segunda-feira, 15 de abril de 2013

O QUE AS HOMOSSEXUALIDADES TÊM A DIZER À PSICANÁLISE (E AOS PSICANALISTAS)










Psicólogo, psicanalista, doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII. Pesquisador Associado à Université Paris 7 Denis-Diderot. Professor Adjunto III da PUC-MG.

É necessário não esquecer que a categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade constituiu-se no dia em que foi caracterizada – o famoso artigo de Westphal em 1870, sobre as “sensações sexuais contrárias”, pode servir de data natalícia – menos como um tipo de relações sexuais do que como uma certa qualidade da sensibilidade sexual, uma certa maneira de interverter, em si mesmo, o masculino e o feminino (Michel Foucault).

Introdução
Tendo trabalhado há anos com as dinâmicas psíquicas presentes nas diferentes manifestações da sexualidade, tive oportunidades de discutir o tema sobre vários aspectos (2). No que diz respeito à homossexualidade, fui, aos poucos, sendo levado a retornar à colocação clássica, para muitos tida como óbvia – o que a psicanálise tem a dizer sobre a homossexualidade? –, e reformulá-la de um modo inverso: o que as homossexualidades têm a dizer à psicanálise? Melhor ainda: o que elas têm a dizer aos psicanalistas? É importante insistir no plural –homossexualidades –, pois seria um grande equívoco acreditar que a chamada “orientação sexual” traduz em todos os casos a mesma dinâmica pulsional: a semelhança entre os discursos manifestos é só aparente, pois nada nos informa das diversidades dos caminhos pulsionais e das escolhas de objetos ali presentes. Nesse sentido, falar do “homossexual típico” é tão absurdo quanto falar do “heterossexual típico”, do “transexual típico”, do “travesti típico” e assim por diante: não existe nada “típico” na sexualidade humana.
Cada vez mais minha prática clínica tem mostrado que toda manifestação da sexualidade, mesmo as que possam parecer “desviantes”, traduz uma criação particular e única de cada sujeito, uma forma de “sobrevivência psíquica” (MCDOUGALL, 1997), resultado da singularidade do trajeto psicossexual de cada um. Como sabemos, o sexual constitui o enigma por excelência do ser humano, que se escalona em diferentes registros, buscando formas múltiplas e diversas de prazer, por vezes inconciliáveis: assim como Édipo frente à esfinge, cada um há de (tentar) decifrar o enigma de sua própria sexualidade.
Nesse sentido, podemos dizer que a sexualidade humana tem uma história constituída de vários elementos, dentre os quais: o sexo anatômico do recém-nascido, o lugar que ele ocupa no imaginário dos pais, na dinâmica libidinal e no narcisismo daquele(s)/a(s) que deu/deram vida psíquica ao bebê e as representações sociais do masculino e do feminino. Após o nascimento, terão início as vicissitudes identificatórias constituintes do Eu (Das Ich): um processo marcado por movimentos pulsionais que definirão a expressão da sexualidade adulta. A maneira como cada um vive a sua sexualidade – de forma reprimida, com prazer, com culpa, enfim, as singularidades e particularidades de cada um – é tributária dos movimentos identificatórios do início da vida.
Por falta de identidade, somos condenados à identificação! Eis o nosso “destino pulsional”, que, paradoxalmente, marca nossa liberdade e nossas limitações. Processo inconsciente marcado por uma dinâmica própria, ele constituiu o Eu através de uma série de identificações, resultado do encontro do Eu em formação com outros Eus significativos que marcaram a vida através de gerações (FREUD 1974b). Revoltar-se contra os caminhos identificatórios inerentes ao trabalho de cultura (Kulturarbeit), percebendo-os como hostis e ameaçadores, é revoltar-se contra o que nos constitui, o que pode levar à morte ontológica do Eu.
Parto do postulado de que os discursos sobre a sexualidade são invenções tributárias do momento sócio-histórico da cultura na qual emergem (CECCARELLI; COSTA SALLES, 2010). Tais discursos nunca refletem a verdade do sujeito, pois insistem em atrelar a pulsão a formas de satisfação socialmente valorizadas, sem levar em conta a alteridade interna – o Isso (Das es) –, que nos lembra sempre de que não somos senhores nem em nossa própria casa.
Os discursos sobre a sexualidade, construídos e modificados ao longo dos séculos segundo o sistema de valores da cultura e os interesses dominantes, participam, em intensidades variáveis, tanto da vida individual quanto da coletiva, além de contribuírem na constituição do superego.
Cada momento histórico apresentou um “saber” sobre o sexual, ora ditado pela Igreja, ora pelo Estado, ora pela ciência (FOUCAULT, 1984, 1985a, 1985b). Esse “saber” sustenta as inúmeras variações do discurso ideológico, que, atreladas ao poder e à ordem política, ditam o “normal” e o “patológico” em termos de desejos e práticas sexuais. As regras do uso da libido e dos prazeres do corpo, criações sócio-históricas que tentam dar conta das inúmeras vicissitudes da disposição perversa polimorfa da sexualidade humana, refletem as tentativas de capturar o sexual pelos dispositivos da sexualidade. Nessa perspectiva, confinar o sexual em uma única ordem discursiva equivaleria à tentativa de fixar a pulsão em uma única forma de satisfação.
Sendo os processos identificatórios tributários da organização simbólica da cultura na qual emergem, eles testemunham sua diversidade e mostram as infinitas formas de subjetivação capazes de “humanizar” o bebê humano. A partir de tal diversidade, desfaz-se a ideia de uma natureza intrínseca e reguladora e denuncia-se
um instrumento que por muito tempo serviu para obrigar-nos a aceitar as formas de sociabilidade tradicional marcadas pelo dispositivo de Gênero e pelo discurso de ordem simbólica entendido, ao mesmo tempo, como horizonte intransponível e como realização de uma humanidade manifesta (BERTINI, 2009, p. 143).
Ninguém nasce sexuado. As bases que sustentam as identificações constitutivas do Eu e as futuras escolhas de objeto são vicissitudes das relações do recém-nascido com o Outro: “no psiquismo não há nada pelo que o sujeito possa situar-se como ser de macho ou ser de fêmea [...] aquilo que se deve fazer, como homem ou mulher, o ser humano terá sempre que aprender, peça por peça, do Outro” (LACAN, 1973, p. 228-229).
Os suportes corporais das moções pulsionais são indefinidos e indeterminados, posto que são dependentes da multiplicidade das zonas erógenas e da polimorfia e heterogeneidade das pulsões parciais (FREUD, 1976a).
Por nascermos “sexualmente indiferenciados”, os caminhos pulsionais e as escolhas de objeto são pontos de chegada sem nenhuma predeterminação natural. Resta-nos apenas inquirir como, a partir da indiferenciação inicial (o modelo freudiano do sexo único), surgiu esse “artefato social que é o homem viril, ou uma mulher feminina” (BOURDIEU, 2002, p. 45).
Enfim, os discursos sobre a sexualidade, construções inseparáveis do jogo de poder dentro das quais são constituídos e, ao mesmo tempo, constituem-se, retratam como cada momento sócio-histórico tenta normatizar as práticas sexuais de acordo com os padrões da época, visando o controle da vida social e política, assim como os “prazeres da carne”.
No Iluminismo, as preocupações de ordem sexual começaram a ganhar cada vez mais espaço na sociedade, sobretudo no que dizia respeito à sexualidade legítima como local regular de procriação. Quando a população passou a ser vista como um bem do Estado, capaz de produzir riquezas, a necessidade de gerenciar a natalidade tornou-se objeto de discussão social. Paulatinamente, esboçaram-se as bases da concepção da sexualidade ainda presentes nos nossos dias: algo que marca o indivíduo em sua dimensão mais profunda; uma energia inerente ao humano, cuja satisfação poderia ser boa ou, ao contrário, errada, senão perversa. Aos poucos, os experts da medicina começaram a catalogar as manifestações da sexualidade, definindo as “perigosas” e as “sadias”, e a fundamentar a “sexualidade legítima”, baseada na biologização da diferença anatômica dos sexos (SARASIN, 2002/2003).
Essa nova leitura do sexual fez surgir novos delitos nos tratados de direito da época: relações sexuais sem o compromisso do matrimônio, gravidez secreta, que poderia levar ao aborto ou ao assassinato do recém-nascido, dentre outros. Como podemos concluir, foi a partir de uma perspectiva biopolítica que o dispositivo moderno da sexualidade se organizou.
Se no século XVIII a sexualidade passou a ocupar um lugar central para definir tanto o sujeito quanto a população, no século XIX
a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos seus mínimos detalhes; foi desencavada nas condutas; perseguida nos sonhos, suspeitada por trás das mínimas loucuras, seguida até os primeiros anos da infância; tornou-se a chave da individualidade: ao mesmo tempo, o que permite analisá-la e o que torna possível constituí-la (FOUCAULT, 1985a, p. 137).  
Se até meados do século XIX a masturbação era considerada o desvio por excelência em relação ao sexo “sadio”, as coisas começaram a mudar com a publicação, em 1857, por Ambroise Tardieu, professor de medicina legal na Universidade de Paris, do célebre Étude médico-légale sur les attentats aux mœurs (Estudo médico-legal sobre os atentados aos costumes). Esse clássico da época nos informa como a medicina e, sobretudo, a psiquiatria começaram a se interessar pela sexualidade não controlável presente na passagem ao ato de muitas formas de crimes. Ao lado desses excessos sexuais, que podiam chegar a crimes, mas que não eram necessariamente classificados como perversões, apareceu uma outra forma de delito: the nameless crime (o crime sem nome). A pederastia e a sodomia passaram, mais tarde, a ser chamadas de homossexualismo, e hoje de homossexualidade e coito anal. A “perversão” do Iluminismo – o onanismo – transformou-se na época da industrialização, graças às teorias de Tardieu acerca da homossexualidade (SARASIN, 2002/2003).
A segunda metade do século XIX foi marcada pelo aparecimento massivo das classificações e nomenclaturas: psiquiatras e sexólogos repertoriaram e etiquetaram minuciosamente as práticas sexuais que escapavam aos “padrões de normalidade” por eles mesmos criados. Traçou-se um “herbário dos prazeres” (FOUCAULT, 1985a, p. 63), fazendo surgir novas formas de perversões, que iam desde o tímido admirador de sapatos até os/as que exibiam o “sentimento contrário” – a homossexualidade –, passando pelos que tinham uma prática sexual excessiva ou extravagante. Em nome da moral, dos bons costumes e da higiene, foram discutidos, em uma perspectiva repressiva, os efeitos nocivos da sexualidade, ou seja, as chamadas práticas “contra a natureza”: os perigos da masturbação, as consequências do coito interrompido e de uma vida conjugal insatisfatória etc. Tudo isso levou ao surgimento de dispositivos para regular e controlar a sexualidade e até mesmo para curar suas manifestações “desviantes”: aquelas que não respondiam aos critérios estabelecidos e que ameaçavam a ordem vigente.
No famoso Psychopathia Sexualis, publicado em 1886, o visconde Richard Von Krafft-Ebing traçou um longo inventário das perversões humanas, rediscutiu os destinos da sexualidade e apresentou o desejo sexual (não no sentido que lhe dará Freud) como a energia fundamental e o motor de toda ação humana. Embora a dimensão da genitalidade ocupasse um lugar capital para que essa energia fosse devidamente avaliada, cabia aos psiquiatras e sexólogos destrinchá-la e domesticá-la a fim de garantir que ela fosse “boa”, útil, tanto para o sujeito quanto para a sociedade, diferenciando-a das disposições “perversas”, ou seja, não utilizáveis para a sociedade (3). O inovador no Psychopathia Sexualis para a época é o construto teórico de uma sexualidade que se manifesta como “normal”, por oposição a outra que, devido a taras hereditárias, tomou o caminho errado, perverteu-se.
Vemos aqui alguns dos postulados que foram ulteriormente trabalhados por Freud: a ideia de que a pulsão era responsável não apenas pela reprodução, mas igualmente pelo prazer, estando presente em todas as ações humanas; a teorização da pulsão como uma energia livre (Freud dirá: sem objeto predefinido), que pode procurar novas formas de prazer ou fixar-se em apenas uma modalidade de satisfação.
O objetivo dessa breve digressão histórica foi não apenas o de mostrar que os discursos sobre a sexualidade são construções sócio-históricas, mas, igualmente, de lembrar que foi no interior de um discurso médico-psiquiátrico historicamente datado que a psicanálise surgiu. Por mais revolucionárias que tenham sido as posições de Freud e de seus seguidores, a psicanálise não está isenta da perspectiva histórica que a precedeu, do sistema de valores – os ideais – da cultura ocidental, do momento socioeconômico atual e das mudanças contemporâneas. Assim, embora a dinâmica pulsional seja universal e irredutível, ela somente pode ser trabalhada dentro das singularidades pontuais que atravessam o fenômeno estudado.
Posto isso, cabe-nos reverenciar a genialidade de Freud, que, ao reler os esquemas explicativos vigentes, produz um autêntico ato analítico, ainda que “selvagem”, ao interpretar a religião, a opinião popular e a biologia, dizendo-lhes o quanto se enganam no que diz respeito à sexualidade humana: a sexualidade humana é, em si, perversa (FREUD, 1976a). As reações às descobertas freudianas, que nunca cessaram de acontecer, atestam a amplidão do retorno do recalcado por ele produzido, pois os discursos normativos são, em sua essência, tentativas de manter a repressão (Unterdrückung) sexual.
Freud centra o debate na pulsão e em sua finalidade (entre o objeto que a “satisfaz” e a dinâmica pulsional necessária para que a satisfação seja alcançada), abandonando a querela entre “pulsão natural versus pulsão perversa”. Se a pulsão não tem objeto fixo, nada existe que seja biologicamente programado: toda forma de atividade sexual resulta de um percurso pulsional e de uma história individual e única. Ou seja, a sexualidade em cada ser humano, devido à singularidade da história de cada um, terá um destino particular: não há uma única maneira que se proponha certa e universal para as manifestações da sexualidade. Tanto a atração heterossexual como a homossexual necessitam de explicação, posto que a base da “escolha” sexual repousa no fato de que todo objeto é bom, desde que sirva à satisfação pulsional. Há de se levar em conta, também, a sexualidade infantil, cuja natureza é perversa e polimorfa em uma dimensão essencialmente autoerótica: “apresenta-se-nos gora a conclusão de que há, na verdade, algo inato atrás das perversões, mas que é algo inato em todas as pessoas” (FREUD, 1976a, p. 174), daí a grande injustiça cometida pela civilização, ao “exigir de todos uma idêntica conduta sexual” (FREUD, 1976b, p. 197).
A mudança de paradigma trazida por Freud foi de peso. Ao desnaturalizar a sexualidade humana, Freud mostrou que todas as escolhas sexuais respondem a determinações inconscientes em busca da realização de desejo, sem que haja algo que possa ser chamado de sexualidade normal e muito menos natural. Com Freud, a sexualidade, inclusive a perversa, se humaniza, passando a constituir o núcleo mais profundo de cada um: não há sentido falar de sexo bom ou mau, de sexo sadio ou doente. Mais ainda: a sexualidade é dificilmente compatível com as exigências da civilização, constituindo-se, antes, uma fonte de mal-estar do que de felicidade (FREUD, 1974b).
Esses novos posicionamentos trazidos por Freud repercutiram na compreensão das homossexualidades (4). Como sabemos, a obra freudiana é repleta de trabalhos teórico-clínicos sobre o tema. Merecem destaque os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), sobretudo as notas de rodapé acrescentadas em 1920 e 1925; Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910); O caso de Schreber (1911); Sobre o narcisismo: uma introdução (1914); e Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920). A leitura desses textos mostra que Freud não atribui à homossexualidade uma origem única, o que justifica o uso da palavra no plural: homossexualidades.
Embora ambiguidades existam, os textos freudianos sugerem que a homossexualidade é uma posição libidinal como qualquer outra. Baseado na bissexualidade original como referência central, Freud sustenta sua argumentação a partir do complexo de Édipo em sua forma completa, a qual determina a chamada “escolha de objeto” (FREUD, 1976d).
Freud sustenta na prática suas opiniões. Em 1903, quando a homossexualidade era vista como um problema médico-jurídico, o jornal vienense Die Zeit pediu que Freud se pronunciasse sobre um escândalo envolvendo uma importante personalidade acusada de práticas homossexuais. A resposta de Freud foi sem ambiguidades:
a homossexualidade não é algo a ser tratado nos tribunais. [...] Eu tenho a firme convicção de que os homossexuais não devem ser tratados como doentes, pois uma tal orientação não é uma doença. Isto nos obrigaria a qualificar como doentes um grande números de pensadores que admiramos justamente em razão de sua saúde mental [...]. Os homossexuais não são pessoas doentes (FREUD, 1903 apudMENAHEN, 2003, p. 14).
 É conhecida a resposta de Freud à carta de Ernest Jones, de 1921, sobre o pedido de admissão à International Psychoanalytical Association (IPA) de um analista declaradamente homossexual. Jones, então presidente da IPA, foi contra a sua admissão. A resposta a Jones é assinada por Freud e Otto Rank:
Sua pergunta, estimado Ernest, sobre a possibilidade de filiação dos homossexuais à Sociedade, foi avaliada por nós e não concordamos com você. Com efeito, não podemos excluir estas pessoas sem outras razões suficientes [...] em tais casos, a decisão dependerá de uma minuciosa análise de outras qualidades do candidato (LEWIS, 1988, p. 33).
Temos, ainda, a famosa carta de Freud, datada de 1935, em resposta a uma mãe americana, que solicita a ele conselhos sobre seu filho homossexual: “A homossexualidade não é, certamente, nenhuma vantagem, mas não é nada de que se tenha de envergonhar; nenhum vício, nenhuma degradação, não pode ser classificada como doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual” (JONES, 1979, p. 739).
Cabe ainda lembrar que em muitos trabalhos sobre o tema os autores centram a questão da “escolha” homossexual no narcisismo: o/a homossexual teria ficado fixado em sua própria imagem, escolhendo alguém que é ele/a mesmo/a. No entanto, o texto freudiano é esclarecedor nesse sentido. A escolha de objeto, em conformidade com o tipo narcisista, ocorre da seguinte forma: a) pelo que a pessoa própria é; b) pelo que a pessoa foi; c) pelo que a pessoa gostaria de ser; d) por alguém que foi parte dela (da pessoa). A escolha de objeto, em conformidade com o tipo de ligação, assim se dá: a) a mulher que alimenta; b) o homem que protege (FREUD, 1974). Isso significa que os dois modos de escolha, que passam pelas identificações inconscientes dos protagonistas, não guardam qualquer relação com o sexo anatômico nos envolvidos na trama amorosa. Nessa perspectiva, um homem e uma mulher, assim como dois homens ou duas mulheres, podem se relacionar tanto em conformidade com o tipo narcisista quanto com o tipo objetal. Ou seja, a escolha em conformidade com o tipo narcisista não é prerrogativa das relações homoeróticas nem das heteroeróticas, além de prescindir do sexo anatômico dos sujeitos. O objeto a, objeto causa de desejo (LACAN, 1966, 2004), pode ser evocado nas duas modalidades de escolha de objeto. Entretanto, enquanto a captura objetal promove a circulação de Eros, a narcísica corre o risco de paralisá-la, o que pode configurá-la como uma perversão no sentido que lhe atribui Freud nos Três ensaios (FREUD, 1976a).  
Apesar das revolucionárias posições de Freud, de sua abertura de espírito e das rupturas por ele provocadas, a questão da “escolha” homossexual continua sendo um problema para os psicanalistas. A vasta produção bibliográfica sobre o tema é significativa, para não dizer sintomática.
Entre os psicanalistas encontramos desde os que veem a homossexualidade como um desvio, uma patologia, enfim, como algo que pode e deve ser tratado, até os mais próximos de Freud, que a entendem como uma posição libidinal ao mesmo título que a heterossexualidade. Nesse ponto, remeto o leitor ao meu trabalho anterior, no qual discorro sobre alguns aspectos das querelas sobre o tema (CECCARELLI, 2008).
Acredito que a diferença entre Freud e seus seguidores, com raras exceções, em relação à homossexualidade, pode ser explicada de uma maneira bastante simples: o que sempre interpelou Freud foi a sexualidade humana em si, posto que somente existe humano onde há sexualidade nas suas múltiplas forma de prazer: “novas perspectivas se nos oferecem ao considerarmos que no homem a pulsão sexual não serve originalmente aos propósitos da reprodução, mas à obtenção de determinados tipos de prazer” (FREUD, 1976b, p. 194). Para Freud, vimos que tanto a atração heterossexual quanto a homossexual necessitam de explicação. Foram alguns pós-freudianos que trabalharam com a premissa de que a heterossexualidade é a expressão normal da sexualidade e qualquer desvio dessa norma seria patológico.
Talvez Eribon (2011, 1) tenha certa razão quando diz:
Os psicanalistas têm um sério problema com a homossexualidade. Para eles, ela funciona como uma lâmina do teste de Rorschach: pronuncie a palavra “homossexualidade” e aguarde as reações… Elas nunca faltam, e traduzem seus inconscientes, e talvez até, do inconsciente da psicanálise.
As contribuições de Lacan no que diz respeito à homossexualidade merecem um tempo de reflexão. É sabido que ele recebia homossexuais em análise em uma época em que as sociedades psicanalíticas francesas, seguindo o modelo americano, impediam o acesso de homossexuais à formação analítica. Lacan os aceitava como membros da École Freudienne de Paris e nunca tentou transformá-los em heterossexuais. Para Lacan, a homossexualidade não era, como para Freud, uma orientação sexual. As posições de Lacan eram bem próximas das de Foucault e de Deleuze: esses pensadores entendiam a perversão como uma contestação radical à ordem social burguesa (ROUDINESCO, 2002). Posto haver sempre uma disposição perversa em toda forma de amor, Lacan (1975) entendia o homossexual de uma maneira bem próxima à de Proust: um personagem sublime e maldito; um “perverso” que subverte e perverte o discurso dominante da civilização. Porém, não podemos nos esquecer de que o personagem Lacan foi extremamente subversivo e corajoso ao desafiar a IPA. Assim, cabe perguntar se essa “abertura” de Lacan tinha mais a ver com toda essa subversão do que com posições pessoais.
A questão se complica ainda mais quando uma leitura atenta de algumas passagens de textos lacanianos revela posições, sem dúvida, homofóbicas. É o que nos mostra Eribon (2005) em seu livro Échapper à la Psychanalyse. Dentre os inúmeros exemplos citados por Eribon, encontramos: “Se a teoria analítica assimila ao Édipo uma função normativa, lembremos que nossa experiência nos ensina que não basta que ela leve o sujeito a uma escolha objetal, mas é necessário ainda que esta escolha de objeto seja heterossexual” (LACAN, 1994, p. 201).
Não passa despercebida a maneira debochada e desrespeitosa com a qual Lacan demonstra seu desprezo pelas “tias”, atitude jamais vista em Freud, ao comentarO Banquete de Platão no seminário A transferência. Tentando fazer rir seu público às custas dos homossexuais, permitindo-se gracinhas e alusões de mal gosto “próximas as de um cômico de cabaré ou a uma conversa de botequim” (ERIBON, 2011, 5), Lacan se refere aos participantes do Banquete como um “encontro de velhas tias, posto que não estavam mais no frescor da idade” (LACAN, 1991, p. 161).
A violência do discurso lacaniano sugere que a “carta roubada do lacanismo” (ERIBON, 2011) é a homofobia e a confirmação da dominação masculina, que leva à rejeição dos homossexuais  os quais, de acordo com ele, não são homens de verdade. “Se é verdade que a doutrina analítica nos indica [a homossexualidade] como o suporte do laço social da fraternidade entre os homens” (LACAN, 1991, p. 42), ela não deve ser confundida com a homossexualidade do tempo de Platão, que, como na atualidade, continua sendo uma perversão: “Que não me venham dizer, sob o pretexto que se tratava de uma perversão recebida, aprovada e mesmo festejada, que aquilo não era uma perversão. A homossexualidade não era nada a mais do que ela realmente é: uma perversão” (LACAN, 1991, p. 43).
Há de se deplorar que o “retorno a Freud”, apregoado por Lacan, tenha negligenciado a dimensão de respeito às pessoas e às suas particularidades. Ademais, é bem possível que sua homofobia de fundo tenha comprometido sua teorização. Com efeito, fica difícil imaginar que Lacan
tenha elaborado uma análise rigorosa e científica da homossexualidade, quando se percebe o quanto seu discurso é marcado por aquilo que Eve Kosofsky Sedgwick chamou de “privilégio epistemológico”: usar e abusar do poder cultural e social do qual os heterossexuais se beneficiam e da legitimidade discursiva que lhes é atribuída, quando se veem no direito de dar um sentido à homossexualidade e ao que os homossexuais falam sobre si mesmos. Em Lacan, somos levados ao nível mais grotesco do preconceito (ERIBON, 2011,5).
De modo geral, Eribon deplora a que ponto a psicanálise de orientação lacaniana se dá, objetivando
assegurar o bom funcionamento da norma e a perpetuação da normalidade psíquica e social, e que o Édipo seja o operador desta função normatizante, ou seja, que a finalidade desta construção ideológica e política seja, simultaneamente, a de instituir e de legitimar a conformidade da escolha de objeto sexual à norma heterossexual (ERIBON, 2005, 21).
Mais perto de nós temos o trabalho de Maya (2007), que, a partir de análises das publicações psicanalíticas sobre a homossexualidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), mostra-nos a falta de consenso entre os autores sobre o tema: alguns entendem a homossexualidade como um “comportamento perverso”; outros como “perversão” ou “desvio”; e outros ainda como um “problema na identidade de gênero ou na identificação”, uma “defesa contra a ansiedade paranoide e a paranoia”. No que diz respeito à inserção da homossexualidade no social, alguns veem esse movimento como uma “defesa contra a angústia”, uma “institucionalização do desvio evolutivo da libido”, e alertam contra o perigo da “extinção da família”. Nos artigos pesquisados por Maya, em apenas três, não encontramos “por parte desses autores uma preocupação em formular uma noção de homossexualidade” (MAYA, 2007, p. 86).
Foi o psicanalista norte-americano Stoller (1985) quem melhor chamou a atenção para a inexistência de uma formulação consistente sobre a homossexualidade em psicanálise. Após denunciar a falta de acordo entre os psicanalistas sobre a questão, Stoller mostrou-nos que inúmeros trabalhos teórico-clínicos sobre o tema carecem de observações clínicas e de pesquisas convincentes. Segundo Stoller, a despeito da retórica e dos argumentos carregados de referência à autoridade, os trabalhos sobre a homossexualidade tropeçam no mesmo ponto: não conseguem reunir elementos que sustentem uma especificidade da homossexualidade em relação às outras soluções (5) psicossexuais e, menos ainda, que mostrem que a homossexualidade é uma patologia, um desvio.
Retomando nossa questão de uma forma analítica, cabe-nos perguntar sobre o retorno do recalcado, que se manifesta na insistência em patologizar a homossexualidade e/ou tratá-la como um sintoma.
Acredito que as posições paradoxais geradoras de insolúveis impasses presentes em toda discussão psicanalítica sobre a homossexualidade resultam de um conflito interno: de um lado, a teorização freudiana segundo a qual a pulsão não possui objeto de satisfação predeterminado e, de outro, a ordem simbólica ocidental, atrelada ao imaginário cultural, que insiste em fixar a pulsão em objetos culturalmente valorizados (CECCARELLI, 2007a). Ou seja, são atribuídos a priori os objetos dos quais a pulsão deve utilizar-se para alcançar a satisfação. Ou ainda: por um lado, um conflito entre a posição freudiana segundo a qual à psicanálise cabe apenas entender os mecanismos psíquicos e as escolhas de objeto e, por outro, a tentativa de normatização presente até hoje em inúmeros discursos psicanalíticos, que insistem em compreender os mecanismos psíquicos a partir do parâmetro edípico clássico (6).
As incursões em outras áreas do conhecimento, tais como a antropologia, a história, a religião, a mitologia e a sociologia,  às quais o meu trabalho teórico-clínico tem conduzido, levaram-me a detectar a existência de um ponto comum que atravessa várias culturas, no que diz respeito à homossexualidade. Parece existir um certo incômodo em relação às ligações homoeróticas quando elas são exclusivas, em praticamente todas as culturas estudadas (GREGOR, 1987;  JECUPÉ, 1998; LOPES DA SILVA, 1992, 1995; MAUÊS, 1990; MINDLIN, 1996, 1998, 2001, 2006; PARRINDER, 1986; RIBEIRO, 1996). 
Embora minhas hipóteses necessitem de pesquisas mais aprofundadas para serem confirmadas, creio poder avançar em algumas observações. Parece que uma vez que o sujeito “cumpra” com a sua função no grupo, ou seja, uma vez que ele participe na manutenção da cadeia das gerações, ele terá dado a sua contribuição à comunidade. A partir daí, a forma como ele vive a sua sexualidade passa a ter outra significação dependendo, evidentemente, da cultura na qual ele está inserido. Esse fato parece acompanhar o homem desde a Antiguidade até a atualidade, passando por culturas africanas e indígenas do Brasil. O Ocidente não ficou imune a esse fato: um dos fatores sempre presentes nos infindáveis debates sobre a “normalidade” ou a “patologia” das homossexualidades tem sido, justamente, o fato de os homossexuais não procriarem, isto é, não darem a sua contribuição à cultura (7) (CECCARELLI; COSTA SALLES, 2010).
Talvez seja nessa perspectiva que se possam entender as reações que as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo receberam ao longo da história da humanidade, dentro das singularidades culturais: se o que hoje chamamos de “homossexualidade” (8) recebeu forte condenação entre os Hebreus, os Assírios e os Egípcios, era uma prática bem tolerada na China, na Pérsia, na Grécia e em Roma. Relatos antropológicos nos mostram que em algumas sociedades africanas, e entre os índios brasileiros, as reações frente a essa expressão da sexualidade sexual variam desde a aceitação até a rejeição absoluta. Com o cristianismo, a homossexualidade tornou-se, em períodos variáveis e em certos países, um crime passível de morte. Isso significa que a homossexualidade, ainda que do ponto de vista fenomenológico tenha sempre existido, é um dos inúmeros modos de se viver a afetividade; sendo esses modos historicamente construídos. As formas como o “amor” deve ocorrer – o que é permitido e o que é proibido e como se deve amar – são ditadas pelo sistema de valores da sociedade na qual o sujeito encontra-se inserido, sendo-lhe impostas sem questionamentos.
Merece ser citado o período de tolerância que ocorreu em Berlin no fim do séc. XIX. A cidade contava, então, com mais de 40 bares gays e várias publicações. Duas revistas, facilmente encontradas nas bancas de jornal, destacavam-se: Der Eigene e Sappho und SócratesDer Eigene, fundada pelo fotógrafo, poeta e anarquista Adolf Brand, em 1886, no mesmo ano em que Oscar Wilde foi preso na Inglaterra, foi o primeiro jornal no mundo dirigido ao público homossexual em defesa de seus direitos. Embora fosse uma iniciativa pioneira, nessa revista não havia lugar para as mulheres homossexuais, o que mostrava que a discriminação continuava (BORRILLO, 2001). Em 1897, foi criada na Alemanha a primeira organização pelos direitos dos homossexuais e em 1919 Hirschfeld fundou o Instituto para a Ciência sexual, que abrigou a maior biblioteca sobre a questão homossexual.
Contudo, com a subida do Nazismo, todo esse movimento de vanguarda foi eliminado. Em 6 de maio de 1933, o Instituto foi atacado e as 12000 obras e mais de 35000 fotos foram queimadas. Nesse mesmo ano, Hitler eliminou Röhm e outros líderes da SA. A homofobia crescia apoiada na ideia de que somente um povo que tivesse muitos filhos podia ser hegemônico, sendo a homossexualidade contrária à perpetuação da espécie. A partir de 1930, as tentativas médicas de “curar” a homossexualidade se multiplicaram, pois, como ariano, o homossexual deveria ser reabilitado para cumprir a função reprodutiva. Em 1934, registram-se 766 condenações de homossexuais. Com a criação do Escritório Central do Reichpara combater a homossexualidade, esse número subiu para 4000 e, em 1938, 8000 condenações. Em 1937, o jornal Das Schwarze Korps denunciou a existência de 2 milhões de homossexuais e defendeu que eles fossem exterminados. Contudo, desde 1936, eles já haviam sido enviados aos campos de concentração. Estima-se que 15000 homossexuais foram exterminados nesses campos e que mais de 500000 morreram em prisões, execuções sumárias, suicídios ou experimentos médicos (BORRILLO, 2001).
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Hoje em dia, pelo menos no Ocidente, parece ter ocorrido uma inversão: o estudo da homossexualidade, que no passado levava, como vimos, a infindáveis discussões psiquiátricas e psicanalíticas, a considerações médico-legais com punições e a tratamentos, enfim, cedeu lugar ao estudo sobre os motivos que levariam essa forma de sexualidade a ser considerada como desviante: o discurso sobre a sexualidade inverteu-se. Isso produziu uma mudança epistemológica, pois o interesse voltou-se para a análise da hostilidade – a homofobia – voltada para essa orientação sexual, e não mais para as origens e dinâmicas das homossexualidades. Houve, igualmente, uma mudança política, pois a questão homofóbica passou a merecer um interesse particular, com seus consequentes desdobramentos, sobretudo no que diz respeito aos direitos do cidadão. Tudo isso provocou uma certa ameaça e deu origens a questionamentos sobre a autoridade social da psicanálise (FASSIN, 2003). Esse fato vem acontecendo, por exemplo, no que diz respeito a alguns posicionamentos contra a homoparentalidade, os quais se apoiam na configuração edipiana cujo “triângulo” é o modelo da família burguesa da Viena de Freud. Entretanto, na medida em que estudos recentes e o cotidiano da vida mostram que os destinos psíquicos das crianças criadas no modelo homoparental não trazem nenhuma surpresa (GROSS, 2005), o saber psicanalítico vê-se questionado pela atualidade política e social. Não é mais possível, em Nome-do-Pai, preservar o culto milenar da figura paterna e ver, na sua ausência, a explicação para todos os males. Sabemos, ainda, que não foi necessário esperar pela psicanálise para constatar o quanto a família tradicional está longe de ser um modelo ideal (CECCARELLI, 2007b). As diferenças entre as crianças criadas por um casal do mesmo sexo e as outras é o que marca a diferença entre os seres humanos: a singularidade do trajeto identificatório e as escolhas de objeto. Cada modo de filiação – homopaternidade, adoção, monopaternidade, famílias tradicionais, famílias separadas, genitor(es) falecido(s) e toda outra forma que pudermos imaginar – terá a sua própria configuração de angústia. Porém, do ponto de vista da construção da psicossexualidade, não existem, a priori, razões para crer que um modelo seja mais ou menos patogênico.
Na atualidade, as sociedades psicanalíticas que impediam o acesso de homossexuais às suas fileiras foram obrigadas a rever suas posições, sob pena de serem acusadas de homofobia, e seus analistas de homofóbicos. Movimentos institucionais e sociais solidarizaram-se com as reivindicações dos homossexuais e passaram a posicionar-se, às vezes com procedimentos legais, contra aqueles/as que insistiam em tratá-los/as como doentes e a “reverter” a sua orientação sexual. A partir do momento em que os psicanalistas, mesmo os mais reticentes, passaram a ouvir a dinâmica psíquica homossexual sem teorizá-la como um desvio em relação à heterossexualidade e, talvez o mais importante, sem se sentirem ameaçados pelo retorno de moções pulsionais recalcadas, a “orientação” homossexual passou a ser entendida como uma vicissitude pulsional como outra qualquer, como uma sexualidade “normal”: não aquela que responde a normas socialmente estabelecidas e historicamente variáveis, mas aquela que, em sintonia com o mundo interno do sujeito, reapropria e reinventa a polimorfia da sexualidade infantil, em uma relação de objeto.
Observa-se que ocorreu, assim como atualmente existe no movimento que milita pela despatologização das identidades trans, uma mudança discursiva que mostra, se necessário ainda o fosse, que todo discurso sobre a sexualidade é sempre uma construção social, sem nenhuma ancoragem em uma suposta “natureza humana”. Esse discurso responde a interesses sociopolíticos e econômicos do momento histórico e da cultura na qual emerge, com toda a sua vinculação à moral e à norma.
Todo esse longo caminho trouxe-nos de volta a Freud, que, embora filho de uma Viena vitoriana, compreendeu que não há nada de específico na “escolha” homossexual, visto que os caminhos pulsionais resultam de uma série de acontecimentos que se interagem e se complementam, e não de algo natural, predeterminado. Em suas palavras,
Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até as disposições pulsionais (FREUD, 1976c, p. 211).
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Notas:
1 – Este texto faz parte do projeto de pesquisa Perdas Mitológicas e Sofrimento Psíquico, que conta com uma Bolsa de Produtividade do CNPq (processo n: 309881/2010-2).
2 – Minhas primeiras publicações sobre o tema datam dos anos 1990. Em 1995, defendi a tese de doutorado na Universidade de Paris VII: “A construção do sentimento de identidade sexual no transexual”. Desde então, o tema da sexualidade e suas manifestações tem ocupado um lugar importante em minhas pesquisas teórico-clínicas, dando lugar a inúmeras publicações. Disponível: .
3 – A questão de uma energia sexual não aproveitável pelo trabalho de cultura (Kulturarbeit) é discutida por Freud em muitos textos, em particular em seu texto de 1908 “Moral sexual civilizada em ‘doença nervosa moderna’”.
4 – Retomo, neste texto, alguns pontos já discutidos em um trabalho anterior, publicado nesta mesma revista (CECCARELLI, 2008).
5 – A palavra “solução” deve ser entendida no sentido matemático do termo: “uma equação que comporta diferentes variantes frente às quais, tal como em um sistema vetorial de forças, uma resultante, uma solução, será encontrada” (CECCARELLI, 2001, p. 93). As variantes em jogo são as comunicações pré-verbais e verbais dos que dão vida psíquica ao recém-nascido – que podem ser contraditórias – a respeito dos elementos constitutivos da identidade sexuada, da interpretação que a criança faz desses significantes e do lugar que se espera que a criança ocupe na dinâmica libidinal da família.
6 – Ao relatar o caso Dora, Freud percebe bem o impasse que se lhe apresenta quando descobre que por trás da atração de Dora por seu pai havia uma identificação com este, que se manifestava no amor homossexual de Dora pela Sra. K. Diante disso, ele tem que admitir que não há nada de naturalmente heterossexual, muito menos de inato, na pulsão.
7 – Evidentemente, não podemos de forma alguma tomar essa reflexão como definitiva. Hoje, com as mudanças sociais e as técnicas de procriação assistida, o problema da procriação não se aplica. Entretanto, a ideia da importância da sexualidade na procriação continua presente em muitos discursos, sobretudo nos religiosos.
8 – Embora as palavras homossexualidade e homossexual façam parte do cotidiano contemporâneo, não podemos nos esquecer de que elas foram criadas em 1869 pelo médico húngaro Benkert, a fim de transferir do domínio jurídico para o médico essa manifestação da sexualidade: a homossexualidade deixou de ser um delito para transformar-se em uma doença a ser tratada pela psiquiatria. Nesse sentido, usar o termo homossexualidade para descrever práticas entre pessoas do mesmo sexo em outras culturas e em outras épocas não faz sentido, pois a compreensão das expressões da sexualidade só podem ser avaliadas dentro do referencial simbólico da cultura em questão. No Ocidente, tivemos que esperar 1973 para que a homossexualidade deixasse de ser classificada como doença pela Associação Americana de Psiquiatria e 1975 para que Associação Americana de Psicologia fizesse o mesmo. Em maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde  (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID). Em 1991, a discriminação contra homossexuais passou a ser considerada uma violação aos direitos humanos pela Anistia Internacional. No Brasil, desde 1985, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) não considera a homossexualidade um desvio sexual, tendo estabelecido, em 1999, regras de atuação e de conduta para os psicólogos em relação às questões ligadas à orientação sexual. O CFP entende que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”.
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