quinta-feira, 9 de maio de 2013

NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES: MITOS E VERDADES












in Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(72): 89-102, jun. 2007.

Embora todo mundo acredite saber o que é uma família, é curioso constatar que por mais vital, essencial e aparentemente universal que a instituição família possa ser, não existe para ela, como é também o caso do casamento, uma definição rigorosa.
Françoise Héritier

Somos de tal forma impregnados pelas associações sintagmáticas que utilizamos para decompor o mundo e, em seguida, recompô-lo que, muitas vezes, o novo é sentido como uma ameaça, pois nos obriga a reavaliar as representações que confortavam nossas angústias. É com dificuldade que abrimos mão de valores e teorias que nos têm sido tão caras para ler o real. Ademais, qualquer mudança requer um trabalho de luto no qual antigas posições libidinais são abandonadas em prol de novos investimentos. E nunca abandonamos de bom grado um modo de satisfação pulsional, ainda que um outro já se nos acene (Freud, 1917).
A necessidade de certezas e de imutabilidade pode ser tão forte, que só nos damos conta que nossas verdades não passam de construções historicamente datadas quando elas são questionadas. Um dos exemplos mais pungentes é o período da adolescência quando o jovem constrói sua própria maneira de ler o mundo. Muitas vezes, suas verdades acham-se em completa oposição as de seus pais, o que pode gerar uma crise entre eles. Para alguns, aceitar a nova leitura de mundo trazido pelo jovem pode ser insuportável, pois os obriga a repensar, ou mesmo abandonar, todo aquilo que até então era dito como “natural” e “imutável” e que serviam de referência para se locomoverem no simbólico. Evidencia-se, assim, o caráter imaginário de toda verdade, provocando o retorno dos eternos questionamentos: quem somos, de onde viemos, para onde vamos, o que nos constitui como sujeitos…
É por isso que não acredito, como defendo em um artigo anterior (Ceccarelli, 2006), que exista na atualidade uma crise sem precedentes. A História nos mostra que a humanidade está sempre em crise: a luta, nos primeiros séculos de nossa era para a implantação da ideologia cristã contra a pagã; as transformações do mundo estanque do feudalismo pelas idéias liberais que, paulatinamente, foram sendo introduzidas pela revolução burguesa; (na Idade Média, é importante lembrar, quem ousasse questionar a participação de tudo que é vivo – plantas, animais, seres humanos – na cadeia dos seres, corria o risco de ter a língua arrancada, o corpo torturado, queimado para que a ordem natural e imutável fosse preservada: a que serviram os Tribunais da Inquisição?); o capitalismo incipiente que fez do sujeito não apenas produtor como no feudalismo mas, também e sobretudo, consumidor; as mudanças trazidas pelo Renascimento; as conseqüências da Revolução Industrial no século XVIII; as duas Grandes Guerras e outras tantas.
Tudo isso levou à mudanças sócio-político-econômicas que, apoiadas nos movimentos feministas, acirrou o debate, iniciado no século XIX, sobre o lugar dos homens e o das mulheres nas relações sociais, no trabalho, na reprodução, nas questões demográficas, e assim por diante. Umas das conseqüências deste reposicionamento social foi a emergência de um discurso, sem dúvida revolucionário, a respeito do sexual cujo um dos expoente é a psicanálise: os Três Ensaios, considerado até hoje por certos segmentos sociais como subversivo, pois subverte a ordem vigente denunciando que não há nada de natural na sexualidade humana, constitui a primeira formulação sistemática sobre o tema.
Mais perto, a chamada “revolução sexual” dos anos sessenta, justamente com o aparecimento da pílula anticoncepcional, foram recebidas com apreensão, pois prenunciavam o fim da família, dos costumes e da moral. Trabalhando fora, e levando consigo a pílula, a mulher não resistiria à tentação de relações extra-conjugais. (Não podemos deixar de ver, nesta posições, toda a força do relato bíblico da Criação: mais uma vez, a mulher é culpada pela queda.)
O que se depreende de tudo isso, como dizíamos, é que a Humanidade está sempre em crise de referências simbólicas tendo, constantemente, que produzir o que chamo de “reorganizações coletivas” para responder à nova leitura do mundo.
Nesta perspectiva, nossa tendência a sentir as mudanças atuais como particularmente ameaçadoras deve-se à questões eminentemente narcísicas: sentimo-nos ameaçados atualmente, pois  vivemos hoje e não temos como avaliar a violência do passado. Além disso, toda mudança corre o risco de ser experimentada como um ataque a narcisismo. Defendemo-nos, psiquicamente, como o único recurso que possuímos: o mundo encantando, e para sempre perdido, de nossa infância. O passado sempre exerceu uma misteriosa atração. Cada vez que a realidade nos parece insuportável, recorremos às lembranças (encobridoras) do passado na esperança de reencontrarmos a Idade de Ouro: “o encantamento de [nossa] infância, que [nos] é apresentada por [nossa] memória não imparcial como uma época de ininterrupta felicidade”. (Freud, 1939, 89)
Resumindo: a atualidade, apoiada no imaginário cultural do momento sócio-histórico no qual estamos inseridos, nada mais faz que reproduzir, pela repetição do mesmo em copias variadas, efeitos ilusórios que através da clivagem de Eu (Ichspaltung) promovem a recusa (Verleugnung) do mal-estar (Unbehagen) inerente à cultura.
Pois bem, as novas configurações familiares, por trazerem o diferente, provocam estranhamento (o retorno do recalcado?) passando rapidamente a fazer parte das ameaças da atualidade.
Um dos grandes debates atuais gira em torno das chamadas novas organizações familiares - ou novas famíliasnovos arranjos familiares- enfim, sobre uma forma de ligação afetiva entre sujeitos onde existe, ou não, uma forma de exercício da parentalidade que foge aos padrões tradicionais: famílias monoparentais, homoparentais, adotivas, recompostas, concubinato, temporárias, produções independentes, e tantas outras. Temos, ainda, as mudanças que afetam diretamente as condições de procriação tais como: barriga de aluguel, embriões congelados,  procriação artificial com doador de esperma anônimo e, muito mais breve do que se pensa, a clonagem.
Seguramente, muitos destes modos de procriação e de filiação sempre existiram. Entretanto, eles eram marginais em relação aos padrões oficiais ou, simplesmente, ignorados como se não estivessem ocorrendo ou, ainda, tratados como uma fatalidade infeliz: crianças criadas por um só genitor – na grande maioria dos casos a mãe. Mas, a partir do momento que os protagonistas desses arranjos passaram a exigir seus direitos de cidadãos provocando visibilidade, começaram a surgir  questões que interpelam todo o tecido social. Da perspectiva psíquica algumas inquietações foram levantadas. Por exemplo: qual a diferença, se existe, em termos de investimento materno e/ou paterno no caso de uma gravidez tradicional e no caso de uma fecundação in vitro? A construção da psicossexualidade de uma  criança gerada desta forma difere da de uma criança adotada? E quando a geração se dá por um processo biotécnico de inseminação artificial com, em alguns casos, doador anônimo? O que significa para um homem acolher como filho uma criança gerada pelo esperma que não o seu? Os processes de subjetivação de uma criança criada por apenas um genitor (às vezes o outro é totalmente inexistente concreta ou psiquicamente), ou por um casal do mesmo sexo terá alguma particularidade? Ou seja, a falta de um dos genitores – monopaternidade – ou a presença de duas pessoas do mesmo sexo – homopaternidade – trará desdobramentos significativos nos processos identificatórios e, por conseguinte, na organização psíquica do sujeito?
Há os que alertam para as possíveis derrapagens psíquicas dessas configurações afetivas. Alguns temem que crianças criadas por um genitor apenas – o pai, ou mãe, biológicos não participam concretamente dos processos identificatórios da criança – ou aquelas expostas a dois sujeitos do mesmo sexo teriam seus processos psíquicos fundamentais comprometidos, o que impediria o acesso ao simbólico e à lei. Para outros, as novas formas de procriação e adoção traduzem uma onipotência narcísica que coloca a criança no lugar de objeto fetiche encobridor da castração. Outros ainda sustentam que a presença do par homem/mulher na travessia edipiana é um imperativo irredutível. Existe, também, o temor de que os novos arranjos familiares desintegrariam a família, trazendo conseqüências catastróficas para a organização social. Finalmente, deparamo-nos com posições religiosas que consideram as “filiações artificiais” como contra-natureza. Como não podemos negar os efeitos que as transformações contemporâneas produzem no universo simbólico da cultura, cabe-nos discutir as repercussões destas transformações no processo civilizatório.
As questões suscitadas pelas novas circulações afetivas submetem alguns elementos de nosso arsenal epistemológico à duras provas e colocam à psicanálise perguntas teórico-clínicas, com desdobramentos éticos incontornáveis, que nos levarão a separar aquilo que, de fato, revela do domínio da psicanálise, daquilo que pertence ao imaginário. Como psicanalistas e cidadãos, inseridos na cultura e atentos aos movimentos pulsionais, interessa-nos entender a dinâmica pulsional que sustenta as novas organizações familiares e não prescrever, como vemos com freqüência, como esta dinâmica deve ocorrer. A psicanálise não é guardiã de uma ordem simbólica suposta imutável, produtora de uma forma idealizada de subjetivação baseada nas normas vigentes e com o poder de deliberar sobre o normal e o patológico. Não nos cabe ditar os caminhos “normais” do desenvolvimento psíquico a partir dos modos tradicionais de filiação, pois os pressupostos da psicanálise – pulsões, desejos, complexo de Édipo, relações de objeto, identificações… – diferem dos da organização social. Valer-se da psicanálise para sustentar que apenas um modo de subjetivação é gerador de “saúde psíquica” corresponde a uma imaginarização do simbólico o que é, no mínimo, perverso.
Outra possibilidade é a de seguir o exemplo de vários psicanalistas, a começar pelo próprio Freud, e revisitar a teoria a partir daquilo que a clínica e as mudanças sociais nos interpelam, para verificar como alguns pressupostos psicanalíticos reagem aos arranjos contemporâneos.  Ou seja, tentar compreender, partindo das mudanças sociais – em sentido amplo – da atualidade, tanto os novos modos de circulação pulsional e de investimentos de objeto, quanto a (nova)  configuração simbólica dai  advinda.
Dando continuidade ao trabalho de reflexão teórico-clínico que tenho feito sobre os chamados Novos Arranjos Familiares(Ceccarelli, 2002, 2005, 2007), gostaria de refletir sobre os fundamentos que sustentam a noção de família lembrando que a transformação dos genitores em pais não é atrelada ao fato físico que dá lugar ao nascimento de uma criança. Ou seja, nascer da união de um homem com uma mulher não basta para ser filho, ou filha, daquele homem e daquela mulher. Ou ainda: colocar uma criança no mundo não transforma os genitores em pais. O nascimento (fato físico) tem que ser transformado em filiação (fato social e político), para que, inserida em uma organização simbólica (fato psíquico), a criança se constitua como sujeito.
Estes três fatos – físico, social e psíquico – guardam cada vez menos relações de dependência entre eles. As técnicas atuais de reprodução assistida desvincularam radicalmente as relações entre nascimento e genitores. O fato social, o reconhecimento de uma linhagem, de uma filiação, não tem, necessariamente, que ser exercido pelos genitores biológicos como é o caso, por exemplo, de uma criança adotiva. Quanto ao fato psíquico, a inserção do recém-nascido no simbólico, interessa-nos saber quais os elementos indispensáveis para que ele se realize. Se, no modelo de família tradicional, os agentes promotores do fato psíquico são um homem e uma mulher, os novos modelos de família sugerem que outros modos de produção de subjetividade são possíveis.
No modelo dito “tradicional”, homens e mulheres tinham lugares e funções bem definidas. O pai, que trabalhava fora, dirigia o carro e passeavas com a família nos finais de semana,  -cabeça da família - era o provedor que detinha um poder inquestionável. Os cuidados da casa – a comida, a faxina… – enfim, o necessário para que o bem-estar de todos fosse o melhor possível, eram garantidos pela rainha do lar. Neste arranjo, todos pareciam felizes e tudo concordava com uma ordem imutável. Unidos para sempre, “para o melhor e para o pior”, pelos laços sagrados do matrimônio, as desavenças do casal não constituíam ameaças à estabilidade do lar.  Até hoje este modelo é defendido por muitos como o único capaz de sustentar a ordem social e de produzir subjetivações sadias. Em um documento publicado em 31 de julho de 2004 - Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo - o atual Papa, quando era ainda o Cardeal Prefeito Ratzinger presidente da Congregação da Doutrina e da fé, novo nome dado ao antigo tribunal da Inquisição, defende esta posição. Ali, Ratzinger (Ratzinger, 2004) sustenta que as mulheres devem estar “presentes, ativamente e até com firmeza, na família, que é a sociedade primordial e, em certo sentido, soberana, porque é nesta que, em primeiro lugar, se plasma o rosto de um povo; é nesta onde os seus membros adquirem os ensinamentos fundamentais.” Quando isso não ocorre “é a sociedade no seu conjunto que sofre violência e se torna, por sua vez, geradora de múltiplas violências.”
Ao mesmo tempo, a História da Família (Burguière, Klapisch-Zuber, Segalen, Zonabend, (org.), 1986) nos informa da heterogeneidade dos arranjos familiares os quais, cada um dentro de seu próprio universo discursivo, atribui os lugares simbólicos de “pai” e “mãe” da mais variadas formas: “o parentesco não é uma invariante, mas, sim, um fenômeno histórico e contingente”(Aran, Corrêa, 2004, p. 332). Frente a grande diversidade dos modelos familiares, os antropólogos não se procuram mais classificar as sociedades em termos de civilização mas, antes, tentam evidenciar as invariáveis a partir das quais as diversidades culturais são criadas (Fine, 2002). A referência invariável é a aliança matrimonial cuja definição varia segundo as culturas.  Nestas, são inúmeros os arranjos que dissociam o sexo dos progenitores, de suas condições de pai e mãe, assim como a realidade biológica da concepção e da filiação (Cadoret, 1999), como aqueles compostos por filhos de uniões anteriores nos quais, sem guardar laços consangüíneos, todos se sentem em família.
Um exemplo, sem dúvida estranho à organização simbólica da cultura ocidental, acontece com os Bavendas na África do Sul. A mulher filha única suscita um problema de descendência, pois o sistema de parentesco desta sociedade é patrilienar. A solução encontrada é bastante peculiar: a mulher torna-se pai casando-se com outra mulher. Esta última terá filhos com os amantes oficialmente reconhecidos pelo grupo social. A “descendência” assim produzida, receberá o nome e a herança dos genitores da mulher-pai dando, desta forma, continuidade ao sistema patrilienar. A mulher-pai, por sua vez, também poderá tornar-se mãe e ter seus próprios filhos. Ocupando o lugar simbólico de pai, a mulher-pai mantém a organização social (Parseval, 2004).
Se os elementos que definem o sistema representativo que chamamos “família” variam segundo a sociedade, podemos concluir que o significante “família” é representando, como todo significante, por fatores conscientes e/ou inconscientes, que definem a maneira e engendram as categorias pelas quais o mundo social é organizado. Qualquer modelo de família é tributário da ordem social que o produz. Ordem geradora do discurso ideológico que apresenta a família não como uma construto social arbitrário e convencional mas, antes, com algo natural, por vezes sagrado, universal e imutável (Sousa Filho, 2003).
Nesta perspectiva, interrogar-se sobre família implica outra questão bem mais profunda que diz respeito aos fundamentos que sustentam a ordem social. Não é sem razão, já o dissemos, que as novas organizações familiares são sentidas como ameaças à estabilidade social, o que evidencia o seu caráter imaginário: se fosse fixa, nada a ameaçaria e não haveria mudanças. Dito de outra forma, as novas organizações familiares produzem um modo de circulação pulsional diferente daquele criado pelo modelo tradicional.
Foi a partir do séc. XVI e XVII que Estado começou a participar mais de perto na classificação e na designação das atividades dos indivíduos dentro da ordem política que ele queria manter Lenoir (2003). O discurso ideológico então produzido apresentava a ordem familiar instituída como algo natural, logo, inquestionável. Neste sentido pode-se dizer que a família é uma coisa “estádica”, ou seja, criada pelo Estado (Lenoir, 2003, p. 483), pois, em grande medida, é o Estado que controla a produção simbólica que determina a família. Através de critérios que ele mesmo estabelece, o Estado Moderno está sempre “fabricando” a família e produzindo dispositivos que garantam a sua estabilidade – regulamentações patrimoniais, de sucessão, de sobrenome – segundo uma moral rigorosa: demarcação entre filhos legítimos e naturais, o lugar da concubina, etc. Esse modelo de família, centrado no poder patriarcal, foi amplamente apoiado pela Igreja, pois entrava em ressonância com o modelo Cristão de família (Vainfas, 1992). Ainda hoje, a moral cristã defende, a sua maneira, estes valores – indissolubilidade do casamento, a monogamia, a fidelidade – posicionando-se contra tudo os ameaça: contracepção, aborto, uniões livres, o uso de preservativo, homopaternidade, e outras organizações familiares.
Vemos que a família, assim como o casamento, no ocidente nem sempre foram como são hoje, e as uniões de duas pessoas nem sempre teve o caráter sagrado como o é para o cristianismo: os primeiros séculos de nossa era foi marcado por intensas lutas polico-econômicas entre a moral cristã incipiente e as práticas ditas “pagãs”, de concubinato e divórcio, tão comuns no Mundo Antigo. A origem divina do matrimônio, entendida como a união de Jesus com a Igreja, baseia-se na interpretação agostiniana das Escrituras (Vainfas, 1992). Ao longo dos séculos, os valores da moral cristã transformaram-se nos ideais que sustentam o imaginário da cultura ocidental. Tais ideais, que juntamente com a autoridade paterna fazem parte do superego, derivam do mundo externo guardam as influências do passado e da tradição que, outrora, foram sentidas intensamente (Freud, 1924). Entende-se, por um outro caminho, por que as novas organizações familiares ameaçam a hegemonia do modelo de família tradicional provocando reações tão truculentas: o que está, no fundo, sendo ameaçado é a posição libidinal que sustenta a representação de família no imaginário judaico-cristão, ou seja, os ideais culturais. Os novos modelos de família, além das “ameaças” que provocam, não encontram (ainda) nenhuma representação (Vorstellung) pulsional no discurso social para respaldar-se.
Sabemos, no entanto, e para isso não foi necessário esperar pela psicanálise, que o modelo de família tradicional nunca sinônimo de “normalidade”. O argumento segundo o qual a presença do par homem/mulher é indispensável para a produção de “subjetividades sadias” não se sustenta. A prática clínica, sobretudo a infantil, é rica em exemplos onde o problema apresentado pela criança é um sintoma dos pais. E em situações onde poder-se-ia esperar um desfecho preocupante, como, por exemplo, em famílias nas quais um dos pais, senão os dois, parece não participar de forma significativa do universo psíquico da criança, esta não apresenta nenhum problema particularmente dramático. Isto significa que não existe uma forma de organização familiar ideal que, inequivocamente, garantiria um desenrolar mais sadio, ou mais patogênico, para a constituição do sujeito: do ponto de vista psíquico, as famílias são sempre construídas e os filhos sempre adotivos, pois são os laços afetivos que, como todo investimento que vão organizar o significante família. Não raro, a rivalidade entre os membros, o ódio entre os irmãos, o ressentimento para com os pais definem este significante. (É interessante lembrar que a primeira família da qual se tem notícia foi marcada pelo fratricídio, devido ao ciúme, levando ao “rompimento da fraternidade” Gn, 4, 8. Embora castigado de maneira que em nada deixa a desejar aos castigos infligidos pelo tirano da horda, é Caim quem dá continuidade à humanidade Gn, 4, 17). Além disso, não podemos nos esquecer que a maioria quase absoluta dos “desvios de conduta”: comportamentos anti-sociais, delinqüência, marginalidade, sociopatias, drogadicção, enfim, as mais diversas modalidades do sofrimento psíquico, foram engendrados no seio do modelo tradicional, composto por casais heterossexuais. No mínimo duas reflexões se impõem: o sexo de quem se ocupam da crianças não traz, a priori, nenhuma garantia; a heterossexualidade como produtora de “normalidade” é a idealização de uma posição libidinal. A questão que, de fato, revela da psicanálise pode ser formulada assim: o que permanece, o que há de fundamental, para que a subjetivação ocorra e isso independentemente do arranjo familiar que acolhe o sujeito no mundo? Como se darão a construção do mito individual e a produção da verdade singular do sujeito nos novos arranjos afetivos?
Para que haja inserção no simbólico – inserção esta que nunca é feita sem dor como atesta o Mal-estar na cultura - é necessário que alguém encarne o Outro. Este Outro – que Freud chama de pai, e Lacan de “função paterna” – é o agente promotor de alteridade. Sua função é a de propiciar o movimento psíquico, presente em toda cultura, que insere a criança na ordem simbólica própria ao humano ou, se preferimos, que vai socializá-la. Nos textos freudianos, esta função é atribuída pai da realidade. Entretanto, as mudança sócio-econômicas fez com que esta função venha sido exercida por outras pessoas, como vimos na antropologia, ou outras instâncias sociais. Nesta perspectiva, o que está em declínio é o sistema patriarcal: uma forma de organização social onde o agente promotor de alteridade, o agente castrador, é encarnado pelo pai. É este lugar, evidentemente imaginário, que centraliza o poder no pai dando continuidade ao Pater Potestas romano, que os novos arranjos familiares desconstroem. A antropologia nos informa que não existe um modo único de separação da célula narcísica mãe-filho (Parseval, 2004). Independente da forma de como ela se dá, o complexo de castração imporá à criança restrições para a constituição de sua psicossexualidade. O Édipo, por ser uma representação fantasmática sustentada por um relato mitológico, é, ao mesmo tempo, universal e singular. Universal, pois marca o que é próprio e o que diferencia o humano: a interdição do incesto, presente em toda e qualquer cultura que, via recalque, nos obriga a abandonar nossos primeiros objetos sexuais, “o que constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer época já experimentou” (FREUD, 1930, p. 124). Particular, pois o que determina a circulação dos afetos é a ordem simbólica da cultura que acolhe o recém-nascido. Ordem esta que define, também, as representações do masculino e do feminino. Cada cultura tem as mais diversas variações em torno do tema, pois a circulação pulsional que o complexo de Édipo suscita é tributária da ordem social que organiza os elementos desse complexo. Mas, a interdição sempre ocorre. O Édipo discutido por Freud reflete a dinâmica pulsional do modelo familiar de sua época na qual a figura detentora do falo – evidentemente imaginário – era o pai. Mas, outros textos de Freud (Freud, 1917 & 1920) sugerem que mais importante que os protagonistas da cena edípica, são os caminhos da pulsão e as escolhas de objeto que levam à construção do Eu.
Podemos dizer que antes do simbólico o recém-nascido é um organismo pulsional não atravessado pela linguagem, candidato potencial a constituir-se. Segundo minha hipótese, a inscrição do bebê na cultura não depende de um arranjo familiar particular mas, sim, de como, na posição do Outro, uma determinada organização familiar, qualquer que sejam os protagonistas, sustentará o bebê na travessia de duas “violências” incontornáveis, fundamentais e fundantes assegurando-lhe a “sobrevivência psíquica” (McDougall, 1997): a violência primária (Aulagnier, 1981)  e a violência simbólica (Bourdieu, 2002). Uma não é desvinculada da outra: a função de prótese (Aulagnier, 1981, p. 35) que a psique de quem acolhe a criança no mundo cumpre para preencher o vazio devido à prematuração psíquica do bebê (Hilflosigkeit), ou seja, a violência primária, guarda estreitas relações com a ordem simbólica na qual a criança será inserida, ou seja, com a violência simbólica. Responder à função de prótese da psique do Outro, dar representações às pulsões, é uma expressão da violência primaria. Renunciar ao gozo narcísico em favor dos valores culturalizados é uma expressão da violência simbólica. A “saúde psíquica” seria, então, a capacidade de suportar o sofrimento que estas duas violências impõem.
Para que isto aconteça são necessários laços afetivos que, mitigando a violência, garantam à criança um lugar no simbólico. Para Freud (Freud, 1930, p. 123),  isto só é possível graças a força de Eros:
O amor que fundou a família continua a operar na civilização, tanto em sua forma original, em que não renuncia à satisfação sexual direta, quanto em sua forma modificada, como afeição inibida em sua finalidade. Em cada uma delas, continua a realizar sua função de reunir consideráveis quantidades de pessoas, de um modo mais intensivo do que o que pode ser efetuado através do interesse pelo trabalho em comum.
Amor e Necessidade [Eros e Ananke] são “os pais da civilização humana” (Freud, 1930, p. 121). São as exigências de sobrevivência, que se manifestam como uma “compulsão para o trabalho” e pelo “poder do amor”, que deu origem à vida comunitária. Embora o amor objetal seja carregado de narcisismo – amamos para não sofrer – são as ligações de objeto que garantem o processo civilizatório. Graças ao poder do amor (Freud, 1930) mantemos os nossos investimentos libidinais e não destruímos o outro como, por exemplo, na perversão onde o outro é transformado em objeto. Não há acolhimento possível para a criança sem o equilíbrio das moções pulsionais ambivalentes presentes em toda e qualquer ligação objetal: amor ou ódio em excesso são igualmente destrutivos.
Se, como vimos, os sistemas simbólicos variam de uma cultura para outra, não é a proximidade genealógica, ou a consangüinidade, que determinaram a filiação. O denominador comum em todos os arranjos familiares – e aqui incluímos os novos arranjos – é o lugar o bebê ocupa no imaginário, e na circulação do desejo, de quem a acolhe no mundo.
Paulo Roberto Ceccarelli*
* Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio de Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da “Société de Psychanalyse Freudienne”, Paris, França; Professor Adjunto III no Departamento de Psicologia da PUC-MG (graduação e pós-graduação).

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