dogmático ou doutrinal da religião em questão (embora isso obviamente não tenha muito sentido). Transpondo o ensinamento paulino para seus crentes atuais, seria preciso um plano comum que autorize discutir racionalmente em que sentido seria possível – e mesmo necessário cogitar – tal mistura entre psicologia e evangelismo. Apenas a partir daí se poderia, com um debate doutrinal entre inteligências, tirar trivial conclusão: a psicologia não é um simples instrumento ao lado da retórica e da oratória. Simplesmente porque em si mesma não é isso (propor tal emprego é desconhece-la). Dizer “eu a emprego para glorificação do Evangelho”, como enunciam alguns, é meramente enunciar um juízo idiōtou, impor uma pretensão particular ou sectária como juízo universal.
Para continuar considerando a impossibilidade de tal mistura entre psicologia e religião, basta retornar ao exemplo dos médicos. Existem muitos evangélicos médicos. Em outras áreas, atualmente muitos buscam reabilitar correntes “criacionistas” no ensino escolar, alternativas ao legado evolucionista. Mas curiosamente, se existem muitos evangélicos médicos, ninguém ousou povoar os conceitos médicos – muitos deles, tributários de descobertas da biologia evolucionista – com alguma interpretação bíblica. Não se ousou, muito menos, acusar a medicina de disciplina “enganadora” ou “demoníaca” por muitos de seus postulados evolucionistas se oporem diametralmente ao criacionismo. Com ou sem evangélicos, a medicina continua com muitos “conceitos” e “práticas” afins ou derivadas do debate evolucionista. Pode-se muito bem ser médico e evangélico. O número de evangélicos médicos até hoje não forçou a existência de nenhuma “medicina evangélica”. E ninguém deixou por isso de ir ao médico devido a suas práticas e conceitos “naturais”.
Dado o exemplo da medicina, a que se devem tantas confusões em psicologia? Novamente o exemplo daqueles psicólogos evangélicos que prometem a “cura” de homossexuais pode servir. Manifestamente contrários a todas as correntes psicológicas e às instituições de saúde, esses psicólogos sustentam que tal “cura”, amparada em “movimentos de apoio”, é uma “evidência”. Os argumentos sobre essa dita evidência são curiosos: sustenta-se como evidência ou eficácia comprovada o simples testemunho de alguns fiéis que se dizem “curados”, e portanto as entidades científicas de psicologia estariam erradas porque reprovariam essas práticas não por sua evidência ou eficácia (“comprovada” por “testemunho”), mas por uma espécie de pressão político-institucional.
A chamada “cura” é geralmente atribuída a um duplo papel: de um lado, um indivíduo que se diz “curado” testemunha sobre o fato de que seus desejos ou condutas sexuais, depois de certo “tratamento” ou “orientação”, deixam de ser tão “intensos”, ou mesmo deixaram “completamente” de se referir ao mesmo sexo (seja qual for o teor íntimo que, para além do relato, verdadeiramente decorra daí); de outro lado, “aconselhadores” sustentam a curiosa (e ambígua) noção de que a sexualidade é ao mesmo tempo divina (pois Deus “criou o homem e a mulher”) e biológica (pois “homem” e “mulher” nasceram como tais e então só pode ser assim).De um lado, toda a carga negativa dos preconceitos sociais contra determinado tipo de sexualidade, somada à aplicação desses preconceitos contra si próprio e o sofrimento decorrente, passam a ser admitidos por quem será chamado de “doente” não como algo de fora que deve ser problematizado, mas como uma situação interior a ser extirpada como um corpo estranho. De outro lado os “aconselhadores” reduzem a sexualidade ao sexo: o corpo deixa de ser uma fonte na qual o prazer pode derivar nas mais diversas atividades sociais (dentre elas as ditas estritamente sexuais), para o próprio prazer ser negado ou determinado pela pura identificação visível do sexo biológico. Dados amplamente admitidos na comunidade científica, como por exemplo o de que a sexualidade é plástica e um indivíduo pode variar de preferência sexual durante a vida (ou igualmente manter uma preferência única, seja qual for, mas igualmente plástica e multifacetada), são simplesmente descartados por um duplo preconceito: imagina-se que a única orientação “natural” é a heterossexual de um lado, e de outro imagina-se que os psicólogos pregariam no fundo que não pode haver “reorientação” sexual alguma, como se o dito “doente” não tivesse escolha (daí o dito tão errôneo quanto frequente – às vezes beirando a má-fé – de que os psicólogos “se recusam” a fazer atendimentos, e portanto a pressão seria institucional). Nesse jogo, tem-se bem a dimensão da fabricação de uma “doença”: para a “cura” ser possível, é preciso portanto que o dito “doente” internalize e individualize o preconceito e o sofrimento psíquico decorrente, e os “aconselhadores” preencham essa individualização mistificada – esse estigma sofrido – com a falsa justificação de uma “doença” (que não passa de um tema arbitrário, definido por quem disse que aquilo era “doença”). O indivíduo é levado a crer que o preconceito e culpa sofridos não vêm de fora, mas seriam condição interior, condição essa que seria “doente”. Apenas depois desses passos é que o “testemunho” – sempre mais ou menos sincero, mas infelizmente mal informado – se torna possível.
Mas sobre o valor de um ou vários testemunhos, estados particulares de espírito ou juízos privados motivados por tais ou quais circunstâncias (uma leitura não analítica de certas edições da Bíblia, por exemplo), São Paulo comentou acima muito bem. Outras religiões também se apoiam em testemunhos ou narrativas difundidas. Dentre tantos testemunhos contraditórios, em qual acreditar? Se o mórmon e o evangélico apoiam suas crenças em “testemunhos”, é difícil dizer pelo simples testemunho quem está “certo” ou “errado” em detrimento do outro. Se vale o testemunho, por que não acreditar no de John Smith? Num mundo que conquistou o princípio de liberdade religiosa a duras penas, o testemunho do mórmon tem tanta validade no campo da fé quanto todos os outros. Mas no campo da ciência (pois o tema em questão é o da mistura entre religião e ciência), quando alguém questiona a “eficácia” da “cura” apoiada no testemunho, evitando assim o argumento evangélico de que a proibição da “terapia reparativa” seria meramente “institucional”, os apoiadores recuam ora a valores morais, ora a uma suposta “conspiração gay” que, por trás e dominando a psicologia (novamente a errônea crença da psicologia-instrumento: do religioso, da “conspiração gay”…), minaria iniciativas moralmente positivas. E assim os critérios legitimadores da dita “terapia reparativa” mudam ao sabor do vento: julgamento moral, apoio no “testemunho”, citação de estudos já refutados pelacomunidade científica, ignorância de estudos comprovados, desqualificação moral dos adversários, ataques ad hominem e assim por diante. Vale lembrar do que escrevia Paulo: oscilar o juízo e confundir abordagens também é “idiōtou“, também é trazer à luz do dia certos juízos particulares não avalizados nem por um corpo doutrinário, nem por séries de pesquisas, nem pela boa fé no uso da inteligência alheia.
Um evangélico pode ser evangélico e médico. Mas algumas “psicologias evangélicas” julgam-se até mesmo certas de misturar religião e ciência, em detrimento de um universo de questões já comumente debatidas, comprovadas, expostas ao julgamento coletivo, encaradas por elas sem muita atenção como “erradas“. Critério de certeza, como se vê, definido pela simples importação irrefletida de conceitos e práticas no seio de alguma doutrina pastoral aparentemente delimitada sem rigor (pois precisa recorrer a uma ciência), às vezes apoiada numa noção ingênua de “eficácia” amparada em simples testemunhos, e por outras vezes garantida pelo mero julgamento moral. “Psicologia evangélica” confusamente delimitada por mostrar algo trivial:qual debate teológico exigiu a importação de uma prática considerada científica e sua transformação em prática de fins religiosos? Por que se considera legítima essa interferência religiosa em conceitos e práticas psicológicos, mas não em outros conceitos e práticas contrários à religião, como os médicos? Que critérios definem tal prática no seio doutrinal ou dogmático, a partir de um debate verdadeiramente teológico (e não qualificações a partir de leituras particulares)? Mesmo que se “queira” ou se “testemunhe” ser para algum benefício da pregação, admite-se apenas o lugar idiōtou. Este nível, já dizia a ressonância helênica de Paulo, pode trazer os estados de espírito mais entusiásticos. Só “não traz fruto algum”.
Em âmbito teórico e prático, existem várias relações entre psicologia e religião. O famoso psicólogo Carl Gustav Jung, por exemplo, analisava todas as manifestações humanas – as religiosas em destaque – sob a noção de “arquétipo”: as religiões, tradições e cultos do homem durante toda a história fariam parte de uma espécie de conjunto de possibilidades humanas inatas, podendo ou não se desenvolver numa cultura. Por exemplo, religiões monoteístas e politeístas, com suas diversas manifestações, seriam realizações dessas possibilidades inatas. Narrativas como as de Noé e Jó se encontrariam em mais de uma cultura. O papel de Deus em algumas culturas é dominador e em outras bem-feitor, isso desconsiderando culturas politeístas etc. Cada “papel” da figura religiosa significaria uma espécie de virtualidade desenvolvida no homem em uma dada cultura.
Algo não muito distante (pelo menos nesse contexto) ocorre com Sigmund Freud. Quando o psicanalista austríaco analisava religiões e/ou o que se chamava no século XIX de “sociedades primitivas”, o resultado é parecido: uma religião expressa, como todos os grupamentos humanos, certas características psicológicas do homem, difundidas entre seus integrantes.
Os breves exemplos de Freud e Jung servem para mostrar uma ideia trivial: aqui, existe uma relação entre psicologia e religião; mas como ela se estabelece por pesquisadores no âmbito de um debate com pretensões científicas, a psicologia não se submete a fatores religiosos. Menos ainda considerando aquele caráter “instrumental”: dados os exemplos acima, como se poderia admitir certas escolhas, certos modos particulares de vida como verdadeiros em detrimento de outros? “Utilizar” uma prática psicológica em prol de um grupamento humano delimitado com suas escolhas particulares (uma religião ou um Partido, por exemplo) significa deixar de lado o caráter de um espaço comum de discussão entre os homens (todos os homens) e prescrever comportamentos e modos de vida segundo aquelas escolhas prévias. Tipo de iniciativa repleta de resultados nefastos na História.
O psicólogo não é um agente pastoral disfarçado. A religião, por sua vez, torna-se objeto de análise psicológica. Note-se que tanto o papel do religioso quanto o do cientista permanecem resguardados. O psicólogo segue com sua psicologia e o religioso com sua religião. Esse tipo de posição – resguardar a ciência e respeitar as crenças – é, pelo que consta, a posição correta tanto do cientista quanto do religioso. Sem contar que mostra clareza sobre as diferenças entre psicologia e religião, sem desrespeitar outros credos ou modos de vida (religiosos ou não).
O uso inapropriado de psicologia por algumas correntes religiosas aponta, indiretamente, à dificuldade de delimitação e auto-compreensão dessas mesmas correntes religiosas. Isso não quer dizer que a Bíblia não possa conter edições pastorais, traduções simples e debates mais delimitados. Pelo contrário, se todo o cristianismo desde os primeiros séculos perdurou a partir da discussão sobre as Escrituras, qualquer debate religioso estimula informar o fiel, das edições pastorais aos dicionários bíblicos, montando um plano de discussão doutrinária. Isso não significa simplesmente dizer que a Bíblia tem apenas uma interpretação possível, seja qual for. Pelo contrário, trata-se de algo mais próximo à noção de “Igreja” (ἐκκλησία) tal como na passagem paulina acima: “Mas numa assembléia (ἐκκλησία), para instruir os outros, prefiro dizer cinco palavras inteligíveis do que pronunciar dez mil misteriosas” (1 Cor 14,19).
Disso tudo retornam as perguntas acima: seria Jesus o “maior psicólogo que já existiu”? Isso depende do postulado que aceitamos. Caso aceitemos que Jesus se resumia a curar doentes mentais; se havia na época um problema médico exigindo a presença de psicólogos para analisar conceitos de “doença mental”; e caso os psicólogos de hoje em dia nada mais façam do que uma religião mal feita, então poderíamos dizer que Jesus era o “maior psicólogo”. Mas estudo teológico rigoroso algum aceitaria tais premissas. Sem contar a infinidade de termos da Bíbliaque expressam tanto a questão da mente quanto da loucura, irredutíveis às nossas categorias:pneumanousruachhalalshagha`mania… Quem pressupõe um Jesus preocupado com doenças mentais deveria prová-lo, mostrando isso por uma análise teológica rigorosa: recorrendo aos originais, separando os dados históricos dos termos teológicos, relacionando cada termo com as épocas e assim por diante. Mas ninguém com conhecimento de Bíblia se interessaria em provar tal frase. É muito mais coerente optar pela ideia de que Ele estava lá para anunciar a chamada Boa Nova, do que para montar um consultório…

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