sexta-feira, 5 de julho de 2013

EM BUSCA DAS CIDADES INVISÍVEIS



Prof. Me. Gustavo A. Mendonça dos Santos

e-mail: gustavo.ams@hotmail.com

É próprio do ser humano buscar o desconhecido e tentar satisfazer sua curiosidade sem limites e é isso que faz com que a raça humana esteja constantemente buscando aprender, mesmo conhecimentos que possam parecer inalcançáveis, perdidos no tempo e no espaço. E neste sentido de busca do inalcançável quem seria mais insaciável que o Kublai Khan descrito por Italo Calvino? O Grande Khan do Império Mongol (1260-1294) dominou um vasto território desde a Rússia até a China, mas seu império era tão
vasto que ele, tão ocupado com o governo, não podia ver toda a sua extensão, então pede que o explorado Marco Polo descreva cada parte do seu infinito reino. Mas Marco não somente fala como são as cidades invisíveis (pois inalcançáveis) para o Khan, ele demonstra em sua narrativa a forma de se enxergar a partir de partículas bem próximas do imperador as partes do seu vasto império.


Durante uma partida de xadrez entre imperador e viajante Marco Polo diz: “O tabuleiro, senhor, é uma marchetaria de duas madeiras: ébano e bordo. A casa sobre a qual se fixou o seu olhar iluminado foi extraída de uma camada do tronco que cresceu num ano de estiagem. Observe como são dispostas as fibras. Aqui se percebe um nó apenas esboçado: um broto tentou despontar num dia de primavera precoce, mas a geada noturna obrigou-o a desistir (...) A quantidade de coisas que se podia tirar de um pedacinho de madeira lisa e vazia abismava Kublai: Polo já começava a falar de bosques de ébano, de balsas de troncos que desciam o rio, dos desembarcadouros, das mulheres na janela...”. Que arte seria essa que permitia ao viajante reconstruir uma paisagem distante e inalcançável a partir de um simples tabuleiro? Seria ele dotado de alguma habilidade única? Na verdade Marco Polo aplicava um conhecimento que os homens desenvolveram desde seus primórdios sobre a terra em suas caçadas nas savanas africanas, uma habilidade de “ver o invisível” presente em diversas sociedades humanas.
Quem também tratou desta habilidade de “ver o invisível” foi o filósofo Voltaire, ao chegar às suas mãos uma antiga versão de um conto oriental ele o reelaborou na história do sábio Zadig, estudioso que viveu na Mesopotâmia. Certo dia quando passeava por um bosque Zadig encontrou o eunuco da rainha que lhe perguntou se ele viu a cadela da rainha que havia fugido. Então Zadig respondeu, “É caçadeira, e por sinal que é muito pequena (...). Deu cria há pouco; manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas.”. Mas quando o eunuco perguntou novamente se Zadig havia visto a cadela o sábio respondeu “Não, (...), nunca vi na minha vida nem nunca soube se a rainha tinha ou não uma cadela.”. Logo em seguida surgiu o monteiro-mor do rei, ele procurava o melhor cavalo do rei que havia fugido, então perguntou a Zadig se não vira acaso o cavalo do rei. O sábio então respondeu, “É o cavalo de melhor galope; tem cinco pés de altura e os cascos pequenos; a cauda mede três pés e meio de comprimento; o freio é de ouro de vinte e três quilates; e as ferraduras de prata de onze denários.”. Então o monteiro-mor perguntou onde estava o cavalo ao que Zadig respondeu que não o tinha visto e nem nuca ouvira falar dele.
Zadig foi preso e acusado ter roubado a cadela da rainha e o cavalo do rei, mas os animais foram encontrados logo após a prisão do sábio, então ele foi posto diante dos juízes para se defender. Sobre a cadela ele afirmou “Passeava eu pelas cercanias do bosque onde vim a encontrar o venerável eunuco e o ilustríssimo monteiro-mor, quando vi na areia as pegadas de um animal. Descobri facilmente que eram as de um pequeno cão. Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava de uma cadela cujas tetas estavam pendentes, e que portanto não fazia muito que dera cria. Outras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam no solo ao lado das patas dianteiras, denotavam que o animal tinha orelhas muito compridas; e, como notei que o chão era sempre menos amolgado por uma das patas do que pelas três outras, compreendi que a cadela de nossa augusta rainha manquejava um pouco” (...). Para descobrir como era o cavalo do rei sem jamais telo visto Zadig aplicou o mesmo método, “passeando eu pelos caminhos do referido bosque, divisei marcas de ferraduras que se achavam todas a igual distância.
‘Eis aqui — considerei — um cavalo que tem um galope perfeito’. A poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés de largura, fora levemente removida à esquerda e à direita, a três pés e meio do centro da estrada. ‘Esse cavalo — disse eu comigo — tem uma cauda de três pés e meio, a qual, movendo-se para um lado e outro, varreu assim a poeira dos troncos’. Vi debaixo das árvores, que formavam um dossel de cinco pés de altura, algumas folhas recém-tombadas e concluí que o cavalo lhes tocara com a cabeça e que tinha, portanto, cinco pés de altura. Quanto ao freio, deve ser de ouro de vinte e três quilates: pois ele lhe esfregou a parte externa contra certa pedra que eu identifiquei como uma pedra de toque. E, enfim, pelas marcas que as ferraduras deixaram em pedras de outra espécie, descobri eu que era prata de onze denários”.
Tanto Zadig quanto Marco Polo se utilizaram de um método que possibilitava descobrir coisas que já se tinham passado por meio dos vestígios que elas deixaram, uma arte de seguir as pistas e poder ver aquilo que não estava mais presente, uma maneira de “ver o invisível”. Essa habilidade de seguir os mínimos indícios foi utilizada de várias maneiras e se torou uma das principais ferramentas para se escrever a História, os historiadores estão constantemente tentando ver aquilo que já se perdeu, ficou no passado, eles estão em busca das cidades invisíveis. Por meio de pedras lascadas eles reconstroem a vivência dos homens do Paleolítico, restos de vasos quebrados e estátuas antigas mostram como era a religião no Egito Antigo, grilhões enferrujados e instrumentos de tortura são pista da escravidão no Brasil até o século XIX.












Estátuas submersas são as pistas para revelar uma antiga cidade egípcia, 
antes perdida no tempo e agora vai voltando a ser “visível”.


Muitas vezes os historiadores se utilizam desse método, o “paradigma indiciário” para tentar construir o passado, mas claro que com a habilidade também de bons narradores, pois os indícios não falam por eles mesmos. É o historiador que articula as palavras e defende suas próprias ideias, mas mesmo assim sempre haverá uma relação entre o indício e aquilo que ocorreu no passado, relação que cabe aos historiadores sempre demonstrar, nossa busca pelas cidades invisíveis nunca acaba.


REFERÊNCIAS:
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.
GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” IN Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

VOLTAIRE. Zadig. disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/zadig.html

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